segunda-feira, 30 de abril de 2018

O REALIZADOR DO BALOUÇO VERMELHO


por João Bénard da Costa

1. Segunda-feira, salvo erro, li no PÚBLICO, em letra pequenina, numa coluna pequenina de uma página pequenina, a notícia da morte de Richard Fleischer, que lá para o fim de 2006 (a 8 de Dezembro) ia fazer 90 anos.

Pouca gente deve ter estremecido como eu estremeci. Não por questões de sensibilidade (e daí...) mas por questões de conhecimento. Este cineasta americano, filho de Max Fleischer, pioneiro máximo da animação (rival direto de Walt Disney nos anos 20 e criador do famoso Popeye marujo) realizou 47 longas-metragens entre 1946 e 1990 (média superior a um filme por ano) mas nunca foi nome muito divulgado fora de reduzidos círculos cinéfilos. Muitos se lembrarão de êxitos tão grandes como 20000 Leagues Under the Sea (1954 e James Mason como Capitão Nemo) ou Doctor Dolittle (1967), um must para natais televisivos. Mas o realizador nunca teve “the name above the title” e, embora ativíssimo nas décadas dos autores e da política deles, nem os inventores da teoria, nem os seus seguidores de além-Atlântico, alguma vez o puseram ao lado dos maiores. Não o trataram mal, ou seja, nem “maldito” se lhe pode chamar. Mas raramente lhe elogiaram mais que as boas maneiras, o bom gosto, o muito saber do ofício. “Se nunca foi um autor no sentido nobre do termo, foi muito mais do que um simples artesão” é o elogio fúnebre que tenho mais à mão para servir. E, como em alguns outros casos semelhantes (André De Toth, John Farrow, Rowland V. Lee, Richard Quine, para não vos amassar com listas e nomes), não percebo as reservas nem a segunda divisão.

Vou de escantilhão até 50 anos atrás, o que não se pode dizer que seja tempo para amores passageiros. Quando descobri James Dean, de pullover amarelo a um canto do scope de East of Eden; quando vi Kim Novak, vestida de fada embruxar-se pelo tronco nu de William Holden em Picnic; quando Marilyn arrefeceu a roupa de baixo no congelador do seu frigorífico em Seven Year Itch (e podia ir por aí fora, mas, como me conheço, travo às quatro rodas); eu vi Joan Collins nesse Tivoli que me faz logo suspirar, voar tão alto que chegou à lua, depois de rasgar com o pé em riste um chapéu de sol japonês, último obstáculo entre ela e o êxtase. O filme chamava-se The Girl in the Red Velvet Swing e há de nascer quem me explique (nestes 50 anos não nasceu) por quê e em quê é menor do que Kazan, Wilder, Logan ou Preminger, os grandes dessas minhas fictícias bodas de ouro. E, no mesmo ano, ali para os lados do Politeama, Victor Mature, tão injustamente apelidado de canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado violento de assaltos sangrentos, que nunca mais me saiu da imaginação. Fleischer outra vez em Violent Saturday. E, nos dois filmes, era também a glória do scope a afirmar as virtudes cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.

Se eu quiser lembrar-me de um filme sobre o horror militarista que não seja primário ou dogmático, tenho de ir procurá-lo em Between Heaven and Hell, nos corpos distorcidos de Robert Wagner e de Broderick Crawford. E mais me lembro do thriller magistral que é Compulsion (1959, com Orson Welles); do portentoso desequilíbrio ente o delírio e o escavado do parisiense Crack in the Mirror (Orson, outra vez, e Juliette Gréco, corria o ano de 1960); da viagem pelo corpo humano adentro para evitar um assassinato (Fantastic Voyage, 66) e, ai de mim, que não tenho tempo nem espaço para exaltar como devia The Boston Strangler (68), 10 Rillington Place (71), Soylent Green (73, despedida das telas de Edward G. Robinson), Mandingo (75) etc., etc., etc.

Alguns me acusam de demasiado parcial e, em tempos, na Cinemateca, houve quase uma tentativa de revolta de massas por eu ter incluído Mandingo entre as obras-primas do cinema e defender que é obra, na gesta sulista, a colocar acima de Gone with the Wind. Mas falem-me em Fleischer e eu vejo, em scope, algumas das mais belas coisas que já vi, com James Mason ou com Ray Milland, com Joan Collins ou com Raquel Welch, com Henry Fonda ou com George C. Scott. E tudo isso eu vi, imenso e scópico, quando li neste jornal que o autor de tudo isso (e de Barabbas também) morrera, na sua cama, aos 89 anos.

2. Mas, antes de particularizar, vou mexer na consciência que me andam a pesar quando não devem e a aliviar quando lhe deviam dizer duas verdades.

Em 1990, tinha Fleischer 73 anos e estava em plena forma, conheci-o nesse bizarro festival do sol da meia-noite que o meu amigo Peter von Bagh organiza todos os anos em Sudankula, na Finlândia, quando o dia nunca acaba e a noite nunca começa. von Bagh todos os anos convida alguns grandes esquecidos, ou alguns esquecidos grandes. Nesse ano, reuniu Fleischer e Oliveira, George Sidney (outro que tal, que tal como Fleischer) e Jean-Pierre Léaud. Ainda por lá havia o cubano Gutiérrez Alea e, aqui de Portugal, Luís de Pina e eu.

Poucos falavam as línguas todas, mas em poucos dias éramos um grupo de amigos. Até o cubano e Fleischer. No principio, tínhamos notado o gelo do homem do chocolate à simples referência ao nome de Fleischer, quanto mais à sua presença. Só depois nos lembramos que, em 1969, Richard Fleischer assinara Che!, com Omar Sharif no papel do herói, o que fora considerado um segundo assassinato de Guevara (“However you haven’t lived until you see Jack Palance play Fidel Castro”). Mas até esse glaciar se dissipou no círculo polar e Fleischer e Gutiérrez acabaram bons amigos, bebendo boa vodka.

Revendo então a rapariga do balouço, Lola Montès da minha estimação ou os planos-seqüência e o split screende The Boston Strangler (Meu Deus e esquecia-me eu de falar de Tony Curtis!), perguntei-me porque é que nunca tinha pensado num ciclo Fleischer em Lisboa. Falei com ele (olhos muito azuis, cabelos muito brancos, a simpatia em pessoa) e aceitou logo o convite. Disse-me que estava a escrever memórias e que contava publicá-las em 1993. Seria um bom ano para a retrospectiva. Depois escrevemo-nos (guardo cartas de Fleischer na Cinemateca), as memórias saíram - Just Tell Me When to Cry - mas, quando começaram as buscas das cópias, eram pálidas e louras as cores que jamais vira tão verdes ou tão encarnadas. Resolvi adiar, até que houvesse material mais condigno. Nunca desisti, mas o tempo foi desistindo por mim. O gênero de coisas que nunca se faz, mas que eu, em me distraindo, deixo correr até ser tarde demais. Agora, há melhores cópias. Mas não pode haver um Ciclo Fleischer com Fleischer, porque Fleischer se foi embora para não mais voltar. E não acredito que haja nunca um ciclo Fleischer, porque o único que o podia organizar - modéstia à parte, ou não desfazendo, como preferirem - está a três meses de ser abatido ao ativo, em tempos em que a faca e o queijo se juntaram em boas mãos. Richard Fleischer não é comida para ratos, ainda por cima daquela espécie que, ao contrário da Alfreda de Agustina e de Oliveira, não foi educada a roquefort nem a camembert. Passemos a coisas mais alegres.

3. Alegres talvez não seja a melhor palavra. Mas raríssimos exemplos conheço de sensualidade transbordante e erotismo a transpirar por todos os poros como The Girl in the Red Velvet Swing, o filme com que comecei, o filme com que quero acabar. Na base um caso verídico. O escândalo Thaw-White quando, em 1906, o arquimilionário Thaw (Farley Granger, no filme) matou a tiro o celebérrimo arquiteto Stanford White (o autor da biblioteca de Boston, do Arco de Washington e do Madison Square Garden, Ray Milland no filme). Ambos assistiam a uma representação de Mam’zelle Champagne, no restaurante do terraço do dito Madison Square Garden. No palco cantava-se I could have a million girls, mas, no restaurante, o assassino clamou bem alto, antes de se entregar à polícia: “Matei este homem porque ele depravou a minha mulher.” Harry Thaw, o milionário, estava casado há onze meses com uma ex-corista, então com 20 anos (Joan Collins). O “depravador” tinha 50.

Escrevi “depravador” entre aspas mas não as devia ter usado. O que se passa desde que, por acaso, o arquiteto repara na anônima corista (e só repara à segunda vez) é uma depravação consciente de um sedutor a uma rapariga facilmente seduzível. Stanford White era especialista em festas privadas, numa garçonnière escondida nas traseiras de uma loja de brinquedos. Joan Collins entra lá para brincar, prova caviar que nunca tinha provado (“It’s better with champagne - one glass, just one”) mas quando lá volta já não é para brincar, nem só para uma taça de champanhe. Depois, avança para o quarto do arquiteto, que tem o céu por teto e um balouço vermelho pendurado nele. “Curiosity kill the caviar girl.” Ninguém deve balouçar tanto. Não devia haver veludos tão encarnados, nem tais atrações pelas alturas. Quando White entra no quarto, já ninguém pode sair dali. “Midsummer nights dreams”? Pelo menos, como ele diz, “you are much too pretty” e, pelo menos nós vemos, as mãos dela eram mãos como as de nenhuma outra mulher. E os dentes dela, ou o dente dela, o dente de Joan Collins, a da série Dynasty, mas sobretudo a rapariga do balouço vermelho, a rainha do pecado de Hawks ou a sofisticada allumeuse de McCarey.

A história não acaba bem, já sabemos. Mas o que há de só visto é a sensualidade de Joan Collins a abrir-se e a fechar-se, quando o homem que não queria casar com ela pretende fazer-lhe de pai e a manda para um colégio sem homens. Ressurge então o milionário efeminado que vinha lá do princípio. Água mole... E casam-se. Só que a noiva conta ao noivo, na noite antenupcial, as noites do arquiteto e as noites do balouço. E o marido é homem de vinganças terríveis. Tão terríveis como exigir que, de cada vez que a mulher se refira ao ex-amante, o trate por “the beast”. Tão longe tão longe não vai ela, mas ficam num compromisso. De cada vez que os olhos azuis de Ray Milland, os tais olhos depravadores, voltarem a passar por perto, ela dirá “B” para o designar. Tantas vezes o tem que dizer, que um dia Farley Granger acaba a tiro com a segunda letra do alfabeto.

O sedutor acabou morto. O marido semi-enganado na prisão. Ela - a rapariga do balouço vermelho - a repetir em teatros baratos o seu número favorito: balouçar-se sobre platéias ululantes, transformando em eterno retorno aquela noite no quarto de que jamais se conseguiu desprender.

No mesmo ano, em França, Max Ophüls filmou outro balouço eterno. Coincidências a mais? Ou filmes e realizadores que são como sismógrafos?

Saudades de Richard Fleischer, esse que me deu a ver a carne estremecente de Joan Collins e as almas doutras mulheres.

(2 de Abril de 2006)
Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-fleischer.htm


Obituário: Budd Boetticher


"Não se deve temer nada nem ninguém quando se quer fazer um filme."
John Cassavetes

Budd Boetticher foi um desses cineastas que tiveram uma vida tão fascinante quanto a obra. Cineasta "durão" e aventureiro, Budd é o símbolo do que o cinema americano já teve de mais autêntico e puro. Mas, como todo artista maldito, também é um enigma, um mito que venceu e fracassou para acabar morrendo no ostracismo em seu rancho na Califórnia.

Depois de trabalhar com o nome de Oscar Boetticher, já em algumas obras encomendadas, Budd conseguiu dirigir seu primeiro projeto pessoal, The Bullfighter and The Lady. Neste filme sobre touradas – que segundo a lenda foi montado por John Ford, grande admirador de Budd –, o cineasta mostrou sua veia realista, com longas seqüências de touradas que beiram o documentário e transmitem todo o rigor que viria ser a marca do autor. Sucesso considerável depois de sua estréia, The Bullfighter... lhe ajudou a ser contratado pela Universal, onde conseguiu, nos westerns com Randolph Scott, o mesmo que Anthony Mann fez com Jimmy Stewart e John Ford com John Wayne: a oportunidade de criar uma identidade autoral numa parceria em que as personalidades do diretor e de seu protagonista se ligam covalentemente.

Nesses westerns "naturalistas", Boetticher pôde desenvolver as obsessões típicas do gênero: o valor do sacrifício, a honra antes do prazer... Mas Budd nunca foi homem de discursos ou moralismos piegas. Como Hemingway na literaratura, o olhar objetivo e distanciado do cineasta encontra a reflexão na ação, no gesto, na atitude. Uma austeridade estilística que carrega no momento físico, "no instante decisivo da superação", a própria inquietação existencial. Tantos elementos que juntam o universo do western com o das touradas, esporte pelo qual Boetticher foi apaixonado na juventude.

Tal paixão levou o cineasta ao México, onde, depois de acumular uma boa fortuna pessoal, resolveu filmar por conta própria um velho projeto: Arruzza, documentário sobre o toureiro Carlos Arruzza. Budd propôs o projeto a Jack Warner, que disse: "te dou três milhões...mas tem que fazer com o Tony Curtis." A exigência indignou Budd, que queria uma obra pura e recusava "negociar uma só tomada". Seu objetivo era rodar o filme em seis meses, mas Arruzza tomou de Budd longos oito anos e todo seu dinheiro. No final, estava quebrado. Também tinha se apaixonado por uma "linda garota" e viu-se obrigado a tomar uma decisão. Disse a ela: "Querida, deixe-me explicar uma coisa: te amo. Mas, se me casar contigo, é porque te amo e porque tenho a responsabilidade de te manter. Por isso, um dia vou me ver forçado a dirigir um episódio de Batman e acabarei te detestando." Não casou. Mais tarde, no desespero da miséria, Budd fez de tudo, ficou doente, quase perdeu um pulmão. Acabou uma semana na prisão e outras cinco num hospício (as autoridades mexicanas não sabiam o que fazer com ele) por ter assaltado um turista americano.

Boetticher se recuperou mais tarde graças a John Sturges, que comprou um velho roteiro seu e lhe permitiu, com uma ajudinha financeira, finalmente terminar, por caminhos tortos, Arruzza. Foi seu último filme antes de A Time for Dying, de 1969.

Budd sempre foi um cara direto, muito sincero. No série documentária "Cinéastes de notre temps", Phillippe Garnier e Claude Ventura levaram-no para locais que lembram filmes como Ride Lonesome e, fascinados com tudo que aquele homem representava, começaram a lhe perguntar um pouco demais sobre coisas do Oeste. Budd explodiu de raiva e fuzilou: "Por que vocês só me vêm como um cowboy? Isso não é Eu! Escrevo e dirijo filmes, só isso que faço. Fiz uma dezena de westerns, mas também fiz outros quarenta filmes! Por que não botam um pouco de "mim" nesse filmizinho de vocês!" Era o tipo de cara idealista, um cabeça-dura que insistia em seus sonhos. Isso o levou muitas vezes à solidão, mas, como o bom individualista que era, não se deixou afetar. O individualismo de Budd, por sinal, é visível em seus westerns, nos quais, diferente dos de Anthony Mann, o personagem não luta por uma comunidade mas, sim, pela sua dignidade.

Recentemente, numa entrevista ao Cahiers du Cinema, ele disse: "Nunca gostei de esportes coletivos. Quando jovem, gostava dos esportes individuais, como corrida." Nada surpreendente: assim como seus personagens, Budd sempre enfrentou seu destino como um herói solitário.

Budd Boetticher morreu na semana passada aos 85 anos. A imprensa brasileira pouco falou sobre o assunto.

Bolívar Torres
Texto publicado em http://www.contracampo.com.br/34/obituariobudd.htm


Allan Dwan


por Serge Daney

Discreto a ponto de passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em profundidade ele não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle ( o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado incansável , o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele é mais que isso. Ao curso de uma abundante ( e desigual) produção de filmes igualmente fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados por uma mesma precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo olhar sobre o mundo.

É que a modéstia e a paciência são suas qualidades: cineasta maldito, Dwan faz da maldição o tema de seus filmes. Maldição estranha,que faz com que ninguém jamais seja julgado segundo suas motivações. Vemos correntemente em Dwan um dos representantes típicos do cinema de aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é, ao invés do culto da aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões, destes parênteses: tal filme que começa com uma cena de violência se coloca, dez minutos mais tarde, sob os traços de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. Haviam julgado mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da intriga ( ou antes: se estas são tão pouco ocultadas), é para melhor descobrir os fios da aventura, a verdadeira, aquela que se tece na intimidade dos seres.

Secreta, a arte de Dwan já o seria por sua modéstia, por sua recusa ao exibicionismo, se os heróis também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar, este mesmo empenho em salvaguardar- no próprio seio da violência- a intimidade dos dramas pessoais. Exigência de pudor, onde os mal-entendidos valem mais que as indiscrições, onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. O verdadeiro problema se coloca, desde logo, não nas peripécias da ação mas todas vezes que a vida íntima dos heróis é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que lhe pertence intimamente, e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras. Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua justificação no mundo. Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de se casar com uma piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s Partner, a correr os maiores riscos, a sacrificar tudo, até mesmo esta amizade. Em Surrender, onde a situação é a mesma, há perpetuamente um décalage ( um hiato, um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue: em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do outro, e isto até o fim do filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a amizade entre duas ruivas, Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça em segredo. Em outros, são estas vinganças pessoais, silenciadas até o fim ( Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros. Assim, sempre os atos serão mal interpretados, suas razões profundas insondáveis, mas em Dwan, é este segredo, esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença.

Para além dos inevitáveis mal-entendidos, as últimas cenas de Tennesee’s Partner- a obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade reencontrada, deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos outros. O movimento dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus personagens, excessivamente fechados, muito vulneráveis, a se abrir lentamente. Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com os outros.A partir daí, uma ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido não tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar em relação a isso é The restless Breed, que é também a história de uma vingança secreta. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta se esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre, uma dançarina, um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito de vingá-lo.

Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho mais curto entre dois pontos não é mais a reta; é o meando que é necessário; o filme se torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta “cavidade”( creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o serve e que dele se serve.

Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout bois), se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não é seguro afirmar que ele conservaria, no cadre de uma superprodução, esta parte de invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado. Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso perdê-lo em demasia para lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que Dwan, o Decano dos cineastas de aventura, é também aquele que se arrisca mais.

Dicionário do cinema, Éditions Universitaires, 1966.
Tradução: Luiz Soares Júnior, publicada em http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2009/06/allan-dwan-por-serge-daney.html

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