domingo, 15 de março de 2020

A profunda obsessão no Cinema Maneirista

por
Catalina Sofia



Existe algo de muito especial nesse cinema nascido de um ''momento maneirista'', que não é algo exclusivo dele, mas que é essencial para a concepção e compreensão dessas obras, que é a curiosidade latente e a consciência inerente do que veio antes. 

E do que vem antes até mesmo do cinema. Com a pintura, das imagens estáticas, com ilusão de movimento, com profundidade e perspectiva. Com a fotografia, as imagens aproximadas a uma cápsula de aprisionamento cada vez mais próximo do real. E por fim, com o cinema de fato, trazendo consigo uma nova concepção de imagem que tanto carrega ideias dessas anteriores, como também trás consigo muitas questões que lhe são próprias, assim como toda arte. 

Mas por qual motivo falar disso? Como eu disse acima, isso faz parte da curiosidade, da investigação. Bazin, em seu texto ''A Ontologia da Imagem Fotográfica'', diz que o pecado original da pintura se inicia quando há a descoberta da perspectiva, uma vez que isso faz com que a pintura queira cada vez se aproximar de uma representação real do mundo e com isso, a liberdade na realização das obras de alguma forma se limitaria. 

Bom, nesse mesmo texto, ele diz que logo em seguida viria a fotografia para enfim libertar a pintura dessa fidelidade com o real, com a obsessão de manter vivo um fragmento do que se vê e se quer rever, considerando isso um grande acontecimento nas artes plásticas. A imagem que vamos obter a partir disso é a imagem do que estamos vendo simultaneamente ao fazer esse registro, algo que era questionado na pintura. 

A partir disso, podemos pensar nas inúmeras possibilidades de modificar a imagem fotográfica e até mesmo cinematográfica, que viria ser talvez a consequência de uma longa relação com a imagem. Aqui podemos questionar até onde vai essa objetividade nessa concepção da imagem e aqui talvez entre uma das principais investigações, dentre as quais desde o começo do texto estamos precisando fazer. 

Esse cinema tem uma obsessão em testar os limites que essa imagem aparentemente objetiva pode ter, um plano cinematográfico pode muito ter a ver com um quadro em vários aspectos, poderíamos citar muitos e é uma tarefa, pelo menos pra mim, muito interessante. Mas a ranhura que existe entre essas é o que está em destaque aqui, no cinema existe a possibilidade de trabalhar com a imagem em movimento real, não somente isso, uma, duas, três, inúmeras imagens oriundas não somente do uso da perspectiva e profundidade (naturais a esse tipo de registro), mas da junção que o corte permite. E aqui já temos anos de história do cinema, que espero, já termos passado pelos primórdios e a ideia de que aquele cinema faria apenas um ''mero registro''. 

Entender isso é primordial para entender a riqueza do que se é possível, é a consciência que cito no início do texto. Em Profondo Rosso (1975), de Dario Argento, lidamos exatamente com a investigação, isso se inicia na narrativa quando somos inseridos na investigação de um crime e isso se estende à forma. De maneira a trazer uma sensação completa de pensamento da imagem, o personagem investiga junto ao espectador, somos guiados. 


O personagem principal, Marcus Daly, ao ensaiar sua banda de jazz nos diz: ''É, está muito bom. Muito bom. Talvez até bom demais. Muito limpo, preciso, muito formal… precisa ser um pouco mais ''sujo'', entendem o que eu digo?''. E isso certamente dará o tom do resto do filme. Não por acaso, logo em seguida somos apresentados à Helga Ullman, uma vidente. E aqui a narrativa nos apresenta essa personagem que prevê o que irá acontecer, fato minimamente capcioso dentro dessa lógica incansável de lidar com a imagem. 

A investigação aqui consiste não apenas em acompanhar a narrativa de um crime, mas de também ser cúmplice do que as imagens podem nos presentear e trapacear, então talvez aqui a previsão possa não ajudar muito e talvez seja por isso também que nos despedimos tão cedo de Helga. É interessante notar que nos minutos iniciais já temos a resolução do mistério, que também ''resolve'' o filme com seu fim, isso só explicita que o interesse está em explorar os meios em que chegaremos a esse tal fim. A imagem pode enganar, se é isso que quem a produz quer. 

Não é à toa que venho acreditando de que o cinema maneirista é um dos momentos da história do cinema e do desenvolvimento da linguagem cinematográfica mais didáticos nesse sentido que existe até então. Em filmes como Profondo Rosso (1975), nós podemos nos  dar um trabalho minucioso de debruçamento na forma, a investigação dificilmente surge de um fenômeno inexistente ou inexplicável. Inclusive, a ideia que defendo neste texto é o mote do que consiste o filme, a ideia, o conteúdo e a forma neste caso em especial são insolúveis. 

Argento, declaradamente interessado e inserido nesse contexto da investigação da imagem, nascido no importante berço ocidental da produção artística, irá entrar em um constante jogo de dar e retirar informações. Retrabalhando, reconstruindo e, por isso, deformando as imagens, para que no fim elas não sirvam somente a um objetivo meramente ilustrativo. E aqui entramos no mérito do prefixo utilizado, ''re'', que nos dá a ideia de algo que já existe, elemento importante para falar de maneirismo, a consciência da existência de uma aparente maturidade alcançada e o que se faz a partir disso. Entraremos com mais detalhes no texto que irá suceder este (texto da próxima sessão, com Obsession (1976)). No filme ele não se limita a lidar com as imagens que concebe, mas também com outras imagens, vemos em diversos momentos esculturas, pinturas e até mesmo a duplicação e reflexão dessa imagem, com espelhos. 



Então além de termos algo pré-existente, lidamos com a construção de sentido para além da imagem cinematográfica, porém, inserida nela mesma. É o maneirismo por excelência. O Maneirismo quando nasce, ainda na pintura, vem seguido do que seria o auge da pintura ocidental, o Renascimento. Se existiu o auge, o cânone, como lidar com a forma e o pensamento artístico tendo, aparentemente, alcançado a plenitude naquele momento? 

Utilizando o exagero, a profusão e também, o referencial, retrabalhando e repensando. É muito interessante pensar que Vasari, pintor e estudioso do século XVI, sendo maneirista, ajuda a fundar a Academia das Artes de Desenho. O que isso nos leva a pensar? Que o momento de crise da forma, da representação e do pensamento artístico, impulsiona esse mesmo pensamento, o fortalecimento da academia, dos estudos. 

E o cinema maneirista, que se inicia em meados dos anos 70 e explode nos anos 80, nasce de uma crescente crise da mise-en-scène, passado o cinema clássico hollywoodiano e todas as obras que se imaginam intocáveis e irretocáveis. Não é curioso que a grande obsessão desses realizadores é Hitchcock, sendo o próprio, um grande precursor da investigação da e na imagem cinematográfica. 



Aqui acredito que amadurecemos um pouco a ideia de que então esse cinema seria movido pela curiosidade, investigação. 

Tanto em Profondo Rosso como nos demais filmes realizados por Argento, parece haver um fator em comum que nos ajuda a tentar concluir esse raciocínio, que é a existência do mistério, do oculto. 

Podemos dizer que em todas as narrativas a graça seria em não saber seu desfecho, em ter esse prazer da descoberta, mas pensar isso me parece empobrecer muito os caminhos pro tal desfecho, os meios que se chegam a essa finalidade por assim dizer. Tanto nos filmes que aqui me debruço, quanto nos que não falo aqui. Pois falo de uma ideia sólida de resolução que é baseada na investigação desse mistério, pensado em cada imagem, não somente pensando na tridimensionalidade do plano cinematográfico, mas também na montagem e o que nasce a partir disso. Isso cria uma intensa comunhão de todos com o filme (não é nada curioso que tenhamos citado Hitchcock), com cada parte, com cada peça que compõe a forma desse filme. É de fato também, uma obsessão, não sendo por acaso Obsession (1976), de Brian de Palma, o filme que irá concluir este texto, que não dou por totalmente finalizado e o recorte feito para esse ciclo do História(s) do Cinema: Cineclube do Atalante.


Nenhum comentário:

Postar um comentário