por Ruy Gardnier
INTRODUÇÃO. Hitchcock só no parágrafo seguinte.
A crítica no Brasil é devedora do trabalho dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. No caso de 50% da presente revista, idem. No caso desse que escreve, também. Foram eles os que mais fizeram pela divulgação e pelo questionamento dos processos artísticos da literatura nesse século (e no que esse século considera como seus antepassados, dos provençais a Poe). No plano da crítica, trouxeram os formalistas, Ezra Pound e os estruturalistas. De modo que grande parte das vanguardas brasileiras se apóia, quando escreve, na herança Pound / Fenollosa / Barthes. O mote da crítica concretista, que veio num momento cheio de raiva contra toda uma geração crítica acadêmica e conteudista, dizia: "A forma é o conteúdo", ou à maneira de Marshall McLuhan, "O meio é a mensagem". É claro, o que se tratava naquele momento era tirar de circulação os grandes temas, a fábula moralizante, para, no século da linguagem, fazer a análise poética da linguagem. Resta, porém, um resíduo que não é criação do concretismo mas que lhe veio com o tempo (e é de se acreditar que com o tempo os pós-concretos tenham cristalizadas e plácidas as suas questões outrora vivas). Esse resíduo é a crítica veemente a qualquer coisa que possa parecer à primeira vista uma análise do conteúdo, do assunto da obra. Ora, justo onde parece que estamos falando de conteúdo, vai aí que falamos apenas de formas — pois nos parece evidente que o assunto, o desenrolar de um filme ou de uma peça, vai desenhando, a seu modo, uma gama de formas que um desviar de olhos fatalmente deixaria escapar parte importante da obra em questão. Se você me disser que arte é forma, eu concordarei. Se você me disser que arte não é conteúdo, você se enganou muitíssimo. Numa obra vemos formas — mas formas de expressão e formas de conteúdo. Estilo e assunto, se se quer. Uma análise conjunta dos dois é sempre mais abrangente do que isolar um ou outro numa análise formal (e o estruturalismo esgotou as suas possibilidades há algum tempo, embora ainda tenha heranças bem-vindas). Por isso essa guisa de introdução a um texto de análise das formas do conteúdo.
A crítica no Brasil é devedora do trabalho dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. No caso de 50% da presente revista, idem. No caso desse que escreve, também. Foram eles os que mais fizeram pela divulgação e pelo questionamento dos processos artísticos da literatura nesse século (e no que esse século considera como seus antepassados, dos provençais a Poe). No plano da crítica, trouxeram os formalistas, Ezra Pound e os estruturalistas. De modo que grande parte das vanguardas brasileiras se apóia, quando escreve, na herança Pound / Fenollosa / Barthes. O mote da crítica concretista, que veio num momento cheio de raiva contra toda uma geração crítica acadêmica e conteudista, dizia: "A forma é o conteúdo", ou à maneira de Marshall McLuhan, "O meio é a mensagem". É claro, o que se tratava naquele momento era tirar de circulação os grandes temas, a fábula moralizante, para, no século da linguagem, fazer a análise poética da linguagem. Resta, porém, um resíduo que não é criação do concretismo mas que lhe veio com o tempo (e é de se acreditar que com o tempo os pós-concretos tenham cristalizadas e plácidas as suas questões outrora vivas). Esse resíduo é a crítica veemente a qualquer coisa que possa parecer à primeira vista uma análise do conteúdo, do assunto da obra. Ora, justo onde parece que estamos falando de conteúdo, vai aí que falamos apenas de formas — pois nos parece evidente que o assunto, o desenrolar de um filme ou de uma peça, vai desenhando, a seu modo, uma gama de formas que um desviar de olhos fatalmente deixaria escapar parte importante da obra em questão. Se você me disser que arte é forma, eu concordarei. Se você me disser que arte não é conteúdo, você se enganou muitíssimo. Numa obra vemos formas — mas formas de expressão e formas de conteúdo. Estilo e assunto, se se quer. Uma análise conjunta dos dois é sempre mais abrangente do que isolar um ou outro numa análise formal (e o estruturalismo esgotou as suas possibilidades há algum tempo, embora ainda tenha heranças bem-vindas). Por isso essa guisa de introdução a um texto de análise das formas do conteúdo.
***
Hitchcock é um artista um pouco avesso a uma interpretação de sentido nos seus filmes. Os estudos sobre seus filmes tendem
sempre a tentar penetrar em seu (denso) estilo. Seu cinema já chegou inclusive
a ser pensado como pura forma e nenhum conteúdo, a expressão máxima da arte
visual no cinema. Contudo, as formas de conteúdo são recorrentes, vários filmes
são organizados de acordo com o mesmo parti-pris. E, antes disso, sob uma mesma forma de conteúdo
geral: o suspense. O suspense é uma forma. Ele trabalha tanto na forma de
expressão quanto na forma de conteúdo. Como expressão, ele trabalha com o que
está ausente na tela, em suspensão. Como conteúdo, ele opera os complexos semânticos de medo e de passagem
de tempo.
O suspense pode ser desenhado a partir de diversas formas, e o próprio
cinema de Hitchcock pode ser considerado como um grande inventário, ou antes
como um grande evangelho das formas do suspense. Mas a visão contínua de sua
obra permite que se veja que o velho Alfred tem uma predileção imensa por uma
delas: a do percurso. O percurso começa com um fator desencadeador, a partir do qual o
personagem terá que provar algo,
enfrentando com isso a franca oposição dos poderes instituídos (polícia,
política, cidadãos "idôneos", etc.). É esse percurso que na maioria
das vezes constitui o suspense, por exemplo, em Sabotador, Os 39 Degraus, Correspondente Estrangeiro, A Dama Oculta, até filmes tardios, como Cortina Rasgada.
Mas esse percurso envolve outra coisa — o objetivo. Óbvio, a estrutura
narrativa tenta resolver isso de forma simples, através da simples realização
do percurso e da inocência por fim encontrada. Mas as linhars subliminares de
Hitchcock, ou ao menos de suas principais obras, nos dizem mais. Através do
caminho percurso-prova-inocência, se desenha uma outra linha discursiva, um outro
fluxo de enunciação que não tematizam mais justiça ou inocência, mas sim os
valores de casamento, maturidade e desejo. Quanto a isso, dois filmes colocam
isso especialmente em evidência: Janela Indiscreta e Intriga Internacional. Os signos de sexo e casamento são tão patentes
nesse filme que é impossível pensá-los como acesssórios à trama. Ao contrário,
é a trama que parece colocar-se em segundo plano e servir apenas de metáfora
para o que o verdadeiro filme está mostrando.
Em Janela Indiscreta, filme-tese sobre o casamento, vemos L.B. Jeffries
com a perna quebrada. Em dois travelings se desenvolve a dialética do filme: um mostra, numa virtuosidade
surpreendente, tudo o que envolveu o acidente do personagem, como a câmara de
fotografia, as fotos de carros de corrida, até mostrar o gesso e Jeffries
dormindo numa cadeira de rodas; no outro traveling, observamos o que Jeff pode ver através da sua
janela traseira, como o casal feliz que compartilha todos os seus momentos, a
jovem bailarina que freqüenta o bas-fond e vive num mundo vazio à procura de um amor, o pianista que não consegue
completar a sua obra por falta de inspiração, a senhora que tem crises nervosas
por viver sozinha e um casal que briga infernalmente. O elemento que vai operar
essa dialética, que vai conjugar Jeff com a questão do outro prédio (a questão
da vida amorosa) é Lisa Fremont, jovem da alta classe que tenta desposar o
desajeitado fotógrafo1. Jeff não parece descontente de viver
sozinha: namora a jovem, que é rica, bonita e inteligente, e trabalhando em
viagem pelo mundo, acompanhando as corridas de carros. O que impede o desejo de
Lisa de se realizar é justamente o fato de Jeff encarar a vida no casamento
como tediosa e sem-graça. A operação de Janela Indiscreta é a passagem ao ato. Se temos razão, Jeff observa a questão do casamento
através da janela traseira de seu prédio, mas jamais chega a tomá-la para si.
Vendo, ele pode viver esse momento sem entretanto correr o risco de sofrer as
decepções causadas pelos relacionamentos. Mais uma vez, a questão do medo de
sociabilidade em Hitchcock, a vida social sendo sempre o terreno do mal e da
sordidez.
Janela Indiscreta tematiza um procedimento caro à obra de Hitchcock (mas nem tanto à sua
vida): a passagem ao ato, ir do ver até o ser. Lisa é o operador simbólico da
passagem ao ato de Jeff, algo como um "operador de maturidade": ele
começa o filme como uma criança, a empregada/enfermeira servindo como uma
figura de mãe (as figuras de mãe são recorrentes nos filmes de Hitchcock), e
termina o filme casado, feliz com Lisa Fremont. Lisa é operador porque é ela
quem consegue fazer ver que o casamento não é (como o menino Jeff pensava) a
submissão a um modo sedentário do relacionamento amoroso. A incursão de Lisa
pelo prédio em frente é exemplar do universo de desejo hitchcockiano: ela penetra
no mundo do casamento, ela penetra no universo do outro, da sexualidade. É só a
partir daí que Jeff percebe que pode se entregar ao casamento; o casamento,
depois disso, passa a ser uma verdadeira economia política do desejo, nunca
mais uma partilha sedentária dos afetos. E só a partir daí o filme pode se
completar.
(...)
1.Na verdade, a metáfora é
impressionantemente mantida até o final do filme, pois na hora de exercer
alguma ação sobre o que acontece no prédio em frente, quem vai fazê-lo é Lisa,
e só isso, o espírito aventuresco de Lisa, é que vai fazer com que Jeff finalmente
queira se casar com a moça.
Texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/01-10/hitchcocklibertariosimbolico.html
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