No famoso ciclo
"luvas", Max Klinger trabalha o comportamento de homens e mulheres
imersos num novo ambiente social e sensorial. Suas gravuras se situam em uma
época da modernidade visual marcada pela dispersão perceptiva, quando os focos
de atenção, visualização e estímulo se multiplicam ao ponto da saturação. O
suporte da experiência subjetiva passa a ser um corpo cinético, deslizante,
entregue a trajetórias indeterminadas e repletas tanto de surpresas quanto de
riscos. Ao menos é assim que os estudos culturais nos ensinam – Jonathan
Crary, por exemplo, aborda a série A Glove sob esse ponto de vista...
... mas ele
"negligencia" o autor das outras imagens que vemos aqui. Em seus
estudos sobre Manet e a modernidade visual, Crary sequer cita Lumière. Seu
texto de O cinema e a invenção da vida moderna ("A visão
que se desprende: Manet e o observador atento no fim do século XIX")
tangencia o advento do cinema atentando não para a estética dos primeiros
filmes, tomadas lumièrianas inclusas, e sim para o contexto da cultura visual
ao qual o cinema teria se somado.
É uma atitude comum aos textos que
tratam o cinema como condensação emblemática de um conjunto de práticas da
modernidade, de transformações ocorridas na segunda metade do século XIX
sobretudo na esfera da tecnologia, do lazer e da vida cotidiana. Um tipo de
abordagem, ok, nada contra. Mas façamos um pouco diferente: busquemos no cinema
uma imagem que dialogue com as imagens que o precederam.
Aqui ao lado, vemos uma das
gravuras do ciclo, intitulada Action, que mostra um homem se
agachando para buscar a luva que alguma dama (a que está à sua frente, possivelmente)
deixou cair. Logo abaixo da gravura de Klinger, fotogramas de uma
"vista" de Lumière encenando a alopração de um patinador, rodeado
pelos olhares entretidos de uma modesta platéia. Um dos gestos dos patinadores
– o de se agachar – praticamente se repete nas duas obras, como se houvesse uma
memória antropológica dos gestos unindo seus reflexos motores, atravessando a
história das artes visuais.
Em Lumière, o pressuposto coletivo
do cinema ganha contorno não só no caráter público da projeção, mas sobretudo
no fato de que o olhar que conduz e injeta vida em seus filmes se dirige a
um conjunto de outros olhares. Mesmo uma imagem de cena
privada/familiar em Lumière contém, nela mesma, a consciência de um olhar
coletivo ao qual se dirige (questão imanente para ele, imerso no ápice da era
industrial e da convivência em espaços coletivos nas cidades?). As pessoas que
observam o patinador, de certo modo, corporificam esse olhar coletivo, dão-lhe
forma e fazem contracampo ao próprio lugar do espectador de cinema, assim
inscrito na representação. Aquela fileira de pessoas é um duplo fantasmático da
nascente platéia de cinema, interessada nesse corpo burlesco e aloprado que
gesticula, se desequilibra, faz piruetas, cai e levanta diante de seus olhos. O
corpo da comédia física.
O ponto de vista, na tomada de
Lumière, é fixo – e, fator mais importante, não se confunde ao olhar de nenhum
personagem dentro da cena. O patinador se abaixa para pegar o chapéu que
alguém, fora-de-quadro, atira em sua direção. Isso faz parte do divertimento
que está encenando. É um número circense, ligeiro, alegre, vulgar. Já em
Klinger, o personagem ignora o chapéu e vai direto na luva. Ele, diferentemente
do patinador de Lumière, seleciona, decupa a cena em que está inserido guiado
por uma atenção e uma intenção. E mais: seu contexto pede também algum grau de
anonimato, de segredo. Algo passa escondido naquela representação, está
interiorizado na montagem do olhar. Na tomada lumièriana, nada podemos ver para
além da comicidade gratuita da ação, da inocência de um mundo da gestualidade
pura, ou seja, do gesto como puro dispêndio de energia. Em A Glove:
Action, o olhar é já o desejo, o fetiche, a perversão. Embora anterior
ao cinematógrafo de Lumière, o registro de Klinger é fetichista e obsessivo
como o cinema da montagem e do plano-detalhe – portanto, o cinema posterior a
Lumière – viria a ser em alguns casos. Num rinque de patinação circula o riso,
a ação, a mobilidade; no outro circulam os fluxos de desejo e de atenção direcionando
o olhar (obcecado, pervertido). Num mesmo lugar público, dois registros do
olhar. E o cinema daria enorme espaço para ambos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/88/pgluvachapeu.htm)
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