por Serge Daney
Há
filmes sobre os quais não estamos certos se não foram sonhados. Talvez sejam
estes os mais belos. Tal qual a nova aventura do capitão Ruiz no país de nossas
crenças.
Tome
uma criança e se assegure de que sonha. Acorde-a e lhe conte uma história.
Embale-a com sua mais bela voz-off. Faça-a insidiosa, não se esqueça da
trilha sonora. É preciso que, novamente adormecida, a criança complete sonhando
a história que lhe fora insuflada. É preciso que, ao despertar, ela sinta que
foi a história que a escolheu, e não o inverso. Uma história imortal, título de
um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem todas as de
Ruiz. Disto as delícias, depois mais delícias, e aí o terror.
Mas se
você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo em suspensão, nem da
voz que embala, nem de talento para improvisar (isto é, a arte de sempre ter a
última palavra) não insista e renuncie a imitar Raúl Ruiz. Só ele parece ter
guardado o segredo e o gosto para tais coisas. Após o silêncio de Welles e a
partida de Buñuel para a Via Láctea, fala-se muito de um retorno do cinema à
ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção (como se fala do retorno do
reprimido ou do retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são relatos, e
possuem um caráter iniciático. Espiralados, trucados, intrincados ou maléficos,
possuem um charme louco. Mesmo se foi preciso esperar dez anos (da queda de
Allende, 1973, que exila Ruiz de seu país natal, à estreia, ano passado, de As
Três Coroas do Marinheiro) para que um público de repente menos
insignificante caia sob tal encanto e marche no compasso dessa loucura.
Isto
malgrado a reputação dada a Ruiz de hermetismo e intelectualismo que prova
tão-somente que, logo que confrontados a um verdadeiro barroco
latino-americano, os franceses têm dificuldade em admitir que sua própria
tradição de filmes-labirinto, jogos de quebra-cabeça ou do Ganso, à la
Robbe-Grillet ou Resnais, não foi decisiva. Dito isto (e uma vez dito, não
diremos mais, está prometido: na próxima, consideraremos Ruiz já conhecido,
senão reconhecido) A Cidade dos Piratas, que faz quase um par com
Três Coroas de um Marinheiro e que evoca esse filme mais ou menos bem
sucedido que foi O Território (três filmes rodados em Portugal) possui
sua tonalidade própria, seus truques íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas
falhas secretas. Em suma: um filme excelente, onírico, perto do inenarrável e
de todo consumado.
Por
onde começar? Retomemos a metáfora do adormecido. Estamos no Sul, defronte o
oceano, sujeitos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está adormecida.
Sim, adormecida, pois se trata de uma mulher. Sua mãe, que mal parece mais
velha, acorda-a dizendo: "Dormes, Isidore?". "Conta-me uma
história", responde a vozinha de criança de Isidore. Sobre uma mesa, ao
lado, algum dinheiro deixado pelo pai. Ele abusa de Isidore, vem lhe pagar.
Esta cena não dá, evidentemente, alguma ideia dos incontáveis acontecimentos
que povoam esta Cidade dos Piratas, mas todo o Ruiz, em certo sentido, nela se
encontra. Como Buñuel, Ruiz se compraz com as mais simples permutações lógicas.
Perversão de nome e de gênero, de idades e de amores, do antes e do depois.
Incesto, relação social tornada jogo de palavras ou "jogo das sete famílias".
Além disso, essa "cidade" não é mais que uma ilha, salvo não ter mais
que um habitante, que interpreta todos os papéis. Para aqueles que dependem do
conforto da identificação (quem é quem?) Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele
não acredita na identidade, não acredita senão nos mapas (cartes). Arbitrários,
de preferência.
Isidore
beija um policial de tal forma que a forma vermelha do beijo revela ser aquela
da famosa ilha dos piratas. Um homem faz saltar os miolos de tal forma que,
ejetados num rio de sangue, desenham a forma da ilha. No começo, nada mais que
enigma; no final, nada mais que resíduo. No meio tempo, a bela Isidore conhece
um menino, mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua
noiva e cúmplice. Ela o segue até a ilha. Ela retornará, sim, mas em que
estado! Adivinhamos que a pequena palavra que está mal e deslocada no universo
ruiziano é o verbo "ser". É claro que não se ganha nada em querer
recontar A Cidade dos Piratas. Está claro que não vemos nada.
Entretanto.
Quanto mais nos desencorajamos em identificar aquilo (aqueles) que vemos na
tela (até o ponto em que, ao final, gritamos mentalmente "puxa" e nos
roça o tédio), mais Ruiz se compraz com a aparência das coisas, o peso
material, anedótico, que elas guardam apesar de tudo.
Dois
macabeus putrefatos (e ainda mais orgulhosos) tomam um chá Durassiano, um
bocejo é filmado do ponto de vista da glote, detalhes carregam a imagem sem
razão, uma caveira vira bola de rugby; toda uma ala da pintura espanhola do
século XVII, aquela das Vaidades, do Valdes Leal dos Hieróglifos de
nossos fins últimos, está prestes a se animar. Sob a pulsão dos vermes
(vers).
De
todo modo, quanto mais renunciamos saber em que tipo de filme caímos (ao ponto
em que, lá pelo meio, cansados e lassos, achamos que já é o bastante) mais Ruiz
se distingue em evocar, com felicidade constante, o fantasma dos filmes B
americanos, de Cocteau, ou dos filmes da inglesa Hammer. Há um pouco do John
Mohune do Moonfleet de Lang no menino de A Cidade dos Piratas,
como há um pouco de Tourneur (aquele de A Morta-Viva) no tom alucinado
de certas vozes. Como se, para se desculpar da abracadabrância de seu
próprio relato, Ruiz o vestisse da memória dos relatos com os quais tivemos tão
pouca dificuldade, na infância, em nos sentirmos em casa.
Quanto
mais nos convencemos de que a linguagem, também ela, está encurralada, mais
Ruiz é capaz de fazer falar os atores com um tom tão doce, e este nada de
desolado amuo na voz que torna perturbadoras as mais simples frases. Há poucos
cineastas, dos que filmam em "francês", que melhor capturaram a
música do "era uma vez..." francês, o lá musical que abre as
portas de todas as histórias. Há poucos compositores que, melhor que Arriagada
(o cúmplice regular de Ruiz) sabem inventar notas dignas de um Ravel
hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua folia
de autor, mais é preciso nos render à evidência: ele é cada vez mais segura na
escolha de seus atores. Em A Cidade dos Piratas, Anne Alvaro (Isidore) e
Melvil Poupaud (o menino) são particularmente bons.
Tudo
isto, vocês dirão, tem um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que seduz. Resta o
fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um sentido em suas histórias, que creio
terrível. Um fundo de imundície e promiscuidade que nenhuma poesia poderia
silenciar por completo. Os cineastas - já dizia eu no começo (por provocação) -
perderam quase todos o senso do relato. Mais ainda, o único que o conservou
intacto (Ruiz) realizou sua loucura pessoal. O espectador "cartesiano
demais" estará menos desamparado frente um filme como A Cidade dos
Piratas se se dignar a ver As Três Coroas do Marinheiro (que passa
ainda, numa sala apenas, em Paris). Neste filme, Ruiz expõe em que condições
uma história pode se tornar imortal. Ele precisava de carne fresca. Aquela
daquele que a contará como se acreditasse que ela não existisse senão para ele.
Aquela daquele a quem foi contada e que pensa (erroneamente) que ela não o
alcançará jamais. Tornada imortal, a história não cessa de retornar. Em A
Cidade dos piratas, numa primeira vez como filme de aventura, numa segunda
como teatro Cocteausante, numa terceira como seminário teológico, numa quarta
como colóquio entre mortos.
Viver,
é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.
Serge
Daney (Libération, 25 de fevereiro de 1984)
Traduzido por Eduardo Savella
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