domingo, 16 de novembro de 2014

WHILE THE CITY SLEEPS / 1956


(Cidade Nas Trevas/No Silêncio de Uma Cidade)

Um filme de Fritz Lang

While the City Sleeps era um dos filmes favoritos de Fritz Lang: Nas suas “confissões” a Herman Weinberg, em 1956 (“La Nuit Viennoise”), à pergunta clássica sobre as suas preferências, responde: “Pode-se perguntar a uma mãe qual dos filhos gosta mais? (...) Apesar de tudo, julgo que os meus favoritos são M, Fury, Woman in the Window, Scarlet Street e While the City Sleeps. E a Bogdanovich, no mesmo ano, que o “aperta” perguntando-lhe se acha o filme melhor que M ou Fury responde-lhe “Penso - mas só a passagem dos anos o poderá provar - que é, pelo menos, um filme tão bom com esses (...) M e Fury são filmes honestos. Penso que While the City Sleeps o é também. Acho que posso defender tudo nessas obras - ideias, etc”.

Antes de entrarmos na breve análise da obra, vale a pena recordar um facto curioso e ilustrativo das tão faladas relações entre a literatura e o cinema.

While the City Sleeps baseia-se no romance de Charles Einstein “The Bloody Spur” escrito em 1953. O escritor disse ter imaginado a perseguição no metropolitano, com base na memória da famosa sequência entre Walter Pidgeon e John Carradine, em Man Hunt. Quem se recordar desse filme verá, pois, vendo a sequência análoga de While the City Sleeps, cinema “em segunda mão”. Isto é, Lang não se imita só a si próprio, mas repete-se através de alheia visão. O cinema passou a literatura que, de novo, se volveu cinema. Nos espaços e nos tempos underground que a uma e outra são propícias.

De certo modo, e esta é uma boa maneira de começar, While the City Sleeps é um filme de repetições: o assassino é parente próximo do Peter Lorre do M, e a inscrição é também um dos leit-motiv. “Ask Mother” é o que escreve, com baton, nos espelhos das casas das suas vítimas, o que é bastante mais rico e mais complexo do que a frase do livro: “Help me for God’s sake”. Porque, dizendo a mesma coisa, reenvia ao grito original e final de cada homem desesperado, introduzindo uma vertigem que a leitura psicanalítica (que Lang aliás introduz, também, na sequência em que o assassino vê Dana Andrews na televisão) não esgota.

O papel do pequeno écran (constante temática que remota ao primeiro filme de Lang, Die Spinnen e percorre quase toda a sua obra sob forma da televisão ou do filme dentro do filme) é, uma vez mais (Liliom, Fury, Beyond a Reasonable Doubt, Spione, os vários Mabuse, Clash by Night, etc.) o revelador dos actos porque somos interpelados. O contracampo assassino - televisão com Dana Andrews, é a recapitulação mais elíptica desse momento. O acusador presente em todas as casas (“sei que um dentre os milhões que me vêem és tu”) dirige-se a John Barrymore Jr., mas nada percebe do que o leva a matar. Rever ou falar dos nossos actos é sempre reduzi-los a uma das muitas imagens possíveis.

Como em The Blue Gardenia ou Big Heat, as mulheres (a começar pela namorada do protagonista) são utilizadas como “isco”, cada uma delas em diversas instâncias. Rhonda Fleming como “isco” para o “prémio”, na luta entre James Craig (o fotógrafo) e Vincent Price (“Walter’s best friend” com “Walter’s best wife” como se diz no assombroso diálogo); Ida Lupino como “isco” para Andrews, lançado por Sanders, o homem dela; Sally Forrest como “isco” para o assassino e só um “baixo sentimento” (o ciúme) a salva de ser morta por ele. Como a Joan Bennett de Man Hunt ou a Gloria Grahame do Big Heat, cada uma é a seta (redutível a um fetiche) na luta que opõe aqueles homens e que é menos a luta contra o assassino que a luta entre eles, habitantes dum espaço fechado e compartimentado, para quem a morte e a vida contam pouco ao pé do “todo o poder no jornal” prometido por Vincent Price.

Esse espaço (o do jornal) tem bastante que ver com o de Spione (os quartos de hotel) ou com o de Secret Beyond the Door. E a incursão no mundo da imprensa (comum a tantos filmes americanos) é análoga às incursões de Lang no mundo da polícia (M, Big Heat, Fury): um colectivo donde emerge uma história pessoal que se cruza com a doutros na teia lançada em torno do móbil mais distante e mais aparente. O assassino é “mera causa ocasional daquela carpidação”. A sua pergunta fundamental (“ask mother”) escapa já a qualquer daqueles homens que não se põem perguntas e não se lembram da mãe.

Mas se While the City Sleeps (e outras comparações se podiam fazer) é uma recapitulação do mundo formal de Lang (visita às suas próprias formas) é, por outro lado, na sua construção, um dos filmes mais insólitos do autor do Dr. Mabuse. O filme centra-se (ou “descentra-se”) em torno de nove personagens que todos eles são - e não são - o protagonista e para os quais Lang reuniu o mais impressionante cast de actores de toda a sua obra: Dana Andrews, George Sanders, Thomas Mitchell, Vincent Price, James Craig, John Barrymore Jr., para os homens, Sally Forrest, Ida Lupino, Rhonda Fleming, para as mulheres. Aparentemente, o combate personifica-se em três deles: o casal Andrews-Forrest dum lado e o assassino do outro. Mas como o outro lado (o do assassino) é um esquema (frequentemente esquecido por espectadores e jornalistas), o que vem ao primeiro plano são os cruzamentos entre os outros personagens: Andrews-Lupino, Sanders-Lupino, Forrest-Fleming, Fleming-Craig e de todos com Mitchell e Price.

Essa descentração de um evidente protagonista (ao contrário do que sucedia, por exemplo, em obras congéneres como M e Fury) é feita a favor do peso da rede, dando o primado, uma vez mais, à organização, ao colectivo. Só que, em While the City Sleeps, ao contrário dos filmes em que a organização presidia a tudo (Die Spinnen, Spione, Ministry of Fear, You and Me, Cloak and Dagger, Hangmen Also Die, etc.) ela não se dissolve num anonimato ou num monstro de mil cabeças, mas reduz-se às nove personagens já citadas. Ou seja, por um lado, Lang descentra, evitando a protagonização, os leading parts, por outro reduz as linhas periféricas, habituais na sua obra, tornando-as o próprio centro e conferindo a cada linha espessura especial. Dispersa e concentra, como dispersa e concentra o espaço do filme, das ruas de Nova Iorque para os prédios, destes para os apartamentos, dos apartamentos para o espaço confinado ao jornal e decidindo, depois, tudo na sequência subterrânea do metropolitano.

Num caso como noutro, Lang não procede apenas por afunilamento ou “dilatação”, mas por complementariadade e alternância (donde, os surpreendentes raccords desta obra). Quase se poderia dizer que é um filme em sketches se todos os episódios aparentemente dispersivos não tivessem por objectivo único o querer omitir as motivações longínquas (a caça a um homem acossado, a posse de algumas mulheres) e trazer ao primeiro plano essa omissão. Sexo e crime são meios para outra guerra mais terrível: a da mesquinha compensação, através da posse do jornal, dum poder a exercer sobre um mundo que em reverso só devolve o sexo e o crime.

Não são os espaços que se afunilam, são as visões e, neste capítulo, são capitais as sequências da televisão e a do bar, Dana Andrews e Ida Lupino. O pequeno écran reduz à luta com uma imagem e uma voz intromissoras o acossamento e a solidão do assassino; no bar, Ida Lupino substitui a sedução por imagens pornográficas (ilusão em que nós e o “barman” caímos) na exibição da sua nudez infantil, fornecendo uma pista íntima, mas de origem completamente diversa da que se esperava. Daí que a primeira sequência (em que se trata de um assassino e de morte) tenha um peso violador e a segunda tenha um peso castrador, frustrando o espectador do que queria ver e funcionando como metáfora suprema do erotismo em “off”, existente ao longo de todo o filme (relação de Andrews com a namorada que se recusa a intimidades, banalização das situações de baixa mentira, ligadas ao adultério).

Num caso como noutro, a imagem só reenvia à solidão. A partir dessas sequências, podemos aperceber-nos como a construção centrípeta do filme, só para a solidão aponta também. Uma série de pessoas, com falsos cruzamentos, à procura de um momento de encontro. O único que o teve, talvez seja aquele que escreve “ask mother”. Para os outros a vida continua, tão desesperadamente só, como antes daquele fait divers. Nesse sentido While the City Sleeps é o filme mais perverso da obra de Lang. Com o seu plano mais sombrio: Vincent Price e os pinhões.


JOÃO BÉNARD DA COSTA

(Folhas da Cinemateca Portuguesa)

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