terça-feira, 8 de março de 2016

UM CINEASTA DA ETERNIDADE


por Jacques Lourcelles

Henry King é um dos cinco centenários do cinema americano, ao lado de Dwan, DeMille[1], Ford, Walsh - formando os cinco um condensado do que o cinema americano, e talvez todo o cinema, nos deu de melhor, nesta época um tanto morosa. Centenários em obras, se não em idade, suas longevidades, pontuadas de filmes apaixonantes em todas as épocas, contêm já uma indicação da sua generosidade criadora, e um antídoto à morosidade.

Destes cinco gentlemen non maudits[a], que não se preocuparam com os signos exteriores da glória cinematográfica[2], King é o mais reservado, o mais apagado. A sua carreira exprime à perfeição o apagamento típico do realizador hollywoodiano que se está nas tintas para inscrever o seu “nome acima do título”, segundo a reivindicação bastante discutível de Capra. Mas se pensarmos um instante na repercussão e importância histórica de tantos filmes de King, nos fabulosos orçamentos de que muitos se beneficiaram, na liberdade quase constante - e pouco habitual - de que King gozou durante os quarenta anos da sua carreira no meio de uma das maiores entre as grandes companhias americanas, e que lhe teria permitido, mais que tudo, destacar-se, este apagamento é uma surpresa. De qualquer modo, ele manifesta no autor uma vontade de recuo quase agarrada ao corpo, assim como uma higiene da criação mais que recomendável hoje quando o realizador tem a tendência de se tornar a estrela mais obstrutiva do circo cinematográfico. Esta reserva talvez o tenha prejudicado, como impediu também de atrair para os seus filmes, e principalmente para a sua continuidade, a atenção que mereciam. Mas como criticar o que nele, mais do que um traço de caráter, é como uma marca da alma, uma espécie de luz que cai sobre a obra e lhe dá, já, uma das suas dimensões?

Impossível, com efeito, abarcar num só golpe de vista, a extensão da obra de King, tanto este parece ter querido apagar-se também, como criador, atrás da multiplicidade dos objetos que estimularam a sua curiosidade. Um levantamento topológico sumário desta obra mostrará rapidamente, quer no plano histórico e geográfico, quer no social, a extraordinária variedade[3], surpreendente mesmo num país onde, no entanto, os cineastas nos habituaram a ela. Mas quando numerosos artistas esgotam uma parte da sua energia a fornecer ao espectador (e à crítica) signos de reconhecimento, tranqüilizantes palavras de senha, King não quis, por seu lado, senão compor uma espécie de Atlas do seu país e de certas regiões do estrangeiro que também seja um livro de história por cujas páginas circule, da mais remota época bíblica até aos nossos dias, todo um povo de homens e mulheres de tradições, costumes, atividades e sonhos infinitamente diversos.

Inaparentes à primeira vista, ou seja, não superficiais, as linhas de força que percorrem nas suas profundezas este universo não são menos claras e interessantes a relevar. No plano humano, King interessou-se profundamente por dois tipos de seres, os humildes, o pequeno povo, os anônimos que desde a origem dos tempos tecem a trama da história dos povos, e, a seu lado, por vezes no meio deles, os gênios, os inventores, os sábios, os exploradores, os santos, os grandes solitários, todos os que, de uma maneira secreta ou espetacular, abalaram, nas suas épocas, um aspecto da face das coisas. No meio da sua variedade, um movimento perpétuo anima esta obra que oscila de uma maneira significativa entre estes dois pólos: gênio e humildade. E ninguém soube, sem dúvida, mostrar tão bem como King a humildade própria do gênio e essa espécie de gênio também que é preciso para se ser humilde. É que, longe de os opor, King procurou em todo o lado o que pudesse unir estes dois rostos permanentes da humanidade. Esse ponto comum, ele parece tê-lo encontrado, muitas vezes, numa espécie de teimosa boa-vontade, saída das próprias entranhas das suas personagens e que geralmente lhes torna a vida dura. Onde essa boa-vontade acabará por levá-los: é essa a história deles, e a história comum dos filmes de King, como veremos mais longe. O que há de comum também entre estas duas categorias de seres, é aparecerem, graças a essa boa vontade visceral, justamente como “indivíduos representativos”, designação que exprime a sua dupla forma de existência. Indivíduos, ou seja, independentes, não tendo de prestar contas senão a si próprios[4] - logo, representativos de si mesmos. Mas representativos também da sua época e do lugar em que vivem: e se King soube tão bem pintar as características de certo estado da América, de tal pequena comunidade rural ou urbana, é que para ele a força de caráter das suas personagens é o melhor cimento dessa comunidade, ao mesmo tempo que ela é, na sua obra, a melhor introdução possível ao conhecimento dessa comunidade. Na maior parte das vezes na sua obra, por uma osmose ao mesmo tempo poética e realista (de que Na Velha Chicago [In Old Chicago, 1937] fornece o melhor exemplo), os conflitos íntimos das personagens refletem e dizem diretamente respeito à vida da sociedade e do meio em que nasceram. Esta obra ignora geralmente a distinção entre vida privada e vida pública e não propõe descrição social que não seja moral na sua essência: com efeito, a perenidade de todo grupo humano não pode ter para King outra justificação e origem que não seja moral, a partir do que se vai organizar a expansão documental de sua narrativa.

Também os gênios (inventores, exploradores etc.) conhecem esta dupla representatividade. Representativos de si mesmos pela originalidade da sua obra e da sua visão, eles não o são menos do seu tempo e do seu meio, porque mesmo os mais solitários deles respondem, no seu destino, a um apelo inexprimível do público e do mundo que o rodeia. Essa ligação ao mundo é, no seu caso, ainda mais forte e potente que para o comum dos mortais, porque as personagens que mais interessam a King são aquelas a quem é estranho qualquer egoísmo. Entre as conquistas que a ambição suscita, ele interessa-se, com efeito, quase exclusivamente às que atuam sobre, e transformam profundamente, a realidade social, tal como as energias individuais o apaixonam principalmente na medida em que elas são capazes de desencadear essas transformações de alcance universal (o barco a vapor sucedendo o barco à vela em Na Antiga Nova York [Little Old New York, 1940], desenvolvimento do sistema de seguros pelo mundo em Lloyd’s de Londres [Lloyd’s of London, 1936], novo estilo de música popular conquistando o coração das multidões em Epopéia do Jazz [Alexander’s Ragtime Band, 1938]). Por vezes gosta de imaginar que é uma associação particular entre os gênios e os humildes que permitiu uma dessas transformações (cf. a idéia soberba, mesmo que inteiramente romanesca, de ter tornado possível em Na Antiga Nova York a concretização dos sonhos do engenheiro Fulton graças às economias e à devoção apaixonada da dona de uma taberna).

King é também o pintor das vocações sublimes, dos apelos misteriosos vindos das profundezas da terra ou do céu. Como tal, ele dá muitas vezes aos seus filmes o ar de uma viagem de exploração. Exploração rumo a terras distantes, talvez inacessíveis, do mundo visível e do mundo invisível que para ele fazem um só; exploração também aos confins do ser, ao limite das possibilidades humanas e cuja principal razão de ser é justamente fazer passar uma interrogação sobre esses limites. Para lá das peripécias espetaculares da narrativa de aviação que, aliás, King não mostra muito, Almas em Chamas (Twelve O’Clock High, 1949) liberta através de cada uma das suas seqüências, uma reflexão sobre os limites da resistência humana[5], esta resistência fornecendo a prova concreta da força suprema que pode exercer a vontade moral ou espiritual de um indivíduo sobre os meios físicos que a natureza pôs à sua disposição. Mas esses limites existem e a sua ultrapassagem pode provocar a pulverização da personalidade, uma destruição do equilíbrio fundamental do ser, como o indica o aviso contido no anticlímax final do filme (a crise nervosa que fulmina Gregory Peck após o seu triunfo). É também o propósito do filme sobre Stanley arriscando apagar-se na sua busca por Livingstone, ou o do filme sobre Bernadette Soubirous mudando de identidade à custa de um esforço espiritual que põe a sua existência em perigo.

Uma outra ultrapassagem dos limites humanos existe nos filmes de King através de uma experiência vivida, desta vez de preferência pelos anônimos desta obra. Esta experiência é a do amor partilhado. É verdade que King não inventou o gênero “love story”, tão velho como o próprio cinema, mas, com o talento e intensidade que pôs a ilustrá-lo, ser-se-ia tentado a dizer que é como se assim fosse. O amor vitorioso sobre os anos de ausência (Sétimo Céu [Seventh Heaven, 1937]), a pobreza (O Presente dos Magos [The Gift of the Magi], episódio dePáginas da Vida [O. Henry’s Full House, 1952]), a diferença de condições sociais ou de raças (Ramona, a Aventura de Ser Mulher [Ramona, 1936], Suplício de uma Saudade [Love Is a Many-Splendored Thing, 1955]) é um dos seus temas privilegiados. Ele viu, em particular, no amor do par, aquilo a que Chardonne pôde chamar “o sobrenatural mais humilde”, uma superação de si misteriosa e cotidiana na comunhão com o outro. Por vezes esse amor, para dar os seus frutos, tem de encarar a separação definitiva do objeto amado, como no caso de Stella Dallas obrigada a sacrificar à felicidade da filha, a felicidade de viver com ela, e experimentando, por isso, um sentimento de frustração e desespero quase intolerável. Aqui, neste movimento de balança, que transforma a plenitude em insatisfação no limite do suportável, estamos no coração do universo de King. Com efeito, o seu rigor moral e o classicismo do seu estilo não escondem a sua verdadeira natureza.

Antes de tudo, é um moderno. Como historiador de costumes, ele soube ver que o destino dos estados e das sociedades não pode ser apreendido senão através da descrição das massas anônimas, mas de forma alguma indiferenciadas, que os compõem. Esta intuição da importância do homem da rua permitiu-lhe fazer reviver, com a ajuda de traços familiares, justos e profundos, todos os tipos de comunidades. Como pintor de homens ilustres e de certos destinos obscuros, mas excepcionais, ele adora retratar as vidas densas e cheias, que assim se transformaram pela ação, a criatividade, o sentimento religioso ou o amor. Mas ele mostrou que essa plenitude, alcançada de formas diversas, desembocava infalivelmente num vazio do ser que é, sem dúvida, o apanágio do homem - e a sua maldição - uma vez que se ultrapassem os limites usuais da sua experiência cotidiana. Assim como o ar rarefeito dos cumes impõe um meio experimental e condições de vida no limite do tolerável. Deste ponto de vista o único dos jovens cineastas atuais que segue os seus passos é Herzog no seu filme sobre Aguirre.

Artista completo, King terá sido o poeta dos que encontram - por vezes depois de bastantes dificuldades - o seu lugar neste mundo: almas simples cujas atividades e sonhos moldam pouco a pouco o meio ambiente (camponês na terra em David, o Caçula [Tol’able David, 1921], artista preferindo sua pequena cidade sem prestígio a uma célebre em Cavalgada de Paixões [Wait Till the Sun Shines, Nellie, 1952]; pastor pregando nas montanhas de Um Homem e sua Alma [I’d Climb the Highest Mountain, 1951]). Mas terá sido muito mais o poeta daqueles a quem o mundo nada tem para oferecer; poeta dessa parte do homem que não é deste mundo. Literalmente, há um aspecto da sua obra que se poderia situar entre estas duas frases de Bataille (“O homem é o que lhe falta”) e de Marcel Raymond (“Há uma falta de ser que nos é consubstancial”)[6]. Pintor da grandeza, da concentração, da sede de absoluto, mas também dos abismos que estas rodeiam, fascinado pelos construtores, mas sabendo sobre que tapete de poeira desliza a sucessão dos séculos, King terá sido ao longo da sua longa carreira o contrário de um cineasta triunfalista.

Fato ainda mais notável: essa abordagem do vazio, do abismo do ser para que conduzem certas experiências do homem, King recusou-se sempre a mostrá-la num estilo grandiloqüente, tonitruante ou barroco. Para ele, a calma do estilo clássico, cuja perfeição no cinema existe desde meados dos anos trinta, basta para isso. Pode-se ver na sua obra, levada a um ponto de espantosa expressividade, esse sentimento de ubiqüidade que provém de diversos recursos, sabiamente utilizados, da decupagem clássica. Em cada espécie de plano, King não esconde a sua preferência pelos que permitem instituir uma ligeira distância com as personagens, desconfiando dos closes como impudicos e contrários à emoção geral do filme, usando com um virtuosismo discreto os planos longos, mas que não o parecem ser. A sua direção de atores, precisa e penetrante na sua sobriedade, contribuiu muito para afastar do mosaico de seus filmes o cabotinismo, as suspeitas efusões e essa exaltação do herói em detrimento do que o rodeia, coisas que o horrorizam. Na dramaturgia como na montagem, ele ignora essas astúcias de ligação que dissimulam elementos da intriga, a qual, pelo contrário, deve estar, a cada ponto do seu desenvolvimento, na sua totalidade, a serviço do espectador. Este estilo franco e nu, nascido na época do mudo, acomoda-se igualmente bem aos filmes de pequeno orçamento como às gigantescas super-produções. Ele não foi surpreendido por nenhum dos avanços técnicos do cinema (som, cor, CinemaScope), absorvendo-os a todos sem nada perder da sua originalidade e da sua dignidade. É um estilo que, se pode levar tempo para se fazer reconhecer, parece envelhecer muito pouco. Comecei lamentando que o apagamento do autor possa ter prejudicado a sua obra. Por outro lado, King terá, deste modo, saltado a etapa da celebridade passageira, da moda e do inevitável purgatório. O seu nome, poupado aos estilhaços da glória, foi-no também às idéias falsas, aos preconceitos e às vulgaridades que obscurecem tantas obras mais conhecidas. Nunca tendo aparecido como um cineasta da atualidade, ele tornar-se-á facilmente o que ele nunca deixou de ser: um cineasta da eternidade, incomparável pela variedade dos seus gostos e pela sua honestidade.

Notas:

[1] Sejamos precisos: no que se refere a DeMille, para chegar à centena seria preciso acrescentar alguns dos filmes que supervisou ou produziu.

[a] Nota do tradutor: Jacques Lourcelles faz, como bom cinéfilo, um trocadilho com o título de um velho filme francês, Les cinq gentlemen maudits, de Julien Duvivier (1931).

[2] Objetar-nos-ão: e DeMille? DeMille construiu uma lenda a propósito de seus filmes e do seu gigantismo e não a propósito de si mesmo, permanecendo sempre bastante discreto, como muitos cineastas americanos, sobre as suas ambições e reais intenções.

[3] Para se restringir ao plano geográfico, a obra de King descreve com abundância os estados do Kansas, Georgia, Maine, New York, Missouri, Nova-Inglaterra, Carolina, Maryland etc. Fora dos Estados Unidos, os países seguintes tiveram lugar nas intrigas dos filmes de King: França, Espanha, Itália, Inglaterra, Rússia, Áustria, Israel, Índias, Hong-Kong, África do Sul, Jamaica, Canadá, México, Panamá etc. Quanto às épocas, elas são mais numerosas ainda, e os trabalhos ilustrados por esta obra são também inumeráveis. Apenas a obra de Michael Curtiz, outro grande desconhecido, pode rivalizar com a de King no que diz respeito à variedade. Mas enquanto Curtiz tem tendência a se perder nela, de uma forma aliás apaixonante, King serve-se para traçar algumas linhas de força que reencontraremos ao longo de toda a sua imensa carreira.

[4] O que King detestou em Fitzgerald (herói do seu penúltimo filme, O Ídolo de Cristal [Beloved Infidel, 1959]), é justamente o homem não livre de si mesmo e a sua lamentosa busca da aprovação dos outros, como se o escritor procurasse no olhar dos outros a imagem da sua própria dignidade. Enquanto que para King a dignidade de qualquer homem apenas depende de si próprio, e não tem de ser procurada senão em si mesmo.

[5] Esse tema da resistência humana é já tratado nos filmes mudos de King, e em particular no célebre Beijo Ardente (The Winning of Barbara Worth, 1926), o filme em que King revelou Gary Cooper.

[6] Esta frase figura na conclusão de uma narrativa autobiográfica (Memorial, José Corti, 1971) que relata uma experiência amorosa próxima de alguns filmes de King. Talvez não seja inútil citar o contexto imediato, espantosamente próximo de King, em particular dos seus melodramas: “A melancolia é o gosto do infinito, assemelha-se ao Eros platônico, testemunha a favor da condição humana (...) Esses buracos de ar, essas quedas no vazio não se devem apenas à instabilidade dos nervos. Há uma falta de ser que nos é consubstancial. A felicidade terrestre, por intensa que seja, é composta por uma parte impossível de apreciar do sonho de felicidade, da aspiração sem termo para o absoluto de felicidade, é a sua perfeição avassaladora que aqui não pode ser senão entrevista”.

(Écran nº 70, 15 de junho de 1978, pp. 31-38. Extraído do catálogo Henry King: A Câmara à Altura dos Sentimentos, Manuel Cintra Ferreira [org.], Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2007. Traduzido por Manuel Cintra Ferreira; transcrito por João Palhares; revisado por Bruno Andrade e André Barcellos)

Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/jornalking1.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário