segunda-feira, 2 de março de 2020

Entrevista com Helena Ignez

''Eu acredito muito no cinema, acredito fortemente, nesse mistério transformador e fortíssimo.''- Helena Ignez.  


Não é possível escrever a história do cinema brasileiro sem o nome de Helena Ignez. Atriz, diretora, produtora, autora, Helena abriu caminhos e redefiniu-se diversas vezes, sempre independente, indomável. Em junho do ano passado, durante o 8º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba, o Coletivo Atalante - composto por Catalina Sofia, Waleska Antunes e Giovanni Comodo - teve a oportunidade de realizar uma entrevista exclusiva com Helena Ignês na qual esteve presente também sua filha Sinai Sganzerla - diretora de "A Mulher da Luz Própria", documentário sobre a trajetória de sua mãe exibido no festival. A força criativa da atriz, suas influências pessoais, os mistérios da criação na arte e várias outras histórias estão presentes no texto a seguir, o primeiro de uma série de entrevistas com diretores a serem publicadas pelo Atalante nos próximos meses.


Atalante: A mostra de 5 anos este ano foi com o tema ''Política das Atrizes'', que contou com filmes das atrizes Barbara Stanwyck, Ingrid Bergman, Gena Rowlands e Isabelle Huppert. Essas atrizes são inquestionáveis criadoras com suas presenças e performances nos filmes. Aqui e agora temos a oportunidade de conversar com você, uma atriz que com toda certeza entra nessa questão. Sendo assim, como se dá essa tomada de consciência dessa criação como atriz? Uma vez que você defende seu lugar como criadora nos filmes em que participou. Como acontecia essa criação? 

Acho que o começo desse processo é a própria existência, né? A experiência, daí o experimental, "experience" tal como Jimmy Hendrix, um dos ídolos da minha geração, exatamente por essa liberdade de criação. No meu caso o processo começa antes, já que eu falo na existência e na experiência, com estudo, principalmente com estudo, eu sou uma atriz estudiosa, que conhece métodos e processos. Os processos acho que definem melhor esse trabalho do que o método, que de uma certa forma pode aprisionar e no set a coisa acontece, se estivermos falando de cinema. No set é que existe realmente essa criação, antes é uma preparação para que ela aconteça, para que ela surja espontaneamente. Com esse "click", porque sem esse "click" a coisa não existe. Antes e durante, o depois é uma constante no trabalho, uma constante busca dessa criatividade, mas também tive sorte nesse sentido de poder exercer isso nos filmes que fiz, alguns de forma mais restrita, com esse trabalho talvez menos claro para o espectador e outros não, ele realmente explodia. Acontecia com muita força, havia esse espaço, vamos dizer tal como um vazio que podia ser preenchido pela criação da atriz.   

Atalante: Existe alguma atriz que tenha te inspirado ou que te remeta a essa postura mais autoral nos filmes? 

Você cita essas atrizes da mostra, são grandes atrizes... um trabalho digno de uma observação e de um estudo, começando por Barbara Stanwyck, a mais antiga de todas, que tinha uma personalidade diferente dentro de Hollywood, tinha uma masculinidade e não era exatamente bela, como Ava Gardner, por exemplo. Mas existe sim uma atriz que me inspira continuamente desde meu começo, desde a minha primeira vontade, desejo de ser atriz, que é a Marilyn Monroe. Ela é o principal exemplo de luz, criatividade e conhecimento dessa relação com a câmera. Seria ela a minha mestre. Ela é a atriz do olhar, ninguém olha melhor que Marilyn, dança, se expressa, movimenta aquele corpo. Ninguém é mais extraordinária que Marilyn Monroe. 



Atalante: É possível algum trabalho de atuação ''não autoral'' no que diz respeito à obra? Como se dá essa relação com a direção uma vez que é a partir daí que se idealiza a forma do filme e os caminhos para que se concretize essa forma. 

Existe uma relação fortíssima entre o intérprete e o diretor, sem essa conjunção não sai nada, não acontece. Você precisa desse espaço dado pela direção pra ser também autoral, nisso eu tive companheiros incríveis. Me convidavam pra fazer filmes, tal como "O Bandido da Luz Vermelha", primeiro filme que eu fiz com Rogério, porque eu sabia dessa possibilidade de espaço. Também cito Júlio Bressane, que me deu um espaço enorme no filme dele, que foi possível criar personagens tão incríveis, como em "Barão Olavo, o Horrível", que é uma loucura total, que sem um diretor, sem ele, não surgiria. No caso de "A Mulher de Todos", também... e de outros filmes também que eu fiz com Rogério, que eu fico sem saber de onde ele tirou, fico pensando se aqueles diálogos seriam intimamente meus, apesar de escritos por ele. De onde ele tirou ideias, frases icônicas como "tenho horror à velhice". Então a questão é ter uma conjunção muito forte. Se não tem, a coisa fica fechada, tal como em um filme comercial, com um ator criativo, quando ele consegue exercer sua função, seu trabalho, no caso da Gena Rowlands, tinha o Cassavetes, que era tão criador quanto ela, que fez filmes quase sem profissionais no começo. Acredito que a criatividade está no mistério, é como ouvimos hoje, no livre arbítrio e na predestinação. Existem coisas entre o céu e a terra que não conseguimos explicar.




Atalante: Interessante você falar dessa mística, do inexplicável, da predestinação... no filme de Sinai Sganzerla, que você protagoniza ''A Mulher de Luz Própria'', você fala da leitura de mãos. Você ainda faz? Poderia falar um pouco disso?  

É difícil, existe um estudo milenar, então são 5 mil anos de estudo que falam das relações das linhas da mão com a mente, é mais que ver o futuro. Isso já foi uma vulgarização desse conhecimento. Não é apenas pensar no futuro através das linhas das mãos, é autoconhecimento, saber suas possibilidades, é muito interessante. Há 20 anos que não leio mãos. Tenho noções, mas é muito assustador esse tipo de conhecimento, primeiro porque pode lhe enganar, lhe colocar em uma categoria especial de pessoas, que é muito perigoso. E também na confiança enorme que as pessoas depositam nisso, na gente. Eu tenho experiências nesse sentido fortes, da leitura de mãos de um rapaz, que inclusive é algo muito marcante, eu vi que tinha uma forte possibilidade de suicídio e de autodestruição, extrema, fortíssima. E aí falei e ele começou a chorar, dizendo que na semana passada ele tinha aberto o gás e tentado se matar. Era uma coisa escandalosa, era uma linha que você fosse fotografar e estudar, era idêntica a de um suicida. Então essa pessoa ficou imensamente grata, é perigosa essa situação, mas aconteceu de ser benéfica, mas pode não ser também... As pessoas que procuram isso são pessoas carentes, em geral que querem uma orientação e se apegam muito a você. Ficam apegadas, dependentes e isso também esgota, cansa, adoece. Tive uma experiência também de uma tarde com leitura de mãos, que fiz bastante e no dia seguinte eu estava péssima e fui a um médico homeopata, porque eu sempre me trato com homeopatia e ele me falou que eu estava como se estivesse envenenada. Em um processo de envenenamento, então é isso, é uma carga muito pesada, muito forte.  

Atalante: O trabalho como atriz também tem essa carga, esse peso? Vivendo tantas vidas, experienciando tantas coisas...  

Ele tem uma carga e ontem me referi a isso, eu não consegui, depois dos filmes da Bel-Air continuar normalmente com meu trabalho de atriz. Eu achei insuportável, em primeiro lugar porque nada substitui aquela experiência extraordinária de fazer aqueles filmes, pra um ator, uma atriz é uma experiência inacreditável, de entrega, de criatividade, muito psicodélica. Era uma época psicodélica, totalmente e ela cansou também. Eu tive uma espécie de intoxicação, também foi necessário esse vazio, essa procura. Me impressionava também muitos diálogos fortíssimos que foram ditos por mim no próprio "Copacabana Mon Amour", diálogos do filme, as perguntas de Rogério, "o que estamos fazendo aqui na terra?", "qual o destino do homem?". Isso introjetou de uma forma muito forte, Rogério foi também um companheiro fortíssimo, extremamente forte, que desarticulou, ajudou a desarticular minha mente pra surgir uma criação.  

Atalante: É como brincar com o destino, ter a certeza que os personagens que você viveu, essas mulheres, de fato vivem em algum canto pelo mundo.  

Isso, eu poderia ficar muitos minutos por exemplo, olhando uma foto, mergulho naquilo, vou longe. Personagens femininos, masculinos. As pessoas me interessam muito, existe algo também na Marguerite Duras que gosto de citar, é muito interessante que ela ia aos restaurantes e ficava em silêncio com o namorado dela ouvindo as pessoas. Eu também tenho isso, eu entro em outras vidas, observo, muito, realmente muito. Eu tenho uma natureza apropriada, é isso. O trabalho de observação seria como o processo.

  

Atalante: Você tem algum tipo de revisão dos papéis que fez, em relação à visão do que se tem do feminino naquela época, com a representação?  

Eu fico assustada com essa representação, mas não poderia ter feito diferente. A potência e a anormalidade que isso tinha, eu trabalhei com a anormalidade, com a ruptura e isso não é fácil. Não era um afago, tinha um prazer, mas um prazer estranho. Por exemplo, o que me interessou, pelo meu último filme chamado "Fakir", foi exatamente isso, essa anormalidade e essa mistura de prazer e dor, enfrentamento. Eu acho bem próximo a isso. A auto violência, porque violência mesmo, digo que eu sou incapaz de matar um mosquito, completamente incapaz. A gente consegue procurar nessa dor, nessa mágoa um afago, um prazer.  Mas acredito que revisão não, inclusive no meu último roteiro eu trato disso. O ponto do desejo feminino é o orgasmo, eu acho que o orgasmo, se você falar de desejo, é o orgasmo que satisfaz. É encontrar o orgasmo e isso se chega nos filmes pela verdade, pelo autoconhecimento, com seu próprio corpo, das suas possibilidades. Talvez até agora eu pensaria que eu sou uma atriz orgástica, isso que acontece, essa explosão, é algo altamente individual, não existe somente um desejo feminino. Existe um órgão de desejo, que é o clitóris, se vamos falar de desejo temos que falar de corpo e como observar esse desejo, como chegar a ele. Não é nada romântico, está em outra linha, uma linha mais fisiológica, carnal, mental. O orgasmo a gente não pode dizer que é somente carnal, requer uma energia especial e extremamente forte, de uma maneira que por exemplo, dentro de algumas especialidades, tal como o Taoísmo, no qual fui estudiosa e dedicada, tal como fui ao Hinduísmo, você se conhece o desejo não poderá ser uma mulher mística, porque de tal forma que é tão forte esse desejo, o orgasmo, de tal forma que ele mexe com toda a estrutura mental, que era impossível você ter uma espiritualidade, seria uma contradição misteriosa. Eu acho que o desejo é isso, o amor é outra coisa.  É estranho, a  gente não pode ser nem leviana, nem ingênua.

  

Atalante: É desafiador pensar em como apresentar o desejo nos filmes de uma forma menos psicológica e mais visual, tendo em vista a existência de uma vulgarização da imagem como um geral, mas em especial do corpo e do corpo feminino, que como falamos, está intimamente ligado ao desejo, à sexualidade. Como apresentar isso em tela? Temos alguns exemplos fantásticos disso, como em ''Humoresque'', de Jean Negulesco, nos repetidos instantes em que a personagem de Joan Crawford coloca os óculos para apreciar a imagem do homem que ela à primeiro momento deseja e posteriormente, se apaixona. Esses momentos em que ela enxerga, são de transe. Ou um outro exemplo um pouco diferente, em um filme que exibimos recentemente ''Lola Montes'', de Max Ophuls, em que ela se despe para lutar contra o que afirmam veementemente em relação a ela dançar terrivelmente mal. Naquele momento ela não tem pudor nenhum de jogar seu corpo e se movimentar e isso gera muita movimentação e catarse no momento do filme, talvez nesse caso seja a sedução em jogo. Seria a sedução essa forma mais visível de mostrar o desejo?  

É a sedução, mas o desejo e a sedução seriam iguais? Acredito que não, não sei. Sedução acho que faz parte do social, faz parte das relações, dos costumes, é diferente.  

Atalante: Em que grau se modifica a relação de criação e autoria em um filme como atriz e como diretora? 

Existe uma diferença, enorme. O processo é diferente, o processo da direção não é orgástico. Não me parece, ele é mais organizado, mais intelectual, está mais em outro tempo. O trabalho do ator é uma entrega maior a esse mistério, a essa situação orgástica e são trabalhos que se dão muito bem juntos, mas são diferentes.  

Atalante: A Helena Ignez que dirige é muito diferente da que atua?  

Não, não... sou muito a mesma coisa, tenho uma relação muito amorosa com os atores e atrizes, se torna uma relação de confiança imensa. Me coloco no lugar deles, detesto filmar mais de uma vez , o que é típico de diretor, três, quatros vezes, cinco, seis, por causa da luz ou seja lá mais o que. Eu priorizo totalmente o ator, se ele estiver bem jamais repetir porque eu sei que não será igual a segunda vez. Mas eu imagino, em um processo de primeiro dia de filmagem que você tem que falar com inúmeras pessoas, ter uma harmonia. Esse trabalho é mais corriqueiro, mais ligada ao comum, dirigir. O ato da direção,  mas a obsessão é a mesma, tal como quando eu monto um filme, eu tenho um montador que eu adoro, que tenho trabalho com ele nos meus quatro últimos filmes, ele é um ótimo técnico, mas ele não faz absolutamente nada sem mim. Eu passo as noites conversando com os personagens, essa história do "Fakir" é incrível, porque eu tava entrando em um mundo que eu não conhecia, tão absurdo. Coisas como acordar no meio da noite com uma ideia e gravar pra no dia seguinte falar, então é um outro processo.

  

Atalante: Pensando no que estamos conversando, você teve um movimento de satisfação na atuação e a partir disso quis ter uma experiência na direção? 

Foi isso, eu achei que tinha chegado a uma plenitude como atriz e que já me satisfazia de uma certa forma e precisava ampliar aquilo. Mas o que me deu isso foi a morte de Rogério, apesar de ter feito meu primeiro filme como diretora antes dele morrer, ele foi montador. Mas não sei se ele estivesse vivo se eu teria feito esses filmes, muito possivelmente não, possivelmente não. Eu senti uma urgência de me expressar, de seguir aquele pensamento, eu sou discípula de Rogério. Esse cinema, trabalhar com esses diálogos, ele era um dialoguista extraordinário, com essa invenção dele. Então foi a perda que me fez, mas também não sei, porque o que me moveu antes foi também a indignação, porque com a morte dele houve uma indignação, houve uma indignação por essa morte. Então essa indignação é o que impulsiona também e que também está presente na atriz.  

Atalante: Como foi montar o último filme de Sganzerla? 

Eu tinha 700 páginas na mão e estudo de todos os personagens, não era um roteiro que estava completo, ele estava estudando e ele é escritor, ele preenchia a dificuldade em filmar, porque dinheiro não havia, as produções não apareciam. Ele estava muito à frente, então não apareciam essas possibilidades dele filmar o que ele queria, então ele escrevia muito. E meu trabalho foi exatamente conhecer os personagens e adaptar determinadas falas, daquele personagem, do Mão de Onça, daquele delegado... depois desse trabalho, seis meses, eu conhecia muitíssimo bem aquele roteiro. Depois pra montar o filme, eu montei junto com "A Volta do Bandido da Luz Vermelha", com um grande montador, que é o Rodrigo Lima, um grande montador. Não houve mistério. Foi um processo natural, Sinai entrou bastante também na montagem do "Luz nas Trevas",  ela ia sozinha ou eu ia com ela e ela foi extremamente valorosa, ela também foi extremamente valorosa com as imagens do "A Volta do Bandido da Luz Vermelha", é foi por aí... um pouco diferente da montagem do "A Moça do Calendário", que eu mesma fiz. Eu adoro esse filme, é meu melhor filme, é lindo. Eu estava falando com a Sinai que eu tinha pouco a "A Moça do Calendário" no filme dela ("A Mulher da Luz Própria"), de repente ainda tá lá "A Moça" pra gente estudar e trabalhar. Tem uma coisa muito interessante, que ela trouxe as ligas camponesas ao filme, mas se realiza totalmente essa ideia da "moça", que é a própria personagem de ficção, a moça, falando sobre a Reforma Agrária. Se completa ali. 

Atalante: É muito interessante como são trabalhos muito intimistas, familiares e que por isso também pedem essa conexão que temos conversado até então, a atriz de ''A Moça do Calendário'' é sua filha.  

A atriz é a Djin, minha filha. Eu sempre trabalhei com ela, desde muito cedo ela fazia teatro com outras pessoas. Pra mim ela é uma inspiração, uma grande atriz.  

Atalante: Bom, nós conversamos na ocasião do 8º Olhar de Cinema- Festival Internacional de Cinema de Curitiba e o filme de abertura é um filme sobre o Coutinho. A respeito de Coutinho então, dizemos algo que nos faz pensar muito no cinema que você faz e pensa, que é a crença dele no momento único e especial do acontecimento da/na filmagem ao escolher na maior parte das vezes, pessoas pra participarem de seus filmes que ele nunca viu na vida antes de então, como você diz, dar o ''click''.  

Eu acredito que é exatamente isso, eu tenho isso com os atores que dirijo. O Mário Bortolotto por exemplo, pra mim ele é um mistério, um símbolo. Eu não tenho nenhuma intimidade com ele, no entanto nos filmes acontece maravilhosamente, eu não me interesso também pela intimidade do ator, pela psicologia dele, não é por aí que entra nossa intimidade. É através do personagem e da observação. Ali tem que acontecer, a gente sabe que vai acontecer. Eu acredito muito no cinema, acredito fortemente, nesse mistério transformador e fortíssimo.



Esta entrevista foi também um dos textos de apoio e distribuída na sessão de ''O Bandido da Luz Vermelha'', de Rogério Sganzerla, que ocorreu no último dia 29 de fevereiro de 2020 pelo projeto ''História(s) do Cinema: Cineclube do Atalante''.

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

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