segunda-feira, 12 de maio de 2014

A miraculosa


Como ele é professor, Jean-Claude Brisseau professa. Como ele ama o cinema, Jean-Claude Brisseau faz cinema. Como ser professor, no senso etimológico, é “ensinar em público”,  Jean-Claude Brisseau faz do cinema um anfiteatro. Seus filmes tem a ver com o teatro de paixões e tem de ser vistos como uma lição do cinema. Não de cinema. Não o cinema que educa, mas o cinema como – possível - educação. As salas de cinema frequentemente, e justamente, foram comparadas à igrejas; mais raramente à escolas: o meio onde vamos sentar para ver, para escutar, para se completar, para se confrontar com o Outro, se informar. Para ver, saber, e saber ver. Em Brisseau “o professor”, o filme perfurou o quadro negro, a professora (maitresse) dança com o aluno, o professor faz da aluna a sua amante (maîtresse) e o espectador, que ajuda a transgressão, participa assinando a nota de liberação. Nós apagamos tudo e recomeçamos.
            Em Som e Fúria, há o momento em que a professora dança com o menino (Aux marches dupalais...), e em Boda Branca, há o momento em que o barco desembarca o homem e a menina sobre uma colina de flores (ainda Aurora). Os dois momentos flertam com o ridículo,  com a graça rasa do ridículo e que “do ridículo ao sublime vai apenas um passo” (disse Michelet), mas são realmente dois momentos de graça onde o tempo não tem curso, a cena da escola, a vastidão imensa da natureza compõem a cena primitiva, livremente ingênua – como a arte, ingenuamente livre. Céline inteiro se abisma nesses momentos, nessa cena, nessa passagem feitapela janela aberta no mundo, o filme passa pela janela, e o olhar até o fundo da paisagem, acaba por se confundir com ele no negro – do quadro, como em um sonho de Akira. Assim se delineia Céline. Fazendo cinema, Brisseau gazeia a escola.
            Trata-se então, tratou-se sempre, de um aprendizado. Nos filmes precedentes, o aprendizado era alguma coisa como “aprenda a vida para aprender a morrer”, amores defuntos frequentemente entrevistos, corpos de crianças vítimas de sua clarividência. Céline começa na queda mas não é preciso muito tempo para sentir o filme cair para cima, uma aspiração resultado de uma expiração.  Aprender a não mais existir para aprender a viver. Não pensar mais em nada para estar no tudo. A aprendizagem, dessa vez, nasce do nada e se revela em sua plenitude, o filme chega depois da morte e, se fazendo, ele está “além”: na terra, sob a chuva, nada resta a Céline que seu nome; um homem que morreu e não é seu pai, um homem que a abandonou e não é mais seu amante; ela mesma se deserda, e depois se joga na água. Que uma outra mulher a salve, não importa: Céline é de agora em diante uma miraculosa – para não dizer uma ressuscitada. Mas o que importa, é que Geneviève, a outra mulher, já pode, desde o início, permitir o milagre (arriscando a própria vida).
            Eu vejo bem, agora, a impossibilidade e a inutilidade que há em recontar Céline. E é por uma razão bem simples: a razão de ser do filme é de tornar visível o indizível. Poderíamos “falar” qualquer coisa sobre a morte, o milagre, a aparição, a levitação, a santidade, tudo aquilo que quisermos, estas palavras permanecerão clichés que não “falam” (do mesmo modo Céline, tentando descrever o que ela sentiu a Geneviéve, nada encontra a não ser dizer a palavra “Deus”– talvez o “cliché” supremo- e não se satisfaz). Ora, o filme é o contrário do cliché. Ele refuta visivelmente e sistematicamente toda fixação do movimento, da imagem, ele flui suavemente de fonte, pela concentração ( a própria ideia de uma imobilidade que se move – e permite avançar) de onde ele retira sua energia luminosa (como o fogo ateado no carro concentra subitamente nele toda a luz: a noite apareceu de repente).
            Célineé um filme feito (de) intensidade. Portanto emocionante (émouvant) (em inglês “moving” quer dizer tanto “emocionante” e “em movimento”, assim o filme extrai seu movimento de uma tensão interna: o que me emociona (émeut), me move (meut)). E aquilo que ele mais é – emocionante e em movimento, é que Brisseau não faz cinema como se ele fosse o primeiro, não é a inocência do começo, é mais como se ele fosse o último dos homens com uma câmera – é uma fragrância de fim. Brisseau chega depois, mais uma vez. Depois da morte e depois do cinema (Murnau antes de tudo, Bresson, Godard sobretudo) . Chegar depois, saber disso, é forçosamente estar no além, aí está porque Céline não é fúnebre mas transcendente, aí está porque o cineasta não é religioso mas místico. Aí está porque o seu filme é fantástico.
            “A religião egípcia, voltada inteiramente contra a morte, fazia a sobrevivência depender da perenidade material do corpo. Ela satisfazia com isso uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte nada mais é que a vitória do tempo. Manter artificialmente as aparências carnais do ser é retirá-lo da correnteza da duração: fixá-lo à vida. [...] Assim se revela, nas origens religiosas do estatutário, sua função primordial: salvar o ser pela aparência.”
            Esse possível resumo de Céline assinado por André Bazin, um outro “professor” – e que, eu penso, Brisseau refletiu em sua introdução “faraônica” do filme-, diz bem o que é a questão maior: o resgate, depois a salvaguarda do espírito pelo corpo (a yoga), passando pela iniciação de Céline por Geneviéve, depois do corpo pelo espírito (o milagre), passando pela última aparição –aparência- para Geneviéve do espírito de Céline. Dialética literalmente extraordinária que, em termos de arte-mística, se produz entre o talento e o gênio. Entre Geneviéve e Céline. E sua união faz a sua força, pois, se há uma vida  após a morte (algo que o cinema se apercebe às vezes), o filme mostra também que há uma “morte após a morte” (algo que o cinema toca raramente): Céline começa no drama e culmina no trágico – mas  não é triste por isso, e é o amor de duas mulheres que é trágico. Elas estão condenadas. Estejam em um convento ou na grande mansão do filme.
            As palavras de Bazin, antes de dar uma ideia do que é o filme de Brisseau, dão uma ideia do que é o cinema. Daí a pensar que o filme de Brisseau constitui por ele mesmo uma “ideia de cinema”... Essa ideia gira sempre em torno da inocência, e de sua perda. E de como a reter ou retornar a ela – pelo cinema. Para Bazin, o trabalho de embalsamento, para Brisseau, o da restituição. Salvar o ser restaurando a ele a aparência (mais que) humana. Revelá-lo. Fazer de uma forma que o cinema possa registrar o milagre, e que esse milagre pareça com a vida (um joelho que sangra sem ferimento, um paraplégico que se recupera porque lhe dizem que ele pode). Não somente que isso tenha uma aparência verdadeira, mas que isso seja verdade. O trabalho de Brisseau consiste não na restituição de um cinema-verdade mas, o que é mais difícil, de uma verdade do cinema. E se ele consegue, é porque ele conhece o cinema: uma moral das imagens.
            Quando Céline “aparece” a Geneviéve várias vezes, por exemplo, depois desaparece, é um simples caso de reenquadramento: ela está lá, ela não está mais. É uma imagem que se constrói de uma outra imagem – em relação a uma terceira, aquela de Céline em meditação, fora da casa. Quando Geneviéve presencia a levitação, questão de ponto de vista, nós vemos Geneviéve que vê Céline, em seguida vemos Céline, as duas não estão reunidas no plano porque (montagem proibida, ao inverso) nós só podemos ser as testemunhas do olhar de Geneviéve, não as testemunhas da cena: para cortar, isso seria trapacear, teria uma aparência verdadeira sem ser (haveria montagem na imagem, uma redundância grosseira já que Célinemonta sozinha), então que a verdade venha do olhar de Geneviéve sobre Céline (ela dirá a seu amigo que ela não sabe se Céline levitou, simplesmente que ela acreditou tê-la visto levitar). É preciso acreditar em seus olhos.
            À parte talvez Órfãs da Tempestade, de Griffith (uma certa perversidade ao menos), nós nunca vimos filme igual colocando em cena o amor entre duas mulheres. Geneviéve, a lunar, e Céline, a solar, são duas figuras inesquecíveis. Dois anjos do pecado (angesdupeché). A energia luminosa que cada uma emite – luz negra de uma, luz ofuscante de outra – que ambas se transmitem alternadamente quando necessitam aquecer seus corpos entorpecidos, que renunciam, é um calor humano praticamente visível na imagem, como uma aura (não realmente uma auréola) que emanaria de seus corpos e irradiaria tudo aquilo que as rodeia. Como o encontro de duas “atmosferas”...
            Entre elas, por elas, não há rastros, via-crúcis, as coisas acontecem quase brutalmente, ou melhor, de uma forma bruta; e Céline salta aos olhos, se impõe à nós: é um filme que, da mesma maneira que o recolhimento leva subitamente ao milagre, estabelece um suspense que resulta de súbito em um efeito de surpresa. É um filme que atordoa. Geneviève, demasiada humana, e Céline, demasiada evidente, se completam, como dois polos de energia que se atraem. Quem é a mais santa das duas? Esta já é outra história. A história de amor, ela, exala um odor de santidade, na troca absoluta do filme – e depois a troca de dois olhares: dar e receber. É simplesmente muito belo.    
            Eu percebi que esqueci de dizer que isso se passa em pleno campo, em uma grande mansão branca, que Geneviève é enfermeira e que Céline não é. Mas que bom: dizer isso não é dizer grande coisa. Em revanche, é preciso dizer que Brisseau não realizou um filme ecológico (écolo) de bom tom ou new age do tipo certo. Esses filme nós podemos reconhece-los porque eles são de um só modo e de uma só época, eles envelheceram rápido com a sua imagética galopante. Céline é de outro temperamento, daquele que vemos raramente no cinema francês, o temperamento místico (indubitavelmente a única maneira na França de ter direito a um olhar sobre o gênero “fantástico). O filme de Brisseau (que me faz decididamente muito pensar no Nouvelle Vague do Godard) toma uma dimensão “sobrenatural” porque ele consegue fundir o ser na natureza, que o enraíza. Alguma coisa se passa, se comunica entre Céline e o campo (os campos, a árvore sob a qual ela medita). Na “perspectiva” da mística do filme,do tratamento de seu espaço, a natureza abre a Céline “o caminho”. Ela suscita uma exaltação melancólica, um sentimento de plenitude que absorve literalmente a jovem mulher na paisagem. Em Brisseau, a natureza é sobrenatural...
            Natureza e panteísmo. Contemplação, meditação e iluminação. A relação trágica do ser no tempo, no amor, na morte. “Salvar o ser pela aparência.” E fazer um filme do cinema... Acreditando que o cinema  dessa vez, de fato, entrou em sua era romântica.
Esperando, Céline e Geneviève irão de bicicleta.

CamilleNevers,
Cahiers du Cinema nº 454, abril de 1992

(tradução Cauby Monteiro)

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