domingo, 2 de outubro de 2016

A Solução Imaginária


Raoul Ruiz morreu a 19 de agosto aos 70 anos. Realizou 123 filmes, e outros ainda.

De que país era Raoul Ruiz? Diálogos de Exilados (1974), seu primeiro filme realizado na França, começa na sala de espera de uma prefeitura com um longo diálogo sem continuação entre um jovem argelino e um imigrante chileno, reunidos pelo pintor alemão Arestizábal. O argelino procura saber de onde vem seu interlocutor. Da Sicília? Da Romênia? Do Cabo Verde? A cada hipótese o outro responde polida, mas maliciosamente: "mas lejos", "mais longe", e os dois fazem assim a volta ao mundo. Eis, sem dúvida, aquilo que o cineasta, numa entrevista a propósito de Dias de Campo (2004), chamou de "espírito do êxodo": "É o gosto pela diversidade. É necessário fazer um percurso através dos diferentes tipos de diversidades até o ponto em que podemos reentrar em nós mesmos e encontrar aquele que é o país mais exótico". Saído do Chile após o golpe de Estado de Pinochet, Ruiz não chegou senão quase trinta anos mais tarde ao fim de uma longa viagem através das formas, das de-multiplicações de personagens e de difrações de imagens: "mais longe" não era a fórmula de uma investigação aos extremos ou ao limite, como com Werner Herzog, mas de uma decalagem, do passar ao largo, muito literalmente, da excentricidade. Para concluir tal périplo em espiral, Ruiz realizou antes de morrer La Noche de Enfrente, seu primeiro longa-metragem de ficção produzido no Chile depois de La Expropriación (1974) - maneira de dar ao espírito do êxodo seu peso de verdade definitivo.

Os marinheiros, os padres e as crianças foram as três figuras tutelares da odisseia ruiziana. Os primeiros são os eternos moribundos acabados nos saltos por vezes perigosos do "mais longe": narrativas de gaveta que são menos sem pé nem cabeça que marcadas, como Ruiz escreveu em sua Poética do Cinema, por uma "superabundância de pés e cabeças". São verdadeiros marinheiros lançados para a eternidade sobre os oceanos, como nas duas obras-primas dos anos 80, As Três Coroas do Marinheiro (1983) e A Ilha do Tesouro (1985). Mas há também os marinheiros de alcova, da cidade ou do espírito: os dois insones do maravilhoso L'Éveillé du pont de l'Alma (1985), Mastroianni em Três Vidas e uma só Morte (1995), que deixa o domicílio familiar numa manhã para se perder num encadeamento de personalidades que formam vários filmes dentro do filme, ou ainda os diferentes avatares dos personagens de Melvil Poupaud e Elsa Zylberstein nas histórias espelhadas de Combate de Amor em Sonho (2000). Sobre o mar de narrativas, a figura fílmica do marinheiro é o elo aberrante, a passagem incongruente de uma história à outra (uma hilariante inversão de prisioneiros e guardas em A Ilha do Tesouro) ou de um estado a outro (alguns planos onde, subitamente, é inverno em pleno verão, em O Território, 1981).

Ruiz amava a contradição, no duplo sentido no qual ele era, na vida real, um grande artista da conversação e com o que ele podia, num filme, inventar a coesão de dois estados opostos: morto-vivo, adulto-criança, sonho-realidade. Mas também: primeiro plano e plano de fundo dissociados, foques e desfoques combinados, efeitos barrocos de mise en scène e momentos de completa platitude - e por que não, como em O Território, um filtro vermelho no alto do quadro, e um verde embaixo. A querela teológica, aquela que agita por exemplo os jovens seminaristas no começo de Combate do Amor em Sonho, é o modelo dessas contradições, que levam a dúvidas absolutas sobre a natureza da realidade, mas com a distância cortês e frequentemente cômica dos argumentos absurdos. Os padres ruizianos - verdadeiramente religiosos como aqueles de A Vocação Suspensa (1977) e de L'Oeil qui ment (1992), ou também psicanalistas (Genealogias de um Crime, 1996), ou mesmo simples comentadores de imagens (a voz off de Divisions de la Nature, 1978, o "guia" de A Hipótese do Quadro Roubado, 1979), não são crédulos viscerais, antes mestres do diálogo e da reversão de ideias e certezas de todos os gêneros. Guardiões do dogma, o são mesmo para fazê-lo bascular, supervisionando o incessante entrelaçamento da lei e de sua transgressão, da ciência e do oculto, do ministério e do mistério. Sempre um tanto escroques, como o genial padre Dinis de Mistérios de Lisboa (2010), são sobretudo patafísicos, manipuladores daquilo que Alfred Jarry nomeou de soluções imaginárias.

O "gosto pela diversidade", que está no princípio do espírito de êxodo, passava em Ruiz pela articulação alegre e curiosa de soluções imaginárias. Ele foi sem dúvida um dos cineastas mais eruditos, capaz de citar Blaise Pascal e Budd Boetticher num mesmo texto (Poética do Cinema) ou Orson Welles e Mario Bava num mesmo plano (A Ilha do Tesouro). As soluções se tornaram cada vez mais numerosas e os terrenos do jogo, imensos. Só Ruiz foi capaz de um ensaio sobre a encarnação começando como falso documentário sobre o Festival de Avignon (La Présence Réelle, 1983) ou de um curta-metragem de gênero indeterminado, onde a ficção é guiada pelas regras do Jogo do Ganso (Le Jeu de l'oie, une ficcion didactique à propos de la cartographie, 1980).

Uma parte da infância, livre e insaciável, fissurava essas grandes hipóteses loucas. Mas a criança ainda era outra coisa: uma forma de duplo ou fantasma, o paradoxo de uma lembrança inquietante do fim - razão pela qual Mistérios de Lisboa, assim como O Tempo Redescoberto, identificam o leito da infância com o leito de morte, e transformam os filmes em longas viagens em torno de um quarto. Os melhores filmes de Ruiz dão um sentimento de suspensão progressiva em cima de uma complexidade de relatos, estados, hipóteses, onde a obsessão mútua da criança e do adulto é uma das expressões mais fortes e comoventes. Na Poética do Cinema, o cineasta nomeia  tal estado de "paradoxo de São Gregório": "quando a alma está de uma só vez em repouso e em movimento, girando vertiginosamente em torno dela mesma como um ciclone em torno de seu olho, enquanto os acontecimentos do passado e do futuro se desvanecem à distância". Agora que também ele se afastou, enquanto seus marinheiros, padres e crianças continuam suas viagens, é evidente que tal estado na verdade se chame "o paradoxo de Ruiz".

Cyril Béghin (Cahiers du Cinema, outubro de 2011)

traduzido do francês por Eduardo Savella

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