domingo, 23 de outubro de 2016

O Tempo Redescoberto



(Le Temps Retrouvé, França, 1999)

Ruiz adaptou, sucessivamente, em 1998 e 2000, dois monumentos da literatura francesa: O Tempo Redescoberto, de Marcel Proust, e Les Âmes Fortes, de Jean Giono. Estas estão longe de serem suas primeiras adaptações; em certo sentido, Ruiz nunca fez outra coisa. Além de exemplos como A Colônia Penal (Kafka), A Vocação Suspensa (Klossowski) e A Ilha do Tesouro (Stevenson), a matéria-prima literária assombra todos os seus filmes, e o livro-objeto está sempre presente materialmente - livros devorados ou devoradores, vetores de "histórias predadoras" (como dito em Três Vidas e uma Só Morte) e de teorias proliferantes.

A adaptação, em Ruiz, é uma operação complexa de condensação e expansão, deslocamentos e substituições: em certo sentido um dream-work, por via do qual o material do começo, desfigurado, aparece somente como uma versão possível de uma série de avatares que giram em torno do mesmo átomo narrativo: em A Ilha do Tesouro, Jim Hawkins (Melvil Poupaud), que ajuda a escrever sua própria história e encontra várias cópias diferentes do romance de Stevenson numa biblioteca, também tropeça numa outra versão, criptografada numa série de TV. Mas qual é a história de verdade?

O método de Ruiz teve de confrontar-se com dois grandes desafios no projeto de adaptar Proust. O primeiro, o maior, é uma espécie de equivalência abstrata entre seu sistema de narrativas proliferantes e a teoria Proustiana da memória epifânica. A cisão narrativa no trabalho de Ruiz nunca procede sem um momento ou ponto onde tudo se encontra de modo a formar um horizonte de sentido - ou o olho de um furacão: uníssono, sincronicidade, simultaneidade são propriamente obsessões Ruizianas (ver, no nível da metáfora cômica, os dois velhos camaradas em L'éveillé du Pont d'Alma, que só podem dormir ao mesmo tempo). Suas narrativas designam, não uma origem (não há passado nem presente), mas um núcleo.

Os ecos das situações narrativas, o modo como as histórias "ressoam", não são equivalentes à extratemporalidade Proustiana mas, partindo de um recurso similar à analogia, oferecem uma espécie de contra-modelo. Em Tempo Redescoberto, os momentos mais bem-sucedidos são aqueles nos quais a condensação das memórias, a mise em scéne que cruza "fronteiras temporais", não inaugura a construção de uma subjetividade individual (como em Proust), mas sim, um esprit du temps, um Zeitgeist desse século vinte que começa com a Primeira Guerra Mundial.

E é a fotografia ou cinema que, a cada vez, abraça a ressonância entre os eventos interiores e os do mundo exterior: a cena onde, numa sala lotada de chapéus, sob o olhar de St. Loup (Pascal Greggory) de farda militar, o jovem Marcel (Georges du Fresne) descobre a terrível imagem de um asno agonizante dentro de um pequeno aparato escópico; ou quando um Marcel mais velho (Marcello Mazzarella) vê a si mesmo na rua criança, lampejos brancos caindo como bombas sobre a imagem enquadrada pela janela do trem, que é então convertida numa fotografia; ou, finalmente, quando o herói, numa dupla-encarnação (o Marcel-criança operando uma câmera de filmar) levita defronte uma tela de cinema que mostra imagens violentas do noticiário para a fina sociedade parisiense, enquanto em voz off ouvimos a leitura de uma carta de Gilberte (Emmanuelle Béart).

Esta abertura do extratemporal para o Zeitgeist resolve o segundo desafio do projeto: o desfile das personagens Proustianas e sua longa familiaridade na cultura francesa. Ruiz poderia ter trabalhado sobre a lista de figuras-fetiche de Em Busca do Tempo Perdido, mas escolhe, acertadamente, por transformá-las numa litania funeral, uma vasta multidão de fantasmas empalidecidos em lampejos, esvaziados por recordarem, derrotados pela memória, e sempre já assassinados por sua época.

Marcel circula constantemente no meio da multidão de "suas" personagens, como na caminhada entre os tableaux-vivants de A Hipótese do Quadro Roubado. Ou seja, tudo o que constituiria a totalidade de um mundo se esconde em seu centro, invisível, um horizonte ou buraco que o esvazia e o mata: uma pintura roubada, uma memória, a guerra. Um filme doente, entre os mais mórbidos de Ruiz, O Tempo Redescoberto sucede em tornar a madeleine de Proust numa espécie de epidemia fatal.

Cyril Béghin

Original em Inglês disponível em http://www.rouge.com.au/2/time.html

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