O cineasta dos roteiristas
por Raul Arthuso
por Raul Arthuso
Em cinema, adoramos rotular os diretores como “o
cineasta da luz”, “o cineasta das mulheres”, “o cineasta da violência”, assim
por diante. No caso de Billy Wilder, poderia, sem medo, chamá-lo de “o cineasta
dos roteiristas”. Isso soa, a princípio, como ofensa, para uma arte cuja
história, principalmente a partir do cinema moderno, foi escrita pelos autores,
que, no senso comum, são os diretores. Mas quem além de Billy Wilder ganhou
tamanha reputação a ponto de tornar-se o modelo acabado de um grande
roteirista, ao mesmo tempo que tornava-se um dos grandes da comédia clássica?
Quem além de Wilder vem à mente quando se define um diretor como “aquele que
traduz o roteiro em imagens”? Tirando a cena da saia de Marylin Monroe alçando
vôo em O Pecado Mora ao Lado (1955), o plano final da
loucura de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (1950)
e algumas porções de gags visuais, o mais marcante no cinema de Billy Wilder,
aquilo que levamos para casa após a sessão e fazemos nosso souvenir, a roupa nova, são seus diálogos, as cenas, a
estrutura da história como um todo. Isso requer do realizador um alto grau de
precisão, de tempo cômico, noção de ritmo e movimentação, o que por si só conta
admiravelmente a favor do reconhecimento de Wilder como um bom diretor, para
além do roteirista por excelência.
Sua construção dramática é tão perfeita e encaixada
que seu cinema parece tê-la como princípio e fim. Wilder filma, em essência,
seu edifício, sua obra arquitetônica engendrada nas minúcias da estrutura do
drama, da fonética das palavras, dos blocos de ação. Assim, se falamos em “o
cineasta das mulheres” porque Dietrich brilha nos filmes de determinado diretor
como em nenhum outro, ou “o cineasta da violência” pelo papel crucial
desempenhado na obra de tal realizador, não parece equívoco nem demérito chamar
Wilder de o diretor da estrutura dramática, da cena, do diálogo, das
grandes punch lines. Se não foi visualmente inventivo, foi um
bom cineasta de ritmo, um dos mais eficientes, sem significar com isso
acomodação ou academicismo.
E mais ainda a seu favor: Wilder parece o ancestral
de uma corrente contemporânea de cineastas que criam um universo tão particular
e fechado que parte importante de seus esforços está em mantê-lo de pé.
Cineastas como os Irmãos Coen e Quentin Tarantino herdaram de Wilder o gosto
por universos muito bem desenhados, particularmente medidos, mas, diferente de
Hitchcock, fantasiados com loucuras, detalhes picarescos e gags aparentemente fora do controle. Se o mundo de
Hitchcock é um trem avançando cada vez mais rápido contra o muro, o de Wilder –
levado ao exagero pós-moderno por seus herdeiros – está mais para um carrossel,
um ferrorama: o quiproquó inicial gera a base para gags que re-alimentam esse quiproquó. Seus
melhores filmes – Quanto Mais Quente Melhor (1959), Se Meu Apartamento Falasse (1960) – tendem à
irresolução, uma sensação não propriamente de um “fim do mundo”, mas de
deixá-lo a partir de então para o fora de campo, como a manter a estrutura num
eterno devir.
Essa construção é claramente mais bem fundamentada
quando Wilder trabalha com trios. Jean Luc-Godard certa vez afirmou que todo
grande humorista é um geômetra. Os melhores momentos de Billy Wilder acontecem
no cômico – e não seriam Crepúsculo dos Deuses e
sua “refilmagem” Fedora (1978) dois exemplares
de humor negro? – em triângulo dramático cujo estopim é o disfarce, o
fingimento, o velado. Seus filmes e o ritmo de seu humor partem sempre de algo
escondido que, quando revelado, precisa de reparação, num triângulo de trocas
entre o malandro que forja um parceiro e faz alguém de vítima. Quando
tomamos O Pecado Mora ao Lado ou Um Amor na Tarde (1957), quase inteiramente de
casal, a narrativa manca, algo falta no espaço e a encenação de Wilder perde um
eixo evidente, arremedado eventualmente por um terceiro personagem que vem “salvar
o plano”: em O Pecado Mora Ao Lado, é o zelador
buscando forçosamente invadir a cena; em Um Amor na Tarde, é
Maurice Chevallier ou a banda de ciganos onipresente no quarto de hotel de Gary
Cooper. Em Farrapo Humano (1945) e Águia Solitária (1957), nos quais o protagonista
está sozinho e este tipo de triângulo nunca acontece, o ritmo é frouxo e
alongado, diferente do espírito de seus melhores filmes, que correm a galope
cada vez mais acelerado.
Seu lado brilhante é mais evidente com este
triângulo da malandragem, especialmente quando seus vértices trocam de lugar ao
longo do filme. No exemplo mais bem acabado e habilidoso desta marca de
Wilder, Se Meu Apartamento Falasse, Jack Lemmon é o parceiro de
crime extraconjugal do presidente da empresa onde trabalha e Shirley MacLaine é
a vítima, a garota amante que sonha ser esposa, por quem Lemmon depois se
apaixona. As trocas no triângulo são de várias naturezas: em dado momento,
Lemmon passa a malandro, quando ganha a promoção, depois vira vítima quando
apaixona-se. Fred MacMurray, o presidente da empresa, passa de malandro safado
a ficar na mão no fim do filme quando, após o beijo automático de ano novo, é
deixado por MacLaine que, por sua vez, inverte o papel no amor com Lemmon no
último instante. Não apenas há um triângulo amoroso no qual as personagens
querem trocar de lugar – a amante quer ser esposa; o escrivão quer ser
executivo; o presidente quer ser o galã – como há a troca de lugar físico que
reflete o status social, manifestando-se no espaço do trabalho – um triângulo
com a sala da presidência como vértice superior, o escritório de Lemmon e o
elevador onde trabalha MacLaine como base. É a troca de espaços físicos, de
lugar social e de relacionamentos amorosos que movimenta os disfarces, os
enganos, os sentimentos e o humor irônico-melancólico de Wilder. A mise en scène da troca, na qual comércio, malandragem e
relações sexuais se incluem, é o ideal do cinema de Wilder.
Daí talvez o afamado cinismo do cineasta. Suas
personagens querem, essencialmente, dinheiro, fama, status social, um cargo
importante, o gozo… enfim, motivações “mesquinhas” dentro de uma moral burguesa
que vive no seio das relações de trocas, mas estabelece um código de conduta em
que tomá-las como fim em si é pecado. Enquanto Capra encena certo sentimento do
homem diante dessa moral, agenciando alguns predicados como correção,
simplicidade, amor, Wilder se interessa pela razão prática jogada debaixo do
tapete por essa moral. Seus filmes são povoados, no centro, pela plebe,
mão-de-obra não-especializada, prostitutas, mercenários, diletantes e
roteiristas – curiosamente, diretores de cinema estão em outra alçada –
personagens cujo trabalho pode ser comprado por boa quantia pelos patrões,
empresários aproveitadores, ricaços safados e espertos de ocasião que os
rodeiam. Se existe uma possibilidade de sentimentalismo, ela é rapidamente
guilhotinada por uma tirada de efeito, como as famosaspunch lines de Quanto Mais Quente Melhor (“Nobody’s
perfect”), Se Meu Apartamento Falasse (“Shut
up and deal”) e Beija-me, Idiota (“Kiss me,
stupid!”). Uma declaração de amor nunca se concretiza com uma resposta no mesmo
tom – suas tiradas cínicas ao “eu te amo” sincero são uma chamada aos “pés no
chão”. Wilder é um materialista incorrigével.
A
guerra dos sexos
“Cameron Crowe: Você acha que merece o
estigma de “misógino”?
Billy Wilder: [academicamente] Eu não faço a menor idéia se eu sou ou não.
Audrey Wilder: [da outra sala]: Sim!
BW: Não sou! Eu não acho!
AW: Ele é!
BW: Ok, então, eu sou.”
Billy Wilder: [academicamente] Eu não faço a menor idéia se eu sou ou não.
Audrey Wilder: [da outra sala]: Sim!
BW: Não sou! Eu não acho!
AW: Ele é!
BW: Ok, então, eu sou.”
Cameron Crowe, “Conversations
with Billy Wilder”.
Diferentemente
de Cuckor ou mesmo de seu mestre confesso Lubitsch, Billy Wilder nunca se
interessou profundamente sobre a questão dos gêneros e a guerra dos sexos, a
complexa relação entre eles e a discussão dos papéis de homens e mulheres na
sociedade. Se, por um lado, sua visão materialista carrega seus filmes de uma
ironia bastante lúcida, por outro torna a busca de mulheres e homens pelo
sucesso a qualquer preço algo bastante funcional. Com a diferença de que os
homens em seus filmes buscam vários tipos de sucesso – profissional,
financeiro, de status social, sentimental, sexual – enquanto as mulheres só
querem amor e/ou dinheiro.
Os homens de Wilder são máquinas sexuais em busca
do gozo e a diferenciação dos tipos de homens passa sempre entre aqueles que o
conseguem ou não. Muitas vezes, esse gozo é perverso – principalmente no caso
das ambiguidades do aproveitador, como William Holden em Sabrina (1954) e Inferno Nº 17 (1953);
mesmo em Crepúsculo dos Deuses, sua morte não é senão uma
espécie de gozo do defunto-autor completando sua mais importante narrativa. Em
outras, o gozo é conquistar a garota e corrigir seu pecado original – A Mundana (1948), O Amor na
Tarde, Humphrey Bogart em Sabrina.
Contudo, é só com Jack Lemmon que o homem encontra
certa complexidade, muito devido ao próprio ator, figura chave no cinema de
Wilder. Lemmon é um everyman: não tem a
pinta de galã para ser puramente um conquistador, mas não é propriamente
um loser. Há uma dignidade em sua persona da qual os
protagonistas de Wilder tirarão proveito para atingir uma nova camada que
Bogart, Gary Cooper e Tony Curtis não faziam. O cinema de Wilder após Jack
Lemmon como braço direito ganha em significados da alma masculina apenas por
sua presença em cena, seja fazendo um trabalhador comum em Se Meu Apartamento Falasse, um jornalista viciado em
notícias sangrentas em A Primeira Página (1974) ou
um marido suicida em Amigos, Amigos, Negócios à
Parte (1981). Não mais o homem é um bloco sólido em busca do
gozo ou o marido traído ou o perdedor que não pega ninguém; com Lemmon, por
procuração, o macho ganha certa sensibilidade e opacidade.
As mulheres, por sua vez, cumprem dois papéis
básicos: a esposa e a puta. Em grandes momentos, como em Se Meu Apartamento Falasse e Avanti! (1972), Wilder vai trabalhar no limite
entre os dois papéis. Em Se Meu Apartamento Falasse,
Fred MacMurray, para se livrar rapidamente do constrangimento de não ter
comprado presente de Natal para sua amante Shirley MacLaine, dá uma nota de cem
dólares à mulher logo após o encontro amoroso. Essa nota deixa de ser apenas um
presente mal-colocado, demarcando a fronteira entre o romance proibido e a
prostituição. Em Beija-me, Idiota (1964), a
fronteira é mais evidente, pois é espacial: a esposa vai viver uma noite de
puta enquanto a puta assume o lugar da esposa em sua casa. Nada, porém, vai
além da combinação esposa-puta, e parte da questão masculina gira entre ficar
com a mulher que é “pra casar” em oposição às outras – estopim de A Primeira Página.
Seria então Billy Wilder um misógino? Ou esse traço
é apenas o calcanhar de Aquiles do diretor, denunciando seu lugar no tempo e na
História do cinema? O principal é aventar a possibilidade de, ao contrário dos
homens, Wilder não ter seu “Jack Lemmon de saias”. Marylin Monroe é um furacão
sexual, Kim Novak foi sexualizada ao extremo em Beija-me,
Idiota, Audrey Hepburn ficou a bobinha apaixonada. O mais próximo de
repetir no feminino a presença de tela de Jack Lemmon foi com Shirley MacLaine,
conseguindo graça e doçura sem cair na mera inocência ou no sentimentalismo do
clichê romântico em Se Meu Apartamento Falasse;
e um lado sexual sem perder a ternura em Irma La Douce (1963).
Curiosamente, quem paga o pato nessa guerra dos
sexos mal-resolvida é o homossexual, o motivo mais recorrente de piadas de seus
filmes – mesmo em Quanto Mais Quente Melhor, o bufão
da história é o personagem apaixonado por Jack Lemmon travestido. E o desastre
de A Vida Íntima de Sherlock Holmes (1970) não parece
vir de outro lugar senão de Wilder não ter muito tato em deixar no ar a
possível homossexualidade do protagonista.
(...)
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