Manuel na Ilha das Maravilhas
(Seriado para a TV em três partes, França, 1985)
por
Fergus Daly
Esta
série infantil em três partes para a TV Francesa (existem versões alternativas
como longa-metragem, Os Destinos de Manuel, e uma série em quatro partes
para a TV Portuguesa, Aventura em Madeira) é a favorita para muitos dos
devotados a Raúl Ruiz. Isto porque ela reúne o encantamento e mistério de Lewis Carroll, Carlo Collodi e
os irmãos Grimm aos experimentos do cineasta com o expediente narrativo e com o
que ele chama de modelo pentalúdico de narração (no qual as personagens são
jogadas como dados em combinações e situações governadas pelo jogo do Acaso e
do Destino).
Mas
este filme infantil está entre seus trabalhos mais complexos, difícil de
abarcar em sua totalidade. Ele pode parecer uma coleção arbitrária de
livre-associação de palavras e imagens, beirando o nonsense. Mas
espectadores atentos terão a forte impressão de que há um método por trás desta
semiloucura. De outro modo, ele não produziria as emoções intensas que tão
claramente oferece. As obsessões de Ruiz de filme a filme reúnem as partes - e
a emoção vem da bifurcação totalmente inesperada dentro do já conhecido
território mapeado.
Escrever
ou filmar para crianças pode por vezes levar alguém diretamente à fonte de sua
arte. Ter que adaptar perceptivelmente o estilo confronta-os com o que deve ser
incluído. Manuel nos deixa com o Ruiz essencial, a companhia audiovisual
para seu extraordinário livro, Poética do Cinema1. Sua
atordoante metodologia narrativa virada-sobre-virada cria uma estrutura
temporal labiríntica.
A
primeira parte nos apresenta a três mundos possíveis. Em cada um destes mundos,
Manuel, aos sete anos, responde diferentemente ao chamado que o mundo lhe faz.
Convenientemente, num filme onde nada coincide, as três partes da história não
coincidem com a estrutura dos três episódios (a forma-trindade retorna
frequentemente em Ruiz). Neste caso, passado, presente e futuro - a trindade
laica ou o Tempo en soi - é o verdadeiro protagonista do filme, chamado
também de "Há muito tempo" (primeira parte), "Agora",
(segunda parte), e "Futuro" (terceira parte). A princípio, isto dá à
história uma ordem aparente antes das digressões tomarem conta.
O
menino responde ao chamado mas não é capaz de dizer se é um pedido de ajuda, um
convite, uma ordem ou um aviso. Ele o é tudo isso? Imediatamente o espectador é
empurrado numa posição de ambiguidade máxima, a experiência eludindo o
paradigma convencional de conflito e identificação que tipifica o cinema de
Hollywood. Ruiz junta forças com uma linha inteiramente alternativa de cinema,
de Kenji Mizoguchi (uma antiga inspiração declarada) a Hou Hsiao-Hsien, que
oferece personagens inativos, quase sonâmbulos. Tais personagens possuem um
dever ou obrigação intrarrelativa para com forças ocultas, vozes carregadas
pelo vento - mesmo que tal noção seja logo desmentida pela declaração de
Manuel: "Não estou matando aula porque uma voz me chama, mas porque
escolhi assim".
Logo
ele se encontra face a face com ele mesmo seis anos mais velho. Só histórias
poderiam preencher - ou melhor, produzir - o intervalo. Assim como em Samuel
Beckett, só as histórias separam um do outro nossos seres dispersos. O efeito
da decisão de Manuel - num universo onde apenas os eventos mais distantes
afetam um ao outro - é brutal: a morte repentina de sua mãe. Vendo Manuel,
as questões dominantes são menos "o que acontecerá a seguir?" ou
"sobre o que é isto?" e mais: "de onde vêm estes fragmentos de
imagens e relatos? Quais são as regras da gênese deste filme?".
A
multiplicação de linhas narrativas prossegue através do filme. Para Ruiz, a
questão jamais pode ser a de "apenas" ir para a frente e para trás
pela história da vida de Manuel. Em vez disso, ele aplica as técnicas
narrativas delineadas em sua Poética do Cinema: as imagens vêm primeiro,
a narração vem em seguida. Imagens geram novas imagens, tornando a conexão e a
desconexão dos fragmentos-de-história numa "loteria de sincronismos e
diacronismos" (p.54). Os princípios organizativos da construção narrativa
de Ruiz nada tem a ver com aqueles que governam a realidade. Em Ruiz, as regras
generativas envolvem apenas imagens e códigos que escapam ao racionalismo
empobrecido do modelo de Hollywood. Seu objetivo é produzir, segundo sua frase après
Walter Benjamin, "uma nuvem de poeira de signos sem significado capaz de
conspirar contra as convicções visuais" (p.32).
Manuel
nº 2 entra em cena e recomeçamos num novo mundo possível. "Dentro de cada
série de histórias cada uma é um jogo em si," diz Ruiz (p.85). A questão
colocada é a seguinte: o que acontece quando há um novo elemento adicionado no
mesmo roteiro de antes, nomeadamente Manuel sendo observado pela mãe (enquanto
sai de casa). Neste caso, ele penetrará o jardim proibido, encontrará o
pescador, se fará novas perguntas e provocará um novo resultado: a punição e a
morte de seu pai.
No
terceiro mundo possível, ele escolhe a cautela de modo a salvar ambos os pais,
mas, de acordo com a exaustão de possibilidades que tal método Leibniziano
demanda, agora é o próprio Manuel quem deve morrer. Hora de recomeçar! O sonho
de Ruiz: "um filme feito apenas de pontos de partida" (p.112).
A
segunda parte (cuja natureza é a princípio confusa, já que começa imediatamente
depois das três mini-narrativas da primeira parte e antes mesmo do final do
primeiro episódio) é intitulada de "O Piquenique dos Sonhos". Embora
vagamente "se limite à trama", ela se desvia em muitas e diferentes
direções, onde o par temático comum/especial substitui o dualismo
familiar/desconhecido da primeira parte. (Cada parte é guiada por uma
"dominante" temática, um par de noções que tendem a trocar de sentido
entre si na medida de seu progresso).
Ruiz
inventa séries de mini-narrativas, cenas seriadas, acontecimentos ou vinhetas
que se seguem em sequência sobre trilhos paralelos. Seus pontos de encontro
ocasionais são mais impressionistas que progressivos. Esta parte envolve muita
enumeração e acumulação matemática. Nos deslocamos de uma ocupação com o Tempo,
o Destino e a Narração para problemas mais científicos de experimento,
aritmética e economia (uma personagem cujo nome é Sr. Dinheiro). Se Ruiz
permanece um Surrealista, isto está em sua obsessão por metáforas extraídas da
física a respeito de forças eletromagnéticas, ondas de interferência,
curtos-circuitos de energia e tênues conexões entre "vasos
comunicantes".
Numa
excursão escolar para a floresta, numa tentativa de fazer um sonho coletivo se
tornar real, O corpo de Manuel é roubado por um lenhador inclinado a se
preocupar com o declínio na criatividade "das pessoas". Logo
encontramos um bando de fantasma ex-piratas, pretexto para que Ruiz penetre um
laboratório sensual de faculdades translocadas no qual lágrimas mudam de gosto
e um baralho de cartas é escutado segundo lições sobre a verdade.
A
Parte Três (que começa no Episódio Dois), chamada de "A Pequena Campeã de
Xadrez", encarrega a narração em voz-off (até agora, desconhecida)
ao próprio Manuel. Ele se compromete a contar sua própria história, e acrescenta
que é "uma história que inventei em minha infância distante e que acontece
no futuro". O tom é menos barroco, mais gótico, na medida em que Ruiz
explora "as maravilhas da noite". A obsessão do cineasta nesta
sequência concerne a percepção e o deciframento de sinais e códigos secretos.
Numa festa infantil que acontece num Museu, questões são colocadas: "De
onde vêm essas vozes? Para onde vão as sombras?".
O
padrão geral da obra como um todo se torna, assim, clara. Se a Parte Um oferece
histórias filosóficas e a Parte Dois explora a ciência (de uma variedade um
tanto New Age), então a Parte Três funciona como uma poética audiovisual
que delineia uma equação entre o cinema e o mundo de sombras das histórias infantis.
É um chamado selvagem: "Meu amigo, a arte chama", diz uma criança
antes de iniciar uma canção (em inglês). Nesta Parte muito comovente, Ruiz o
cineasta se desembaraça de fato - acompanhado pela música igualmente hipnótica
de Jorge Arriagada. Da Ilha do Elefante (uma espécie de cinema dentro de um
elefante) chega o Capitão Pombo de Albuquerque. Ele encena um movimento de
teatro-de-sombras tão ameaçador, que a impressão é a de que algo além da vida e
da morte está em jogo. Como o mítico Barqueiro, o Capitão anuncia:
"Atravessar a fronteira é meu negócio. Eu atravesso a gente de um mundo ao
outro" - antes de morrer, esfaqueado nas costas por uma das sombras que
ele mesmo conjurou. A lição: a arte nasce do mundo obscuro das brincadeiras de
criança. Ela é um bombardeio de símbolos "que brotaram do nada"
(p.31), que fogem à decifração articulada. Mas, devido a suas origens
demoníacas, a arte está fadada a destruir seus praticantes.
A ars
combinatoria de Ruiz nunca é arbitrária, e o espectador não deve meramente
se satisfazer com o sabor do banquete audiovisual oferecido. É uma questão de
decifrar a forma generativa singular de cada obra individual: essas digressões
sem-fim que criam uma poética genética única para cada filme. Pois então qual é
a blueprint de Manuel na Ilha das Maravilhas? Ele nos leva numa
busca através dos mundos, primeiro, o do narrador, tecelão filosófico de
palavras e de mundos; segundo, o do laboratório de cálculo e computação da
ciência; e, terceiro, o das fontes genéticas da criatividade, da arte e da
vida. Uma busca pelo quê? Por aquela
imagem (ou, mais precisamente, por seu poder, seu "alcance"), a
imagem-Ur a partir da qual a narrativa pode fluir (como em Cidadão Kane):
neste caso, a luz amarela na noite da janela da casa dos pais, e a mão do
ladrão que agarra o tesouro roubado no jardim defronte a janela.
Em Manuel,
mais que em qualquer outro filme, o cinema de Ruiz nos leva a todos os lugares
de uma só vez. E, tendo-o feito, nos pergunta, numa final virada irônica:
"Você pode mesmo ver? Isto é o que desejava ver?".
1.
Raúl Ruiz, Poetics of Cinema (Paris: Éditions Dis Voir,1995).
Original em inglês disponível em:
http://rouge.com.au/2/manoel.html
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