É em meio ao mar de Eldorado, na Província de Alecrim, que a história (não inicia, mas) gira, conta o início-fim da trama que se põe em trânsito. “Terra em Transe” é uma convulsão poética que versa sobre um país fictício da América Latina, a epilepsia política nas transições dos regimes democráticos e autoritários dos meandros de 1960 e o que se segue.
Precursor do Cinema Novo, Glauber Rocha despeja na fotografia grande sensibilidade, que ultrapassa a monocromia. Acompanhada, é claro, por uma narração metafórica e poética que navega pelas falas das personagens. Crítico de um momento importante da história brasileira, o filme causou rebuliço entre partidários da esquerda e da direita e chegou a esbarrar na censura da ditadura militar. É que dá voz à reflexão sobre as representações políticas, o uso da religião e da fé, a figura do populista e do conservador; faz caricatura das posturas ditas progressistas e do tal “extremismo”. Delineia o engodo do amor ao poder e às ideias, da violência física e simbólica e a posição incerta das massas.
Clássico do cinema moderno e anunciador do tropicalismo, o filme, eleito o mais polêmico dentre os seus, narra a vida de um poeta e jornalista, que se encontra num hiato inflamável frente à realidade: eis o conflito entre a pretensão de mudança social e a amargura vislumbrada no fracasso desse anseio. A promessa da transformação repousa na poesia – e na sua insuficiência -, na “ingenuidade da fé”, na hipnose da beleza. Afora isso, o pecado da vida real escorre pelas brutas frestas da política – a luta pelo poder, os interesses econômicos, a disputa por nichos de influência, a marginalização do povo. O protagonista é a condensação das contradições de Eldorado, o ponto de tensão personificado, a consciência palpitante que entrevê o barravento: a catarse latino-americana propriamente dita, o Brasil escancarado.
Resposta ao golpe militar de 1964, a obra busca a compreensão dos signos históricos que coexistem no imaginário, sobretudo, das massas. Dentre eles o messianismo, o populismo e o patriarcalismo - que se imiscuem aos elementos negros e indígenas próprios à cultura popular brasileira. Nesse sentido, Glauber Rocha mostra genuinamente a cara do Cinema Novo. Através da utilização desses símbolos, avisa que a política do século XX em quase nada difere daquela colonial, do acordo entre as elites e a manutenção do povo à parte. Desse modo, realiza uma síntese única ao representar um homem de terno sendo coroado feito rei: mistura elementos barrocos e modernos, mobiliza ingredientes fundamentais da cultura brasileira, irrompendo em sincretismos e abrindo alas à representação do imaginário da escola de samba, a tudo aquilo que pertence decididamente ao povo.
E ao tratar do povo, também o faz magistralmente: assume a malquerida tarefa de desmistifica-lo, desfetichizá-lo - e isso porque vai até ele, deixa-o falar. Ousa, ainda, a alusão à luta de classes, tendo como uma das mais irreverentes cenas aquela em que um dos personagens cinicamente melindra:
“Qual é a sua classe?”.
Nesse ponto de deliciosa amargura, revolve uma das questões mais delicadas dessa temática, cristalizando tal impasse no âmago do protagonista-poeta, tropeço poético-político, no que Carlos Drummond de Andrade responderia:
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Política e Poesia: demais para um homem só. E o poeta protagonista decide pelo caminho da luta armada, revolucionária e suicida, contra o sol, o céu, contra o sal e contra o mar, devoto louco de suas ideias: “imenso trabalho nos custa a flor”. E não conseguindo “firmar o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura” ainda que com violência e tanta ternura, não encontrando o ponto da chegada: morre. De fome. Dessa eterna fome do absoluto.
Estela Basso
Luiz Soares Júnior: "eu tenho um critério: barrocos são contemporâneos dos clássicos. são visões de mundo diferentes, antes de tudo, que se ex-primem em estilos: um é Húbris, outro é Logos, Razão. Mas Hitch é um caso bem singular de mistureba em diferentes proporções de ambos- e expresisonismos e gótico, etc o que eu considero maneirista é um "barroco que chegou tarde demais", que não pode ser contemporâneo do que cita- senão não seria uma citação, uma releitura/reapropriação. tem uma questão histórica aí- de deságio no tempo. é claro que não há criação de arte ex-nihilo. arte é sempre reinterpretação de vida e de outra arte. os clássicos é que nunca assumiram isso, pois tinham pretensões demiúrgicas a serem criadores absolutos, e não "meros" intérpretes. só que os barrocos tb tinham estas pretensões; mas eram do lado de cagliostro, não de goethe. exuberantes, não clássicos. mas havia a mesma ideia de criar mundo, de "ser original". ora, na nossa época, ser original é um pecado, pois temos 3.00o anos, etc. quem ousaria pintar o sol hoje e dizer: criei o sol?, quando manet, monet, munch, etc já pintaram e disseram tudo sobre o sol?"
ResponderExcluirÉ questão de nomear, conceituar.
Hj já se usa o barroco, o maneirista e o clássico para contextos bem específicos.
Por isso, Scorsese, Coppola, de Palma até mesmo Leone, não podem ser chamados de barrocos.
Até podem, mas já são chamados de outras coisas.
Cauby, porque você mergulha nessa desordem?
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