(Cidade Nas Trevas/No
Silêncio de Uma Cidade)
Um filme de Fritz Lang
While the City Sleeps era um dos filmes favoritos de Fritz Lang: Nas suas “confissões” a Herman
Weinberg, em 1956 (“La Nuit Viennoise”), à pergunta clássica sobre as suas
preferências, responde: “Pode-se
perguntar a uma mãe qual dos filhos gosta mais? (...) Apesar de tudo, julgo que
os meus favoritos são M, Fury, Woman in the Window, Scarlet
Street e While the City Sleeps”.
E a Bogdanovich, no mesmo ano, que o “aperta” perguntando-lhe se acha o filme
melhor que M ou Fury responde-lhe “Penso -
mas só a passagem dos anos o poderá provar - que é, pelo menos, um filme tão
bom com esses (...) M e Fury são filmes honestos. Penso que While the City Sleeps o é também. Acho
que posso defender tudo nessas obras - ideias, etc”.
Antes de
entrarmos na breve análise da obra, vale a pena recordar um facto curioso e
ilustrativo das tão faladas relações entre a literatura e o cinema.
While
the City Sleeps baseia-se no romance de Charles Einstein “The Bloody
Spur” escrito em 1953. O escritor disse ter imaginado a
perseguição no metropolitano, com base na memória da famosa sequência entre
Walter Pidgeon e John Carradine, em Man
Hunt. Quem se recordar desse filme verá, pois, vendo a sequência análoga de
While the City Sleeps, cinema “em
segunda mão”. Isto é, Lang não se imita só a si próprio, mas repete-se através
de alheia visão. O cinema passou a literatura que, de novo, se volveu cinema.
Nos espaços e nos tempos underground
que a uma e outra são propícias.
De certo modo, e
esta é uma boa maneira de começar, While
the City Sleeps é um filme de repetições: o assassino é parente próximo do
Peter Lorre do M, e a inscrição é
também um dos leit-motiv. “Ask Mother” é o que escreve, com baton,
nos espelhos das casas das suas vítimas, o que é bastante mais rico e mais
complexo do que a frase do livro: “Help
me for God’s sake”. Porque, dizendo a mesma coisa, reenvia ao grito
original e final de cada homem desesperado, introduzindo uma vertigem que a
leitura psicanalítica (que Lang aliás introduz, também, na sequência em que o
assassino vê Dana Andrews na televisão) não esgota.
O papel do
pequeno écran (constante temática que remota ao primeiro filme de Lang, Die Spinnen e percorre quase toda a sua
obra sob forma da televisão ou do filme dentro do filme) é, uma vez mais (Liliom, Fury, Beyond a Reasonable
Doubt, Spione, os vários Mabuse, Clash by Night, etc.) o revelador dos actos porque somos
interpelados. O contracampo assassino - televisão com Dana Andrews, é a
recapitulação mais elíptica desse momento. O acusador presente em todas as
casas (“sei que um dentre os milhões que
me vêem és tu”) dirige-se a John Barrymore Jr., mas nada percebe do que o
leva a matar. Rever ou falar dos nossos actos é sempre reduzi-los a uma das
muitas imagens possíveis.
Como em The Blue Gardenia ou Big Heat, as mulheres (a começar pela
namorada do protagonista) são utilizadas como “isco”, cada uma delas em
diversas instâncias. Rhonda Fleming como “isco” para o “prémio”, na luta entre
James Craig (o fotógrafo) e Vincent Price (“Walter’s
best friend” com “Walter’s best wife”
como se diz no assombroso diálogo); Ida Lupino como “isco” para Andrews,
lançado por Sanders, o homem dela; Sally Forrest como “isco” para o assassino e
só um “baixo sentimento” (o ciúme) a salva de ser morta por ele. Como a Joan
Bennett de Man Hunt ou a Gloria
Grahame do Big Heat, cada uma é a
seta (redutível a um fetiche) na luta que opõe aqueles homens e que é menos a
luta contra o assassino que a luta entre eles, habitantes dum espaço fechado e
compartimentado, para quem a morte e a vida contam pouco ao pé do “todo o poder
no jornal” prometido por Vincent Price.
Esse espaço (o do
jornal) tem bastante que ver com o de Spione
(os quartos de hotel) ou com o de Secret
Beyond the Door. E a incursão no mundo da imprensa (comum a tantos filmes
americanos) é análoga às incursões de Lang no mundo da polícia (M, Big
Heat, Fury): um colectivo donde
emerge uma história pessoal que se cruza com a doutros na teia lançada
em torno do móbil mais distante e mais aparente. O assassino é “mera causa
ocasional daquela carpidação”. A sua pergunta fundamental (“ask mother”) escapa já a qualquer daqueles homens que não se põem
perguntas e não se lembram da mãe.
Mas se While the City Sleeps (e outras
comparações se podiam fazer) é uma recapitulação do mundo formal de Lang
(visita às suas próprias formas) é, por outro lado, na sua construção, um dos
filmes mais insólitos do autor do Dr.
Mabuse. O filme centra-se (ou “descentra-se”) em torno de nove personagens
que todos eles são - e não são - o protagonista e para os quais Lang reuniu o
mais impressionante cast de actores
de toda a sua obra: Dana Andrews, George Sanders, Thomas Mitchell, Vincent
Price, James Craig, John Barrymore Jr., para os homens, Sally Forrest, Ida
Lupino, Rhonda Fleming, para as mulheres. Aparentemente, o combate
personifica-se em três deles: o casal Andrews-Forrest dum lado e o assassino do
outro. Mas como o outro lado (o do assassino) é um esquema (frequentemente
esquecido por espectadores e jornalistas), o que vem ao primeiro plano são os
cruzamentos entre os outros personagens: Andrews-Lupino, Sanders-Lupino,
Forrest-Fleming, Fleming-Craig e de todos com Mitchell e Price.
Essa descentração
de um evidente protagonista (ao contrário do que sucedia, por exemplo, em obras
congéneres como M e Fury) é feita a favor do peso da rede,
dando o primado, uma vez mais, à organização, ao colectivo. Só
que, em While the City Sleeps, ao
contrário dos filmes em que a organização presidia a tudo (Die Spinnen, Spione, Ministry of Fear, You and Me, Cloak and Dagger,
Hangmen Also Die, etc.) ela não se
dissolve num anonimato ou num monstro de mil cabeças, mas reduz-se às nove
personagens já citadas. Ou seja, por um lado, Lang descentra, evitando a
protagonização, os leading parts, por
outro reduz as linhas periféricas, habituais na sua obra, tornando-as o próprio
centro e conferindo a cada linha espessura especial. Dispersa e concentra, como
dispersa e concentra o espaço do filme, das ruas de Nova Iorque para os
prédios, destes para os apartamentos, dos apartamentos para o espaço confinado
ao jornal e decidindo, depois, tudo na sequência subterrânea do metropolitano.
Num caso como
noutro, Lang não procede apenas por afunilamento ou “dilatação”, mas por
complementariadade e alternância (donde, os surpreendentes raccords desta obra). Quase se poderia dizer que é um filme em sketches se todos os episódios
aparentemente dispersivos não tivessem por objectivo único o querer omitir as
motivações longínquas (a caça a um homem acossado, a posse de algumas mulheres)
e trazer ao primeiro plano essa omissão. Sexo e crime são meios para outra
guerra mais terrível: a da mesquinha compensação, através da posse do jornal,
dum poder a exercer sobre um mundo que em reverso só devolve o sexo e o crime.
Não são os
espaços que se afunilam, são as visões e, neste capítulo, são capitais as
sequências da televisão e a do bar, Dana Andrews e Ida Lupino. O pequeno écran
reduz à luta com uma imagem e uma voz intromissoras o acossamento e a solidão
do assassino; no bar, Ida Lupino substitui a sedução por imagens pornográficas
(ilusão em que nós e o “barman” caímos) na exibição da sua nudez infantil,
fornecendo uma pista íntima, mas de origem completamente diversa da que se
esperava. Daí que a primeira sequência (em que se trata de um assassino e de
morte) tenha um peso violador e a segunda tenha um peso castrador, frustrando o
espectador do que queria ver e funcionando como metáfora suprema do erotismo em
“off”, existente ao longo de todo o filme (relação de Andrews com a namorada
que se recusa a intimidades, banalização das situações de baixa mentira,
ligadas ao adultério).
Num caso como
noutro, a imagem só reenvia à solidão. A partir dessas sequências, podemos
aperceber-nos como a construção centrípeta do filme, só para a solidão aponta
também. Uma série de pessoas, com falsos cruzamentos, à procura de um momento
de encontro. O único que o teve, talvez seja aquele que escreve “ask mother”. Para os outros a vida
continua, tão desesperadamente só, como antes daquele fait divers. Nesse sentido While
the City Sleeps é o filme mais perverso da obra de Lang. Com o seu plano
mais sombrio: Vincent Price e os pinhões.
JOÃO BÉNARD DA
COSTA
(Folhas da
Cinemateca Portuguesa)
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