por João Bénard da Costa
1. Segunda-feira, salvo erro, li no PÚBLICO, em letra pequenina, numa coluna pequenina de uma página pequenina, a notícia da morte de Richard Fleischer, que lá para o fim de 2006 (a 8 de Dezembro) ia fazer 90 anos.
Pouca
gente deve ter estremecido como eu estremeci. Não por questões de sensibilidade
(e daí...) mas por questões de conhecimento. Este cineasta americano, filho de
Max Fleischer, pioneiro máximo da animação (rival direto de Walt Disney nos
anos 20 e criador do famoso Popeye marujo) realizou 47 longas-metragens entre
1946 e 1990 (média superior a um filme por ano) mas nunca foi nome muito
divulgado fora de reduzidos círculos cinéfilos. Muitos se lembrarão de êxitos
tão grandes como 20000 Leagues Under the Sea (1954 e James
Mason como Capitão Nemo) ou Doctor Dolittle (1967), um must para
natais televisivos. Mas o realizador nunca teve “the name above the title”
e, embora ativíssimo nas décadas dos autores e da política deles, nem os
inventores da teoria, nem os seus seguidores de além-Atlântico, alguma vez o
puseram ao lado dos maiores. Não o trataram mal, ou seja, nem “maldito” se lhe
pode chamar. Mas raramente lhe elogiaram mais que as boas maneiras, o bom
gosto, o muito saber do ofício. “Se nunca foi um autor no sentido nobre do
termo, foi muito mais do que um simples artesão” é o elogio fúnebre que tenho
mais à mão para servir. E, como em alguns outros casos semelhantes (André De
Toth, John Farrow, Rowland V. Lee, Richard Quine, para não vos amassar com
listas e nomes), não percebo as reservas nem a segunda divisão.
Vou
de escantilhão até 50 anos atrás, o que não se pode dizer que seja tempo para
amores passageiros. Quando descobri James Dean, de pullover amarelo
a um canto do scope de East of Eden; quando vi Kim Novak, vestida
de fada embruxar-se pelo tronco nu de William Holden em Picnic;
quando Marilyn arrefeceu a roupa de baixo no congelador do seu frigorífico
em Seven Year Itch (e podia ir por aí fora, mas, como me
conheço, travo às quatro rodas); eu vi Joan Collins nesse Tivoli que me faz
logo suspirar, voar tão alto que chegou à lua, depois de rasgar com o pé em
riste um chapéu de sol japonês, último obstáculo entre ela e o êxtase. O filme
chamava-se The Girl in the Red Velvet Swing e há de nascer
quem me explique (nestes 50 anos não nasceu) por quê e em quê é menor do que
Kazan, Wilder, Logan ou Preminger, os grandes dessas minhas fictícias bodas de
ouro. E, no mesmo ano, ali para os lados do Politeama, Victor Mature, tão
injustamente apelidado de canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado
violento de assaltos sangrentos, que nunca mais me saiu da imaginação.
Fleischer outra vez em Violent Saturday. E, nos dois filmes, era
também a glória do scope a afirmar as virtudes cardeais, essas que nos faziam
dizer como o cinema era grande.
Se eu quiser lembrar-me de um filme sobre o horror militarista que não seja primário ou dogmático, tenho de ir procurá-lo em Between Heaven and Hell, nos corpos distorcidos de Robert Wagner e de Broderick Crawford. E mais me lembro do thriller magistral que é Compulsion (1959, com Orson Welles); do portentoso desequilíbrio ente o delírio e o escavado do parisiense Crack in the Mirror (Orson, outra vez, e Juliette Gréco, corria o ano de 1960); da viagem pelo corpo humano adentro para evitar um assassinato (Fantastic Voyage, 66) e, ai de mim, que não tenho tempo nem espaço para exaltar como devia The Boston Strangler (68), 10 Rillington Place (71), Soylent Green (73, despedida das telas de Edward G. Robinson), Mandingo (75) etc., etc., etc.
Alguns
me acusam de demasiado parcial e, em tempos, na Cinemateca, houve quase uma
tentativa de revolta de massas por eu ter incluído Mandingo entre
as obras-primas do cinema e defender que é obra, na gesta sulista, a colocar
acima de Gone with the Wind. Mas falem-me em Fleischer e eu vejo,
em scope, algumas das mais belas coisas que já vi, com James Mason ou com Ray
Milland, com Joan Collins ou com Raquel Welch, com Henry Fonda ou com George C.
Scott. E tudo isso eu vi, imenso e scópico, quando li neste jornal que o autor
de tudo isso (e de Barabbas também) morrera, na sua cama, aos
89 anos.
2. Mas, antes de particularizar, vou mexer na consciência que me andam a pesar quando não devem e a aliviar quando lhe deviam dizer duas verdades.
Em 1990, tinha Fleischer 73 anos e estava em plena forma, conheci-o nesse bizarro festival do sol da meia-noite que o meu amigo Peter von Bagh organiza todos os anos em Sudankula, na Finlândia, quando o dia nunca acaba e a noite nunca começa. von Bagh todos os anos convida alguns grandes esquecidos, ou alguns esquecidos grandes. Nesse ano, reuniu Fleischer e Oliveira, George Sidney (outro que tal, que tal como Fleischer) e Jean-Pierre Léaud. Ainda por lá havia o cubano Gutiérrez Alea e, aqui de Portugal, Luís de Pina e eu.
Poucos falavam as línguas todas, mas em poucos dias éramos um grupo de amigos. Até o cubano e Fleischer. No principio, tínhamos notado o gelo do homem do chocolate à simples referência ao nome de Fleischer, quanto mais à sua presença. Só depois nos lembramos que, em 1969, Richard Fleischer assinara Che!, com Omar Sharif no papel do herói, o que fora considerado um segundo assassinato de Guevara (“However you haven’t lived until you see Jack Palance play Fidel Castro”). Mas até esse glaciar se dissipou no círculo polar e Fleischer e Gutiérrez acabaram bons amigos, bebendo boa vodka.
Revendo então a rapariga do balouço, Lola Montès da minha estimação ou os planos-seqüência e o split screende The Boston Strangler (Meu Deus e esquecia-me eu de falar de Tony Curtis!), perguntei-me porque é que nunca tinha pensado num ciclo Fleischer em Lisboa. Falei com ele (olhos muito azuis, cabelos muito brancos, a simpatia em pessoa) e aceitou logo o convite. Disse-me que estava a escrever memórias e que contava publicá-las em 1993. Seria um bom ano para a retrospectiva. Depois escrevemo-nos (guardo cartas de Fleischer na Cinemateca), as memórias saíram - Just Tell Me When to Cry - mas, quando começaram as buscas das cópias, eram pálidas e louras as cores que jamais vira tão verdes ou tão encarnadas. Resolvi adiar, até que houvesse material mais condigno. Nunca desisti, mas o tempo foi desistindo por mim. O gênero de coisas que nunca se faz, mas que eu, em me distraindo, deixo correr até ser tarde demais. Agora, há melhores cópias. Mas não pode haver um Ciclo Fleischer com Fleischer, porque Fleischer se foi embora para não mais voltar. E não acredito que haja nunca um ciclo Fleischer, porque o único que o podia organizar - modéstia à parte, ou não desfazendo, como preferirem - está a três meses de ser abatido ao ativo, em tempos em que a faca e o queijo se juntaram em boas mãos. Richard Fleischer não é comida para ratos, ainda por cima daquela espécie que, ao contrário da Alfreda de Agustina e de Oliveira, não foi educada a roquefort nem a camembert. Passemos a coisas mais alegres.
3.
Alegres talvez não seja a melhor palavra. Mas raríssimos exemplos conheço de
sensualidade transbordante e erotismo a transpirar por todos os poros
como The Girl in the Red Velvet Swing, o filme com que comecei, o
filme com que quero acabar. Na base um caso verídico. O escândalo Thaw-White
quando, em 1906, o arquimilionário Thaw (Farley Granger, no filme) matou a tiro
o celebérrimo arquiteto Stanford White (o autor da biblioteca de Boston, do
Arco de Washington e do Madison Square Garden, Ray Milland no filme). Ambos
assistiam a uma representação de Mam’zelle Champagne, no restaurante do terraço
do dito Madison Square Garden. No palco cantava-se I could have a
million girls, mas, no restaurante, o assassino clamou bem alto, antes de
se entregar à polícia: “Matei este homem porque ele depravou a minha mulher.”
Harry Thaw, o milionário, estava casado há onze meses com uma ex-corista, então
com 20 anos (Joan Collins). O “depravador” tinha 50.
Escrevi
“depravador” entre aspas mas não as devia ter usado. O que se passa desde que,
por acaso, o arquiteto repara na anônima corista (e só repara à segunda vez) é
uma depravação consciente de um sedutor a uma rapariga facilmente seduzível.
Stanford White era especialista em festas privadas, numa garçonnière escondida
nas traseiras de uma loja de brinquedos. Joan Collins entra lá para brincar,
prova caviar que nunca tinha provado (“It’s better with champagne - one
glass, just one”) mas quando lá volta já não é para brincar, nem só para
uma taça de champanhe. Depois, avança para o quarto do arquiteto, que tem o céu
por teto e um balouço vermelho pendurado nele. “Curiosity kill the caviar girl.”
Ninguém deve balouçar tanto. Não devia haver veludos tão encarnados, nem tais
atrações pelas alturas. Quando White entra no quarto, já ninguém pode sair
dali. “Midsummer nights dreams”? Pelo menos, como ele diz, “you are
much too pretty” e, pelo menos nós vemos, as mãos dela eram mãos como as de
nenhuma outra mulher. E os dentes dela, ou o dente dela, o dente de Joan
Collins, a da série Dynasty, mas sobretudo a rapariga do balouço
vermelho, a rainha do pecado de Hawks ou a sofisticada allumeuse de
McCarey.
A
história não acaba bem, já sabemos. Mas o que há de só visto é a sensualidade
de Joan Collins a abrir-se e a fechar-se, quando o homem que não queria casar
com ela pretende fazer-lhe de pai e a manda para um colégio sem homens.
Ressurge então o milionário efeminado que vinha lá do princípio. Água mole... E
casam-se. Só que a noiva conta ao noivo, na noite antenupcial, as noites do
arquiteto e as noites do balouço. E o marido é homem de vinganças terríveis.
Tão terríveis como exigir que, de cada vez que a mulher se refira ao ex-amante,
o trate por “the beast”. Tão longe tão longe não vai ela, mas ficam num
compromisso. De cada vez que os olhos azuis de Ray Milland, os tais olhos
depravadores, voltarem a passar por perto, ela dirá “B” para o designar. Tantas
vezes o tem que dizer, que um dia Farley Granger acaba a tiro com a segunda
letra do alfabeto.
O
sedutor acabou morto. O marido semi-enganado na prisão. Ela - a rapariga do
balouço vermelho - a repetir em teatros baratos o seu número favorito: balouçar-se
sobre platéias ululantes, transformando em eterno retorno aquela noite no
quarto de que jamais se conseguiu desprender.
No mesmo ano, em França, Max Ophüls filmou outro balouço eterno. Coincidências a mais? Ou filmes e realizadores que são como sismógrafos?
Saudades
de Richard Fleischer, esse que me deu a ver a carne estremecente de Joan
Collins e as almas doutras mulheres.
(2
de Abril de 2006)
Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-fleischer.htm
Obituário: Budd Boetticher
"Não
se deve temer nada nem ninguém quando se quer fazer um filme."
John Cassavetes
John Cassavetes
Budd
Boetticher foi um desses cineastas que tiveram uma vida tão fascinante quanto a
obra. Cineasta "durão" e aventureiro, Budd é o símbolo do que o
cinema americano já teve de mais autêntico e puro. Mas, como todo artista
maldito, também é um enigma, um mito que venceu e fracassou para acabar
morrendo no ostracismo em seu rancho na Califórnia.
Depois
de trabalhar com o nome de Oscar Boetticher, já em algumas obras encomendadas,
Budd conseguiu dirigir seu primeiro projeto pessoal, The Bullfighter
and The Lady. Neste filme sobre touradas – que segundo a lenda foi montado
por John Ford, grande admirador de Budd –, o cineasta mostrou sua veia
realista, com longas seqüências de touradas que beiram o documentário e
transmitem todo o rigor que viria ser a marca do autor. Sucesso considerável
depois de sua estréia, The Bullfighter... lhe ajudou a ser
contratado pela Universal, onde conseguiu, nos westerns com Randolph Scott, o
mesmo que Anthony Mann fez com Jimmy Stewart e John Ford com John Wayne: a
oportunidade de criar uma identidade autoral numa parceria em que as
personalidades do diretor e de seu protagonista se ligam covalentemente.
Nesses
westerns "naturalistas", Boetticher pôde desenvolver as obsessões
típicas do gênero: o valor do sacrifício, a honra antes do prazer... Mas Budd
nunca foi homem de discursos ou moralismos piegas. Como Hemingway na literaratura,
o olhar objetivo e distanciado do cineasta encontra a reflexão na ação, no
gesto, na atitude. Uma austeridade estilística que carrega no momento físico,
"no instante decisivo da superação", a própria inquietação
existencial. Tantos elementos que juntam o universo do western com o das
touradas, esporte pelo qual Boetticher foi apaixonado na juventude.
Tal
paixão levou o cineasta ao México, onde, depois de acumular uma boa fortuna
pessoal, resolveu filmar por conta própria um velho projeto: Arruzza,
documentário sobre o toureiro Carlos Arruzza. Budd propôs o projeto a Jack
Warner, que disse: "te dou três milhões...mas tem que fazer com o Tony
Curtis." A exigência indignou Budd, que queria uma obra pura e recusava
"negociar uma só tomada". Seu objetivo era rodar o filme em seis
meses, mas Arruzza tomou de Budd longos oito anos e todo seu
dinheiro. No final, estava quebrado. Também tinha se apaixonado por uma
"linda garota" e viu-se obrigado a tomar uma decisão. Disse a ela:
"Querida, deixe-me explicar uma coisa: te amo. Mas, se me casar contigo, é
porque te amo e porque tenho a responsabilidade de te manter. Por isso, um dia
vou me ver forçado a dirigir um episódio de Batman e acabarei te
detestando." Não casou. Mais tarde, no desespero da miséria, Budd fez de
tudo, ficou doente, quase perdeu um pulmão. Acabou uma semana na prisão e
outras cinco num hospício (as autoridades mexicanas não sabiam o que fazer com
ele) por ter assaltado um turista americano.
Boetticher
se recuperou mais tarde graças a John Sturges, que comprou um velho roteiro seu
e lhe permitiu, com uma ajudinha financeira, finalmente terminar, por caminhos
tortos, Arruzza. Foi seu último filme antes de A Time for
Dying, de 1969.
Budd
sempre foi um cara direto, muito sincero. No série documentária "Cinéastes
de notre temps", Phillippe Garnier e Claude Ventura levaram-no para locais
que lembram filmes como Ride Lonesome e, fascinados com tudo
que aquele homem representava, começaram a lhe perguntar um pouco demais sobre
coisas do Oeste. Budd explodiu de raiva e fuzilou: "Por que vocês só me
vêm como um cowboy? Isso não é Eu! Escrevo e dirijo filmes, só isso
que faço. Fiz uma dezena de westerns, mas também fiz outros quarenta filmes!
Por que não botam um pouco de "mim" nesse filmizinho de vocês!"
Era o tipo de cara idealista, um cabeça-dura que insistia em seus sonhos. Isso
o levou muitas vezes à solidão, mas, como o bom individualista que era, não se
deixou afetar. O individualismo de Budd, por sinal, é visível em seus westerns,
nos quais, diferente dos de Anthony Mann, o personagem não luta por uma
comunidade mas, sim, pela sua dignidade.
Recentemente,
numa entrevista ao Cahiers du Cinema, ele disse: "Nunca gostei de esportes
coletivos. Quando jovem, gostava dos esportes individuais, como corrida."
Nada surpreendente: assim como seus personagens, Budd sempre enfrentou seu
destino como um herói solitário.
Budd
Boetticher morreu na semana passada aos 85 anos. A imprensa brasileira pouco
falou sobre o assunto.
Bolívar
Torres
Texto publicado em http://www.contracampo.com.br/34/obituariobudd.htm
Allan Dwan
por Serge Daney
Discreto a ponto de
passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em profundidade ele
não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle (
o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado
incansável , o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele
é mais que isso. Ao curso de uma abundante ( e desigual) produção de filmes
igualmente fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados
por uma mesma precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser
chamado: um certo olhar sobre o mundo.
É que a modéstia e a
paciência são suas qualidades: cineasta maldito, Dwan faz da maldição o tema de
seus filmes. Maldição estranha,que faz com que ninguém jamais seja julgado
segundo suas motivações. Vemos correntemente em Dwan um dos representantes
típicos do cinema de aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é, ao
invés do culto da aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento
também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por
intermináveis digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões,
destes parênteses: tal filme que começa com uma cena de violência se coloca,
dez minutos mais tarde, sob os traços de um melodrama familiar ou de uma
comédia leve. Haviam julgado mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da
intriga ( ou antes: se estas são tão pouco ocultadas), é para melhor descobrir
os fios da aventura, a verdadeira, aquela que se tece na intimidade dos seres.
Secreta, a arte de
Dwan já o seria por sua modéstia, por sua recusa ao exibicionismo, se os heróis
também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar, este mesmo
empenho em salvaguardar- no próprio seio da violência- a intimidade dos dramas
pessoais. Exigência de pudor, onde os mal-entendidos valem mais que as indiscrições,
onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. O verdadeiro
problema se coloca, desde logo, não nas peripécias da ação mas todas vezes que
a vida íntima dos heróis é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que
lhe pertence intimamente, e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas
palavras. Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua
justificação no mundo. Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de
se casar com uma piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s Partner, a
correr os maiores riscos, a sacrificar tudo, até mesmo esta amizade. Em
Surrender, onde a situação é a mesma, há perpetuamente um décalage ( um hiato,
um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue: em nenhum momento o
xerife compreende as motivações verdadeiras do outro, e isto até o fim do
filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a amizade entre duas
ruivas, Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça
em segredo. Em outros, são estas vinganças pessoais, silenciadas até o fim (
Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os
outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros.
Assim, sempre os atos serão mal interpretados, suas razões profundas
insondáveis, mas em Dwan, é este segredo, esta possibilidade de intimidade o
que faz a diferença.
Para além dos
inevitáveis mal-entendidos, as últimas cenas de Tennesee’s Partner- a
obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade
reencontrada, deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos
outros. O movimento dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus
personagens, excessivamente fechados, muito vulneráveis, a se abrir lentamente.
Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o
levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com os outros.A partir daí, uma
ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se
precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido não
tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar
em relação a isso é The restless Breed, que é também a história de uma vingança
secreta. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta
se esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair:
um padre, uma dançarina, um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da
justiça o direito de vingá-lo.
Aí, as digressões, o
tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um cineasta sem
rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho mais curto
entre dois pontos não é mais a reta; é o meando que é necessário; o filme se
torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o
cineasta parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta
“cavidade”( creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta
que o serve e que dele se serve.
Assim se explica que
Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout bois), se
acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não é
seguro afirmar que ele conservaria, no cadre de uma superprodução, esta parte
de invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o
inesperado. Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais
simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso
perdê-lo em demasia para lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que
Dwan, o Decano dos cineastas de aventura, é também aquele que se arrisca mais.
Dicionário do cinema,
Éditions Universitaires, 1966.
Tradução: Luiz Soares Júnior, publicada em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/06/allan-dwan-por-serge-daney.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário