segunda-feira, 23 de abril de 2012

Kill, Baby, Kill de Mario Bava (1966)


Porque uma mão na janela pode ser a razão de um sentimento de pavor? Não é só através do discurso, ou seja, da narrativa do antes e do depois da imagem, que um ícone como esse é ressignificado e, assim, construído em um símbolo interpretado pelo nosso espírito como algo a se temer. Acredito que Mario Bava em Kill, Baby, Kill (Operazione Paura, 1966), não trabalhe através de um discurso completamente fluido, que se desenvolve e constrói, através de sua duração, a força das imagens, mas sim seja um criador que pense na imagem em si, na ontologia da imagem cinematográfica. Uma mão, qualquer mão em uma janela, com o primeiro plano escuro, onde se distingue apenas uma coroa de flores com um “x” dentro, um fundo azul bebê enevoado, e a mão ali, ameaçando entrar (afinal o medo não vêm do contato feito, mas do contato a se fazer), é o próprio horror, sem discurso necessário(ao se deitar olhe pra sua janela e caso depare-se com algo que não deveria estar ali, para fins didáticos a tal da mão, realmente importará o que você estava fazendo momentos antes?, é a total reconfiguração do sentimento). É lógico que descobrimos depois a quem pertence aquela mão mas isso não muda em nada a imagem, não a corrompe de forma alguma. Continua pura.
A mão pertence a uma menina. Morta. Morreu dessangrada aos sete anos, segurou-se na corda do sino para pedir ajuda, e toda vez que o sino toca significa que alguém irá morrer(ao morrer produziu som, que serve de atmosfera a Bava, esse som retorna agora como presságio da morte), assim avisa o dono da estalagem ao Dr Paul Eswai , herói da história, médico da cidade que chega a um vilarejo dominado pela superstição, com o fim de fazer uma autópsia em um caso aparentemente de suicídio. Porém nenhuma pessoa do vilarejo acredita nisso, todos têm a convicção que a morte foi causada pelo fantasma de Melissa Graps, a tal menina. Momentos antes o Dr Paul tinha visitado a mansão dos Graps e visto Melissa(algo que significa que ele está “marcado”, como vimos um pouco antes com a filha do dono da estalagem, também vítima do “ver o que ninguém mais vê”) , e ao sair não percebeu uma pintura, logo identificado pela câmera de Bava, que mostra-nos o retrato de Melissa, e a inscrição contendo a data de seu nascimento e o de sua morte. Ver aqui é mais importante que saber, o Dr Paul não percebeu que a Melissa do castelo é a mesma a quem o dono da estalagem se refere, mas nós sabemos porque vimos.
Aqui podemos fazer um paralelo entre as escolhas formais de Bava e o seu desejo de permanência das imagens que ele cria. Porque, com Bava, não só a imagem é importante mas mais importante é como elas são criadas. Disse que a mão na janela é um símbolo de horror e o é, porém descrevi a maneira como Bava nos apresenta essa mão. É através de sua criação de atmosfera pela iluminação, pela direção de arte e pela mise-en-scène que as imagens se fixarão na nossa mente, e dela nunca sairão. É o quadro de Melissa que indica que ela não está morta, mas viva em imagem(e som!). Em certo momento no castelo, Eswai está preso a uma teia de aranha, atrás dela uma pintura do castelo, uma fusão transforma o castelo criado em um real, Eswai é expulso de um local pela imagem deste. Bava é um cineasta criador tal qual um pintor, e a realidade é seu quadro, suas tintas, e a câmera seu pincel. A necessidade de um esmero formal vem completamente da construção de um mundo irreal, no qual podemos nos perder, para assim chegar a essência daquilo que é o mais nucleal a arte: a verdade do poeta, atingida por qualquer mecanismo, sejam eles os mais artificiais ou os mais reais.
O castelo dos Graps, diferentemente do vilarejo é um lugar labiríntico, em que as saídas não vêm do espaço geográfico como o conhecemos, mas sim da nossa própria alma. O Dr Eswai tenta alcançar um homem atravessando corredores iguais. Quando finalmente consegue, o homem é ele mesmo( a sua imagem pelo menos), a imagem sorri quando uma luz verde ilumina a sua face; nada mais artificial, nada mais verdadeiro. Bava sorri para nós o filme inteiro, nos conduz. Ele é a nossa representação, do nosso medo. É a menina que nos convida pra brincar com sua bola. Nem a bola, nem a menina existem, mas não existe brinquedo melhor que a imaginação, e Bava usou a sua como nenhum outro.
Ps. Esse texto é mais uma tentativa de elencar algumas das questões levantadas pelo Bava, do que de reponde-las, por conta da complexidade do Mestre e da falta de talento e treino no reino das palavras do discípulo. De qualquer forma obrigado Mario, por ter feito eu exercitar a materialização do pensamento em letras e discurso, e pelo momento de profundo terror, vendo Kill, Baby,Kill de madrugada, luzes apagadas e janelas devidamente cobertas por cortinas...
Cauby Monteiro
(Atalante, 2012)

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