Raoul Ruiz morreu a 19 de agosto aos 70 anos. Realizou
123 filmes, e outros ainda.
De que país era Raoul Ruiz? Diálogos de Exilados (1974),
seu primeiro filme realizado na França, começa na sala de espera de uma
prefeitura com um longo diálogo sem continuação entre um jovem argelino e um
imigrante chileno, reunidos pelo pintor alemão Arestizábal. O argelino procura
saber de onde vem seu interlocutor. Da Sicília? Da Romênia? Do Cabo Verde? A
cada hipótese o outro responde polida, mas maliciosamente: "mas lejos",
"mais longe", e os dois fazem assim a volta ao mundo. Eis, sem
dúvida, aquilo que o cineasta, numa entrevista a propósito de Dias de Campo (2004),
chamou de "espírito do êxodo": "É o gosto pela
diversidade. É necessário fazer um percurso através dos diferentes tipos de
diversidades até o ponto em que podemos reentrar em nós mesmos e encontrar
aquele que é o país mais exótico". Saído do Chile após o golpe de
Estado de Pinochet, Ruiz não chegou senão quase trinta anos mais tarde ao fim
de uma longa viagem através das formas, das de-multiplicações de personagens e
de difrações de imagens: "mais longe" não era a fórmula de uma
investigação aos extremos ou ao limite, como com Werner Herzog, mas de uma
decalagem, do passar ao largo, muito literalmente, da excentricidade. Para
concluir tal périplo em espiral, Ruiz realizou antes de morrer La Noche de
Enfrente, seu primeiro longa-metragem de ficção produzido no Chile depois
de La Expropriación (1974) - maneira de dar ao espírito do êxodo seu
peso de verdade definitivo.
Os marinheiros, os padres e as crianças foram as três
figuras tutelares da odisseia ruiziana. Os primeiros são os eternos moribundos
acabados nos saltos por vezes perigosos do "mais longe": narrativas
de gaveta que são menos sem pé nem cabeça que marcadas, como Ruiz escreveu em
sua Poética do Cinema, por uma "superabundância de pés e cabeças".
São verdadeiros marinheiros lançados para a eternidade sobre os oceanos, como
nas duas obras-primas dos anos 80, As Três Coroas do Marinheiro (1983) e
A Ilha do Tesouro (1985). Mas há também os marinheiros de alcova, da
cidade ou do espírito: os dois insones do maravilhoso L'Éveillé du pont de
l'Alma (1985), Mastroianni em Três Vidas e uma só Morte (1995), que
deixa o domicílio familiar numa manhã para se perder num encadeamento de
personalidades que formam vários filmes dentro do filme, ou ainda os diferentes
avatares dos personagens de Melvil Poupaud e Elsa Zylberstein nas histórias
espelhadas de Combate de Amor em Sonho (2000). Sobre o mar de
narrativas, a figura fílmica do marinheiro é o elo aberrante, a passagem
incongruente de uma história à outra (uma hilariante inversão de prisioneiros e
guardas em A Ilha do Tesouro) ou de um estado a outro (alguns planos
onde, subitamente, é inverno em pleno verão, em O Território, 1981).
Ruiz amava a contradição, no duplo sentido no qual ele
era, na vida real, um grande artista da conversação e com o que ele podia, num
filme, inventar a coesão de dois estados opostos: morto-vivo, adulto-criança,
sonho-realidade. Mas também: primeiro plano e plano de fundo dissociados,
foques e desfoques combinados, efeitos barrocos de mise en scène e
momentos de completa platitude - e por que não, como em O Território, um
filtro vermelho no alto do quadro, e um verde embaixo. A querela teológica,
aquela que agita por exemplo os jovens seminaristas no começo de Combate do
Amor em Sonho, é o modelo dessas contradições, que levam a dúvidas
absolutas sobre a natureza da realidade, mas com a distância cortês e
frequentemente cômica dos argumentos absurdos. Os padres ruizianos -
verdadeiramente religiosos como aqueles de A Vocação Suspensa (1977) e
de L'Oeil qui ment (1992), ou também psicanalistas (Genealogias de um
Crime, 1996), ou mesmo simples comentadores de imagens (a voz off de
Divisions de la Nature, 1978, o "guia" de A Hipótese do
Quadro Roubado, 1979), não são crédulos viscerais, antes mestres do diálogo
e da reversão de ideias e certezas de todos os gêneros. Guardiões do dogma, o
são mesmo para fazê-lo bascular, supervisionando o incessante entrelaçamento da
lei e de sua transgressão, da ciência e do oculto, do ministério e do
mistério. Sempre um tanto escroques, como o genial padre Dinis de Mistérios
de Lisboa (2010), são sobretudo patafísicos, manipuladores daquilo
que Alfred Jarry nomeou de soluções imaginárias.
O "gosto pela diversidade", que está no
princípio do espírito de êxodo, passava em Ruiz pela articulação alegre e
curiosa de soluções imaginárias. Ele foi sem dúvida um dos cineastas mais
eruditos, capaz de citar Blaise Pascal e Budd Boetticher num mesmo texto (Poética
do Cinema) ou Orson Welles e Mario Bava num mesmo plano (A Ilha do
Tesouro). As soluções se tornaram cada vez mais numerosas e os terrenos do
jogo, imensos. Só Ruiz foi capaz de um ensaio sobre a encarnação começando como
falso documentário sobre o Festival de Avignon (La Présence Réelle,
1983) ou de um curta-metragem de gênero indeterminado, onde a ficção é guiada
pelas regras do Jogo do Ganso (Le Jeu de l'oie, une ficcion didactique à
propos de la cartographie, 1980).
Uma parte da infância, livre e insaciável, fissurava
essas grandes hipóteses loucas. Mas a criança ainda era outra coisa: uma forma
de duplo ou fantasma, o paradoxo de uma lembrança inquietante do fim - razão
pela qual Mistérios de Lisboa, assim como O Tempo Redescoberto,
identificam o leito da infância com o leito de morte, e transformam os filmes
em longas viagens em torno de um quarto. Os melhores filmes de Ruiz dão um
sentimento de suspensão progressiva em cima de uma complexidade de relatos,
estados, hipóteses, onde a obsessão mútua da criança e do adulto é uma das
expressões mais fortes e comoventes. Na Poética do Cinema, o cineasta
nomeia tal estado de "paradoxo de
São Gregório": "quando a alma está de uma só vez em repouso e em
movimento, girando vertiginosamente em torno dela mesma como um ciclone em
torno de seu olho, enquanto os acontecimentos do passado e do futuro se
desvanecem à distância". Agora que também ele se afastou, enquanto
seus marinheiros, padres e crianças continuam suas viagens, é evidente que tal
estado na verdade se chame "o paradoxo de Ruiz".
Cyril Béghin (Cahiers du Cinema, outubro de
2011)
traduzido do francês por Eduardo Savella
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