terça-feira, 8 de dezembro de 2015

ENTREVISTA COM LUIZ CARLOS OLIVEIRA JÚNIOR


Entre tantos prazeres, proporcionados pelo Festival Olhar de Cinema em 2015, a conversa com Luiz Carlos Oliveira Júnior foi o mais esclarecedor. Rivalizando até mesmo com o reencontro com Jacques Tati, Roberto Rossellini e Nicholas Ray e com a evidência de que seus velhos filmes ainda nos oferecem as mais iluminadas respostas aos dilemas enfrentados hoje.

Isto graças, em primeiro lugar, à generosidade pedagógica com que o nosso interlocutor apresentou suas idéias a respeito de questões urgentes: do cinema na universidade ao fim da película, passando por Alfred Hitchcock, mise en scène, crítica e outras questões estrategicamente aposentadas pelos agentes de vendas das agendas contemporâneas.

Em segundo lugar, pela consciência resultante destas questões de que apesar da aparente festividade, o cinema enfrenta sim uma crise grave. No âmbito local, nacional e internacional. E que reconhecê-la é obviamente o primeiro passo para o seu mais justo enfrentamento.

Naquela tarde de 14 de junho, Cauby Monteiro, Leticia Weber e eu - graças à intervenção clandestina do mais nobre entre os nobres, Alexandre Magno - ganhamos, mais do que o muito desejado encontro com um de nossos mestres de cinema:  uma pequena aula que naquele momento valeu mais do que os quatro anos de faculdade e que agora levamos a público nesta transcrição de fôlego - executada pelo nobilíssimo Erick Moro – e que, apesar do tom apocalíptico, é habitada por algumas luzes.

É de vida que fala este texto de morte.

Miguel Haoni

Cinema na universidade

MiguelDoutor Luiz Carlos Oliveira Jr... Já é ou falta pouco?

Jr. – Eu já sou, mas não precisa me chamar de doutor.

MiguelE o que isso significa?

Jr. – Significa que eu terminei o doutorado e estou desempregado. (Risos)

Miguel Ah, o mercado é amplo, pode vender cachorro-quente, pode vender...

Jr. – É. Exato, estou aí engrossando a lista.

MiguelComo é que foi a experiência acadêmica?

Jr. – Para mim foi ótima. Porque foi a possibilidade de eu juntar tudo o que estava disperso no meu pensamento, que eu construí na crítica, sobretudo nos textos que eu escrevi na Contracampo, e para coberturas de festivais. Eu acho que surgiram muitas coisas ali: setas de caminhos possíveis para eu me aprofundar, de temas que eu poderia desenvolver, enfim, pesquisas em potência, em latência. E quando eu parei para fazer o mestrado, e isso é muito claro na minha dissertação, (que depois deu origem ao livro) foi de fato uma condensação de muita coisa que já estava dispersa ou nem tão dispersa assim, mas cujas bases já tinham sido dadas por uma série de artigos e críticas sobre filmes contemporâneos que eu tinha escrito entre 2002 e 2006.

MiguelTe ajudou a organizar e sistematizar a tua produção?

Jr. – Claro. Mas existe uma forma equivocada de se encarar a coisa. A do cara que vai para a academia institucionalizar o pensamento dele, se encastelar dentro de uma instituição, vestir uma certa arrogância acadêmica e se vedar ao debate que era feito por exemplo, pela crítica, que vem de um tête-à-tête com os filmes, de uma integração de grupos jovens e pessoas vivendo cinema, discutindo cinema todo dia. O cara na academia vai se ultra-especializar, que é um dos grandes riscos – falo de risco, mesmo – porque eu não enxergo como um...

 (Breve interrupção para marcar uma cerveja com Luis Campos que nunca será bebida)

... É legal você ter uma especialidade e conhecer um assunto a fundo.  Todos nós temos isso e é algo importante. Todo pesquisador tem um assunto que sabe melhor que os outros. Mas existem formas e formas de você ser um especialista. Existem excelentes pesquisadores no Brasil que basicamente trabalham com um só tema, mas que têm uma contribuição para aquele tema que é sempre renovada e empresta sentido ao fato da pessoa estar trilhando aquele caminho de forma retilínea. Outros não, outros eu já vejo que é uma coisa mais reiterativa, e não faz tanto sentido.

Mas no meu caso, isto permitiu que eu tivesse o tempo e a dedicação de uma pesquisa de mais fôlego, que é uma coisa que quando você está ali só na correria da crítica você não vai fazer. Você não vai parar dois ou três anos para pesquisar as origens da mise en scène no teatro e no cinema e como isso se desdobra em meio à história dos estilos no cinema. Para mim foi muito isso, foi me dar a oportunidade, inventar na minha vida a ocasião de fazer pesquisa de mais fôlego, que é o que eu sempre quis fazer.

MiguelMas de maneira geral como é que tu percebes a manipulação do cinema dentro da universidade? Tu consideras interessante a forma como a universidade lida com cinema?

Jr. – Não dá para generalizar a academia. Você tem que ver de pesquisador a pesquisador.  É um caso individual mesmo. Tem gente que tem uma relação com cinema que é totalmente imediata, vitalizante, em que a pessoa realmente está tentando um contato com as imagens, está levando em conta no trabalho dela a experiência estética – essa dimensão que é incontornável, afinal de contas, estamos falando de uma obra de arte, de um filme. Um filme envolve uma experiência estética, envolve uma fruição e ignorar isso para falar só de conceitos me parece uma coisa bem problemática. Mas nem todo mundo faz isso na academia, embora muita gente faça. É comum você ver, indo nesses congressos e colóquios, que tem gente que arruma os mais sofisticados subterfúgios, os mais rebuscados argumentos para conseguir a proeza de falar de cinema sem ir aos filmes.

MiguelEu tenho a sensação de que dentro da universidade algumas pessoas têm nojo do cinema, e então colocam luvas em cima de luvas para poder chegar perto...

Jr. – É. Você pode pensar numa charge com um sujeito olhando para uma tela que está a dois quilômetros dele e na qual um filme está sendo projetado, e entre ele e a tela há vários muros de pedra. E em cada muro você bota o nome de um filósofo. (Risos)

E aí você vai ter mais ou menos a forma de abordagem de muita gente. Não só na academia, porque isso já se expandiu até para a crítica. Você vê às vezes um discurso ultramediado, uma necessidade de muita mediação, de muito instrumental teórico para lidar com uma coisa que é pulsante, que quando acontece e você entra em contato com ela é uma coisa que não está necessariamente te solicitando toda essa mediação. Na verdade, é o contrário. Pode vir depois, mas num primeiro momento o filme está te pedindo que você tenha com ele o contato mais próximo possível, uma experiência sensível, e depois a partir disso...

Por exemplo, um caminho que é muito comum num texto acadêmico e às vezes na crítica também: começar falando de teoria para depois falar de um filme ou de um autor. Então você tem lá um texto que começa citando vários pensadores, articulando conceitos, fazendo um verdadeiro pot-pourri de “filosofemas”. E depois de todo esse pot-pourri, “o filme tal, de fulano de tal, do ano tal...”. Aí, depois de apresentar toda aquela grelha conceitual, você vai inserir o filme a fórceps dentro dessa estrutura pré-moldada, só para ilustrar os conceitos.

Isso para mim não faz muito sentido. Não faz mesmo. É o caminho inverso ao que eu faço. Eu parto dos filmes, pois partilho da crença de que existe uma teoria nos filmes, existe um pensamento no cinema. Os filmes – para usar um verbo caro aos semiólogos, mas que no cinema causa ruído, mas vá lá –, eles enunciam uma teoria. Enunciam um discurso sobre o mundo, sobre a arte e sobre o cinema, neles mesmos. Eles não estão usando o cinema como formulação de um discurso, não. Os filmes constroem isso. Tem uma organicidade ali e eu acredito nessa ideia da imagem dotada de um pensamento próprio, de uma atividade inerente da forma. A forma artística, de certa maneira, pensa. E eu tento enxergar qual é esse pensamento. O que a imagem pensa e ao pensar me estimula a pensar junto com ela (ou contra ela, que seja)? Esse é o caminho que eu acho mais interessante. Não vou dizer que é o único caminho, ou que é o melhor... é o mais interessante. Só consigo fazer desse jeito.

Porque eu acho que, no fundo, falar de imagem, falar de filme é um negócio complexo. É uma estrutura múltipla, um implexo de elementos heterogêneos. Basta dizer, para formular essa dificuldade de maneira bem simplista, que existe uma pista de imagem e uma pista de som. As relações que isso estabelece são por vezes das mais complexas. Você tem também uma força de figuração muito forte, você tem uma imagem com um grau de fidelidade mimética com a realidade sensível que está na base de todo o nosso engajamento afetivo com o cinema. Há essa capacidade do cinema de ser uma espécie de placa sensível, de esponja que absorve as forças que atravessam uma determinada sociedade num determinado momento. E o filme cristaliza isso, absorve, se impregna desse ar do tempo, dessa atmosfera da época.

Sem falar na questão de mise en scène, das múltiplas formas que você tem para focalizar determinada cena, determinado sujeito, inseri-lo no espaço, articular as relações dele com esse espaço, com outros sujeitos e outros elementos que ocupam esse espaço... Em resumo: é um material complexo.

E as pessoas – por mais que a gente viva a extremidade da tal civilização da imagem e blábláblá – estão com um bloqueio para falar de imagem. Qualquer imagem. A imagem virou uma coisa tão natural na nossa vida, parte tão importante da nossa mobília existencial cotidiana que a gente já não sabe mais o que dizer sobre aquilo. Que nem se alguém começar a pedir para você falar um pouco do seu casaco. E a imagem está chegando num ponto em que a pessoa a usa o tempo todo, vive, absorve e se nutre no meio de imagens, mas não consegue dizer o que essa imagem representa, qual o lugar dessa imagem dentro de uma história da representação no nosso imaginário artístico ocidental – para não extrapolar para campos que a gente não domina tão bem. E isso com tudo; com fotografia, pintura.

E quando chega no cinema, que tem esse outro grau de complexidade, por envolver esse dinamismo (são várias imagens, uma sucessão), me parece que essa dificuldade vem sendo, em muitos casos, compensada por aquela hipertrofia de um quadro teórico. Às vezes dos mais nobres, dos mais sofisticados, desde um repertório da filosofia contemporânea, dos estudos culturais até a filosofia alemã do século XIX.  Tem de tudo.

Mas veja bem, não estou generalizando. Tem gente que traz esse repertório para a prática de análise fílmica e faz isso muito bem. Mas em muitos casos o que existe é, na verdade, uma hipertrofia dessa prótese teórica como via de compensação para uma dificuldade, quiçá uma verdadeira inabilidade de lidar com as imagens. De tentar dizer, ver, enxergar, ter olho.

Alfred Hitchcock

Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958

MiguelTe ouvindo e ouvindo o Francis Vogner dos Reis nesses últimos dois dias, me parece que é um universo que intimida bastante e as pessoas estão cada vez mais melindradas de ter um enfrentamento ou uma relação mais livre e mais selvagem com esse universo. E a saída encontrada – saída que também atende a uma demanda mercadológica, visto que o mercado independente já está tão nocivo quanto o grande mercado – é a de virar as páginas da história do cinema muito prematuramente. E em 2015, você vem nos falar de Hitchcock. Precisa?

Jr. – Sempre precisa.

MiguelPor quê?

Jr. – Imagine o Erwin Panofsky, historiador da arte, em 1932, quando resolveu escrever A Perspectiva como Forma Simbólica, imagina se alguém fala para ele “pô, mas você vai falar sobre a invenção da perspectiva na pintura ocidental? Sério? Uma coisa lá do século XV?” E aí ele não ia ter feito um dos grandes estudos de arte visual do século XX. Mesma coisa o Hubert Damisch, que foi fazer um livro sobre a arqueologia de um dispositivo de perspectiva inventado pelo Brunelleschi em mil quatrocentos e pouco. Ele foi fazer este livro na década de 1980.

É preciso entender que existe uma coisa que está para além.

Por ser o cinema esta arte que lida de maneira tão imediata com o seu tempo, que nasce como epítome da modernidade e carrega ao longo de toda a sua história o peso de ser a arte moderna por excelência, de ser a arte dos tempos modernos, isso automaticamente cria em muita gente o pensamento: “falar de cinema é falar do presente, é falar do cinema que está sendo feito agora, do que está dialogando com o mundo de hoje, como ele está nos ajudando a perceber o mundo de hoje”. Eu acho que sim, o cinema é isso sim, ele é um acesso privilegiado ao mundo. Agora, ele não é isso. Existe o cinema dentro de algo, que extrapola o próprio cinema, que é o que se chama de história das formas artísticas. Então claro, é tão pertinente falar de Hitchcock hoje como é falar de Poussin. Por que é que uma pessoa não pode mais falar de Nicolas Poussin? Na filosofia não se fala de Platão ainda? Então no cinema a gente tem que falar de Bazin a vida inteira.

Você está falando ali dos fundadores de um pensamento sobre cinema. No caso você está falando de um dos maiores inventores de formas da história do cinema, por mais que já tenha gerado o maior número de exegeses da história da teoria e da crítica cinematográfica no caso do Hitchcock. Nunca se escreveu tanto sobre um diretor e no caso do filme que é o ponto de partida da minha tese, Vertigo, trata-se do filme mais falado da história. Mas quem disse que ele foi esgotado? E quem disse que não existe uma forma de, a partir dele – que é o que eu tento fazer na minha tese –, descobrir uma nova brecha, uma porta de acesso à história do cinema, que estava ali entreaberta e que só era possível chegar mediante uma revisita a Vertigo. Na verdade, Vertigo foi o filme que me permitiu descobrir dentro da história do cinema – atravessada pela literatura, pela pintura (eu falo muito de pintura na minha tese) – uma espécie de fio guia para trilhar e acompanhar uma série, à qual chamei a série-Vertigo (poderia ser também a galáxia-Vertigo). Imagine ali um tapete com um desenho, uma figura. E você vai tentar enxergar esse tapete usando um fio guia. No meu caso, foi o Vertigo. E aí surgem várias outras coisas a reboque disso.

Mise en scène

Miguel Eu acredito que seja um medo mesmo do enfrentamento mais direto com essa história por que...

Jr. – Intimida, você falou bem, intimida.

MiguelPor exemplo: o mercado está tentando nos vender essa semana um cara chamado Nathan Silver. E compra-se isso com uma facilidade, como se ele oferecesse uma saída. E pô, eu fui numa sessão de Trafic, que para mim é um filme que fala de 2015 e não de 1971, e me pareceu que ele não teve o efeito que deveria...

O nome do teu livro é A mise en scène no cinema. Trata-se ainda de uma arte ignorada, como foi em 58 quando o Michel Mourlet escreveu o texto que você traduziu?

Jr. – É uma arte menos ignorada, no sentido de que houve um renovado interesse por ela. Nos últimos 15 anos uma série de livros lançou luz sobre o conceito de mise en scène, sobre o que é a mise en scène, afinal de contas. Porque durante muito tempo se falou em mise en scène sem que nunca se chegasse a uma definição com contornos precisos e nítidos. A figura ficava meio nublada ali, meio borrada. E aí houve uma espécie de sintonia de pesquisadores em diferentes partes do planeta pensando “Qual o lugar da mise en scène hoje?”. Essa é a principal pergunta. E resolveram responder essa questão e isso obrigou que eles fizessem um recuo histórico para pegar as origens do significado da mise en scène no cinema, ou ainda antes, no teatro também. Outros já começam na questão de como isso surge no vocabulário fílmico dos anos 50, ou melhor, como isso surge desde os primeiros anos do cinema, mas é transformado em conceito, magnificado e sistematizado no contexto da crítica francesa dos anos 50.

E com isso, por um lado a gente ignora menos a mise en scène. Mas se a gente for pegar na raiz do que o Mourlet está falando, ainda é uma arte ignorada, porque a maioria das pessoas ainda não sabe, depois de ver um filme, dizer o que é a mise en scène nesse filme. É que, na verdade, a questão do Mourlet é que as pessoas não sabiam separar o joio do trigo, não tinham entendido que a essência do cinema é a mise-en-scène e que somente alguns cineastas alcançam essa quintessência da estética cinematográfica. Cineastas que se contam nos dedos de uma mão, na visão do Mourlet. Então as pessoas ficavam laureando a torto e a direito, descobrindo o novo gênio a cada semana e com isso ignoravam a verdadeira arte do cinema que é a mise en scène e que só está em um ou outro cineasta que você não vai ver toda semana. É nesse sentido que ele fala da arte ignorada.

O Sepulcro Indiano, Fritz Lang, 1959

Então a gente pode falar de duas dimensões: você ignorar o que é a mise en scène no sentido do que esse conceito significa dentro da história das ideias sobre o cinema e você pode falar de uma falta de percepção do que o cinema pode ser, de todos os potenciais contidos no cinema, e que você poderia agrupar esses potenciais sob essa expressão, “mise en scène”. Os filmes que realizam a contento essas possibilidades implicadas na linguagem cinematográfica e no cinema como meio de expressão são os filmes que têm mise en scène.

Mas também é aquela coisa: você saber lidar com isso tudo sem entrar na via normatizadora. De criar uma fórmula normativa na qual os filmes têm que ter isso aqui para eu gostar ou dizer que é um filme que importa para a história do cinema, e os que não tiverem eu excluo. Enfim, é complexo. Cada filme tem uma demanda. Mas é uma verdade que é muito raro hoje em dia você ver um filme em que o realizador tem uma vaga noção do que seja a mise en scène. A maioria não tem nem uma vaga noção das possibilidades permitidas pela câmera para enfocar determinada situação.

Porque, se é difícil para a gente ver imagens, é difícil também, cada vez mais, fazer imagens. E essa intimidação gera certo retraimento formal, que é uma das tendências dominantes no cinema contemporâneo. Sobretudo no dito cinema de arte, que passa nos festivais. É muito mais fácil você ver um filme em que o cara resolve uma cena inteira num só enquadramento, e não necessariamente num grande achado de composição que resolve realmente toda aquela cena num único ângulo, num único ponto de vista, numa única composição que você possa dizer: “é, essa cena tinha que ser filmada desse jeito” ou “entendo por que esse cara filmou assim”. Não. Às vezes é um plano qualquer nota. E esse plano foi adotado porque esse cineasta não aceitou o desafio da mise en scène. Ele se retraiu diante dessa complexidade (complexidade no bom sentido para mim).

Eu acho que se eu fosse fazer um filme ficaria muito frustrado de não queimar a nuca em cada plano, sabe? Eu ia ficar muito frustrado em me contentar com pouco, achar um quadro bonito e esse quadro me satisfazer. E esse cinema, como você disse, é aceito com muita facilidade, de fato, pelo senso comum criado pelos festivais, pelas curadorias e pela crítica também. A crítica (não toda crítica, obviamente) criou um senso comum em torno do que é um bom filme hoje, um senso comum que nivelou por baixo, que aceita qualquer filme com um pouco mais de sensibilidade, que saiba trabalhar os tempos mortos de uma determinada forma, que lida com certos temas e que saiba minimamente trazer uma sensação do espaço, uma criação de ambiência. Se tiver aí uma meia dúzia de elementos que são os movimentos obrigatórios, a coisa já é enaltecida.

A função da crítica, como dizia o Clement Greenberg, um grande crítico de arte americano, é criar uma pressão atmosférica no campo artístico. Dentro dessa pressão atmosférica nasce a melhor arte. Quando você afrouxa tudo, não tem mais pressão e aí a melhor arte passa a ser qualquer arte.

Hitchcock e a teoria feminista

MiguelEu acho que se exige muito pouco de si nesse gesto de ver, pensar e fazer imagens. Acho que estamos covardes diante do cinema. Cada vez mais. E me parece que uma das saídas, que é aquela que você localizou, é voltar alguns passos nos fundamentos. Ainda não voltamos o suficiente em Hitchcock. Ainda não voltamos o suficiente na mise en scène ou em Mourlet,. Essas coisas estão falando de hoje, não estão falando de ontem.

Quando, por exemplo, uma colega nossa vem me dizer, levada pela nova politização dos corpos e o feminismo, na forma como este hoje se apresenta, que Hitchcock reforça o patriarcado, eu penso imediatamente que ele fez com Os Pássaros um dos maiores monumentos à potência sexual feminina, então em destaque nos anos 60 e que ainda serve para hoje.

Jr. – Concordo absolutamente.

MiguelE eu acho que diversos aspectos daquilo que nós enfrentamos hoje como sociedade e como indivíduos foram abordados não só pelo Hitchcock, mas por aquilo que ele pode representar aqui nessa conversa, e que infelizmente está sendo substituído por literalmente qualquer merda desde que seja de 2015, que seja do cinema universitário...

Jr. – Que fale do mundo de hoje, como se Hitchcock não falasse do mundo de hoje.

O Hitchcock foi o xodó dos estudos feministas quando essa tradição de teoria feminista voltada para o cinema se consolidou nos anos 70. Tem o texto seminal da Laura Mulvey, um dos textos fundadores da teoria feminista, cujos objetos de análise, cujos exemplos emblemáticos são os filmes do Hitchcock: o Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975). É um texto que eu já li várias vezes, já estudei, voltei a ele na minha tese e que tem uma importância capital. Dá para entender que é um texto que tem uma função de militância. Então, observado fora do contexto, a gente acha até um pouco bloqueada a visão da Laura Mulvey em relação ao cinema do Hitchcock. Ela escreveu um artigo revisando esse texto, onde ela revê muitas das suas posições, estou curiosíssimo para ler esse artigo.

Mas o fato é que seu artigo de 1975 gerou uma onda de estudos sobre a obra do Hitchcock vinda das feministas, bem diferente do que elas fizeram com o Brian De Palma, que foi usá-lo de maneira obtusa para atender a uma certa pauta do momento. Usá-lo como exemplo de algo que elas estavam tentando combater, e que os filmes dele efetivamente não representavam. No fim das contas elas não estavam nem vendo os filmes... No caso do Hitchcock, ao contrário do que aconteceu com o Brian De Palma, esses estudos renderam muita coisa boa. Acho que é impossível estudar Hitchcock hoje em dia ignorando a contribuição da teoria feminista.

Há um livro em particular, o da Tania Modleski: ela viu isso que você estava falando. O nome do livro é Women Who Knew Too Much: “As mulheres que sabiam demais”. E ela vai tentar mostrar justamente isso, como as mulheres nos filmes do Hitchcock são muito mais espertas e são muito mais donas da situação do que a gente pode imaginar numa primeira leitura. E vai fazer análises brilhantes dos filmes do Hitchcock a partir dessa perspectiva. Eu acho que você iria se interessar por esse livro.

MiguelO próprio Vertigo, na cena da floricultura: a mulher não é o objeto do olhar, ela é sujeito de uma encenação...

Jr. – Ela é as duas coisas.

Vertigo é um filme que causa essa schizo do olhar, onde o sujeito ao mesmo tempo é objeto e ator do teatro de olhares – onde ele está se inserindo e ajudando a construir. No caso da Judy disfarçada de Madeleine enredando o Scottie dentro daquela armadilha óptica. A cena da floricultura é muito exemplar: ela faz um pequeno desfile ali pra ele, ela se aproxima da porta, volta, parece uma modelo num desfile de moda, e ao mesmo tempo em que ela se dá ao olhar e está sendo espiada pelo Scottie naquele casulo de voyeur, ela está de certa maneira olhando para ele com toda a superfície de seu corpo. Não existe uma troca de olhares, ela não olha efetivamente para ele, mas é como se todo o ser dela naquele momento fosse um grande olhar voltado para ele.

Por isso que eu falo da schizo do olhar, que é a coisa do Lacan, do Seminário 11, em que ele conta aquela história do pescador que vê a latinha de sardinha boiando no mar. Um raio solar incide naquela latinha e reflete no olho dele e aquilo chama a atenção de quem está no barco e... eu não lembro direito da história, mas enfim: não são só as pessoas que olharam para aquele objeto, aquele objeto se fez olhar. Então na verdade é a latinha de sardinha que está olhando para eles.

MiguelEssa relação entre sujeito e objeto é muito complexa.

Jr. – É. Passa pela dicotomia entre sujeito e objeto, é coisa longa.

Crítica e o fim da película

MiguelTem uma coisa que eu acho importante que a gente fale um pouquinho: o panorama da crítica cinematográfica hoje no Brasil, que eu acho que tu estás intervindo menos do que nos anos anteriores.

Quando eu leio a revista Cinética, me parece que o cinema contemporâneo brasileiro é maravilhoso. E nem sempre quando eu encontro esses filmes, como por exemplo, sei lá o Branco Sai, Preto Fica...

Jr. – Não vi. Mas é um filme que está sendo muito falado.

MiguelEu vejo que não tem diferença do discurso do curador ou do júri que dá um prêmio para esse filme e o discurso do crítico que viu esse filme.

Isso quando eu consigo interagir, porque também tem uma outra escola, que parece que está pegando alunos de mestrado (no pior dos sentidos), que é a escola do Luiz Soares Jr., muito interessado em palavras raras, que não me permite acessar nem o que ele quer me dizer nem o filme que ele viu e eu vi também. Eu não sei, parece que a crítica está muito perdida...

Jr. – Eu acho que, no caso específico da relação da Cinética com o cinema brasileiro contemporâneo, houve um momento que eu inclusive fiz essa crítica. Num Cinema Falado, que a gente fazia aquele...

Miguel Qual era?

Cauby Cinema Falado, da Contracampo, teve um sobre cinema brasileiro.

Jr. – Isso. Foi no ano de dois mil e... num dos meus últimos anos na Contracampo. 2010, deve ter sido isso... e eu fiz essa crítica à Cinética. Mas eu acho que essa relação mudou nos últimos anos. Eu acho que eles, inclusive, em alguns casos, adquiriram uma posição combativa em relação a alguns filmes contemporâneos ali que aparentemente representavam o suprassumo do tal do novíssimo. O Fábio Andrade fez textos bastante contundentes em determinado momento... E agora eu acho que a revista mudou em termos de linha editorial e as pautas têm sido direcionadas para um certo resgate de um cinema de autor, digamos assim, mais raro: Werner Schroeter, James Benning.

Eu vejo uma tentativa grande de incorporar elementos das artes visuais em geral, do vídeo, da instalação, porque no fundo, o momento para as revistas de cinema, o momento para quem está fazendo cinema e tentando entender o cinema, eu acho que não é fácil. Porque a gente está numa transição e não sabemos qual vai ser o lugar do cinema daqui a dez anos. A gente não tem mais a menor convicção de onde vai estar o cinema.

Eu tenho a impressão de que a gente subestimou o impacto que o fim da película ia causar. Parece papo conservador, mas não é... Eu acho que houve alguma coisa ali... É algo que eu venho pensando recentemente, não é nenhuma grande teoria articulada e embasada, é uma teoria de mesa de bar, mas me parece que isso coincidiu com o momento em que eu parei de ver uma safra de grandes filmes surgindo no cenário internacional. Até os idos de 2005, 2006 era muito entusiasmante você acompanhar o cinema contemporâneo, os filmes que chegavam via festivais, que entravam em cartaz. Hollywood ainda dava espaço para alguns cineastas mais ousados que mesmo trabalhando dentro de um sistema de representação, de um universo do cinema de gênero, de cinema popular, eram cineastas muito ousados: o Shyamalan, o Michael Mann...

A Dama na Água, M. Night Shyamalan, 2006

Cauby2006 é o último filme do De Palma em Hollywood...

Jr. – De Palma... O De Palma já tinha sido marginalizado após Missão: Marte. Mas ele ainda fez aquele filme noir, (Dália Negra) belíssimo filme que foi um fracasso. Ali eu acho que foi o último estertor dele em Hollywood. Mas ainda havia um espaço, Shyamalan estava fazendo filmes ainda, chutando o balde. Michael Mann fez em 2006 o Miami Vice. E no cenário internacional eu estava acompanhando os filmes da Claire Denis, ela estava fazendo um filme melhor que o outro. Surgiram Apichatpong e outros cineastas. Hou Hsiao-hsien estava bem na ativa ainda – agora ele fez um filme novo, que passou em Cannes, mas ficou um bom tempo sem filmar. Kiarostami... enfim, uma série de cineastas que estavam ali vivendo uma parte muito interessante de sua carreira, ou o seu auge, e uma série de cineastas interessantes estavam surgindo.

O Intruso, Claire Denis, 2004

E eu não estou dizendo que eles só estavam fazendo filmes bons porque era uma época em que ainda existia a película, mas há uma coincidência com o fim de uma safra interessante do cinema... O fim da película representa algo maior. Realmente de uma mudança de era, de status. Uma mudança do lugar do cinema no mundo. Ele não é o responsável por isso. Era uma coisa que vinha acontecendo há um tempão; o fim da película é só o episódio que serve como a tomada de consciência. Claro que é uma coisa natural, que ia acontecer em algum momento, que já vinha acontecendo aos poucos desde os anos 90. A gente sabia... Mas acho que quando a coisa aconteceu, teve um baque, que foi subestimado. Reagimos com falsa naturalidade: “que nada, isso daí não representa nada. O cinema vai continuar. É a mesma coisa que você dizer que se tirasse a tinta a óleo do mercado acabava a pintura, quando na verdade há outras formas, outros materiais, outros suportes, outros meios de expressão”... Sim, concordo absolutamente, o fim da tinta a óleo não seria o fim da pintura. Mas seria o fim de uma certa pintura...

Isso criou um problema para a arquivística também, para a questão do armazenamento dos filmes. É um debate ultra-polêmico e muito forte hoje no campo da preservação do patrimônio cinematográfico: como preservar os filmes. O suporte digital é complicadíssimo do ponto de vista da preservação. Será que a gente não deve lutar para que continuem fabricando película porque é uma forma mais segura de guardar os filmes, por incrível que pareça?

É uma teoria de mesa de bar, mas eu acho que a notícia oficial do fim da película - “não se vai mais fazer filme com película” - foi a cereja do bolo de algo que já vinha acontecendo. E isso coincidiu com o momento em que estava todo mundo percebendo que, caramba, mudou... o cenário mudou. E para onde ir? Eu acho que tem muita gente perdida.

Qual o lugar do cinema na sociedade? Dentro de uma economia das imagens, tanto num sentido material, industrial, quanto também no sentido de uma economia estética, libidinal. Numa economia de como capturar os desejos, como lidar, cativar e agenciar todo um investimento, todo um envolvimento libidinal que está necessariamente implicado no contato de um sujeito com uma imagem. É um momento de crise, em que está todo mundo perdido mesmo.

Cinema clássico

MiguelCara, eu tenho um pouco de resistência ao cinema do presente e me interesso mais pelo cinema do futuro. E o cinema do futuro é Raoul Walsh. Porque o Raoul Walsh pode iluminar alguma coisa, oferecer uma saída para esse estado de coisas. Eu faço universidade de cinema e me parece uma castração química de quatro anos. Um estado de desenergização absoluto. Alguém está apontando hoje dentro da crítica cinematográfica, e dentro da produção de filmes, uma saída possível, interessante? Existe futuro para esse exercício?

Jr. – Acho que o James Gray faz filmes que estão em continuidade com uma certa história do cinema que inclui Walsh, por exemplo. Nessa percepção coletiva de que se atravessa um momento de ruptura você perde um pouco da conexão com o passado. É essa coisa, “o cinema agora é outra coisa, ele não é mais o que era antes. Materialmente, economicamente e socialmente falando, ele não é mais o que era antes”, e isso pode gerar uma perda de conexão com o passado. “Então obrigatoriamente a gente precisa procurar algo totalmente diferente dos filmes do tempo do Raoul Walsh” porque esse é o cinema do tempo da película, do tempo da indústria, do tempo da ficção, da fabulação como forma de mobilização do imaginário coletivo, enfim, um tempo onde você tem uma mitologia do cinema sendo criada e vivida. Mas ainda é possível se manter conectado ao passado. Não sei se é o melhor caminho, só sei que um dos grandes cineastas surgidos nos últimos vinte anos é o James Gray, que justamente está fazendo, com o estofo sensível do mundo de hoje, com a modulação dramática de hoje, o que o Minnelli poderia ter feito nos anos 50. Aquele filme que consegue te absorver completamente. Não no sentido de alienação, mas realmente de um engajamento afetivo com o filme. E depois daquelas duas horas, você tem a nítida sensação de que algo aconteceu. Você viveu uma experiência, de fato. Você viveu alguma coisa durante duas horas ali.

Era Uma Vez em Nova York, James Gray, 2013

MiguelO Gray diz que gosta muito das coisas antigas. Eu acho que é uma saída possível. Parece que andamos muito para frente e deixamos alguma coisa que ainda precisava ser melhor observada.

Jr. – O James Gray faz um autêntico cinema de mise en scène. Agora, aí é que está, é diferente você ver sistematicamente Raoul Walsh, John Ford, Hawks, Losey, e tentar emular. Porque aí não vai soar natural. Essa fluência do cinema do James Gray é porque justamente ele descobre ali o ritmo próprio dele, dos atores, dos espaços, do drama que ele está encenando. E ele vai chegar a uma forma de mise en scène, que a gente pode até chamar de clássica, neoclássica que seja, mas não porque ele aplica um certo estilo de decupagem que ele aprendeu com cineastas do passado. Isso seria outra coisa. Isso seria pastiche, ou até uma releitura maneirista da mise en scène clássica, e o James Gray é pós-maneirismo. Ele não é um maneirista, definitivamente. Ele está tentando justamente achar a fluência dramática. Ele tem o olhar clássico.

Porque o olhar clássico é justamente esse que tenta entender a demanda interna dos seus materiais, a mise en scène clássica passa muito por isso. Qual o ritmo desse espaço, qual o ritmo desse ator, como é que esse corpo se comporta dentro desse espaço?

MiguelCom um olho no material e outro permanentemente no invisível, na transcendência, no espírito...

Jr. – Certas definições da mise en scène passam por uma ideia de convergência de elementos materiais e não-materiais, de formas visíveis e invisíveis. Há também um agenciamento do tempo, das durações... há um arranjo significante do espaço e do tempo. Isso está ali na mise en scène clássica, nos melhores casos.

As pessoas confundem muito o classicismo com o academicismo. A aplicação banal da regra, o aprendizado de uma técnica e a sua aplicação dentro de um sistema de formas, isso é o academicismo: é quando você faz aquilo sem acrescentar a esse conjunto de regras nada da sua sensibilidade particular, da sua verve, do seu gênio. O classicismo envolve um conjunto de normas, porém ele é a transgressão dessa norma. Um equilíbrio sutil entre um sistema normativo, um conjunto de regras que formam o arcabouço de um sistema formal, e um olhar que traz sempre alguma forma de deslocar esse sistema. Pode pegar qualquer um desses grandes cineastas do período clássico. Hawks, Lang, Hitchcock, Lubitsch. Todos esses conseguem ao mesmo tempo se colocar dentro dessa norma e deslocá-la. E isso eu posso afirmar aqui categoricamente, é batata. Existe um elã que transforma aquilo em algo vivo, em algo vibrante. Isso é o classicismo. A banalidade campo/contra campo/mastershot é academicismo. Não se pode confundir um com o outro.

MiguelPode crer. Eu acho que só existe a ruptura onde tem a estrutura. Só pode haver a borboleta do Griffith se houver a cena. Então, se eu for fazer só a borboleta do Griffith, eu vou fazer um documentário sobre borboletas.

Jr. – E a borboleta não vai ter o impacto que ela traz, ela passa ali e ela vira um elemento decorativo, acessório. Quando a borboleta passa no Griffith e no Jean Renoir, ela traz uma iluminação. Ela ilumina o filme. Ela é um aporte do mundo que redimensiona o drama. É preciso ter um mínimo de rigor nas operações de mise en scène para que algo banal se torne algo especial. É a alquimia da arte, que exige pensamento, dedicação, experimentação...

Cinema e pintura

CaubyEssa coisa que tu trouxeste e que foi muito presente na crítica francesa dos anos 40 e 50 (Revue du Cinéma, Cahiers du Cinéma, macmahonismo - o Rohmer, o Astruc, depois o Godard, inclusive nos filmes que ele faz, Histoire(s) du Cinéma): a relação do cinema com as outras artes. Como você percebeu que seria fundamental esse estudo dos elementos pictóricos – enfim, estamos falando bastante de passado – indo muito ao passado? Como você percebeu que seria importante estudar a pintura renascentista, a pintura barroca para a compreensão de cinema?

Jr. – Eu não lembro exatamente como isso se deu, foi algo natural. Mas para mim está muito claro que o cinema não tem como produzir uma amnésia induzida que o faça esquecer as artes que o precederam, que o faça esquecer todas as estratégias de composição da pintura, por exemplo. No fundo existe uma questão de memória antropológica das formas artísticas. Em diferentes épocas, com diferentes meios, a humanidade vai tentar representar mais ou menos as mesmas coisas. Isso é algo que está muito em voga hoje, por conta dessa abordagem antropológica da história da arte que é o paradigma que vigora hoje nos estudos sobre as artes visuais. Houve um determinado momento em que era a pintura a arte visual encarregada de majoritariamente produzir uma representação da realidade.

Com a passagem do século XIX para o século XX, eu acho que o cinema tomou a dianteira e passou a ser a arte à qual a gente recorria quando queria ver a mimesis, quando queria ver a representação da realidade. Porque nós temos essa necessidade desde que habitávamos cavernas. A gente quer ver a representação do mundo em que a gente vive, a gente quer exteriorizar, quer gravar num suporte uma representação do mundo. Não só uma representação fantasiosa, não só uma criação de novos universos a partir das inscrições, gráficas ou não, a partir dos nossos mecanismos de representação – orais, verbais, visuais, icônicos, enfim. Mas a gente tem tanta necessidade de inventar novos universos como também de recriar o nosso mundo, cristalizá-lo numa forma que represente sua realidade. Aristóteles fala da imitação como um dos elementos definidores do animal humano: o homem é um animal que imita. Um animal que tem necessidade da mimese.

E por que eu voltei a tudo isso? Justamente, então, se você está falando do cinema, inevitavelmente irá enxergar um lado cíclico da história das artes. Porque você vai ver o cinema tentando responder, tentando solucionar uma série de problemas de representação que já se encontravam na pintura. Que já estavam no teatro, ou mesmo nos ícones medievais. Porque existem questões relativas à vontade de representar que se colocam a qualquer artista que esteja trabalhando. E assim, o cinema não é um meio de expressão tão distanciado da pintura. Não preciso nem me alongar nisso.

E para mim, a certa altura da minha pesquisa sobre a mise en scène no cinema, os diferentes estilos de mise en scène, e também uma certa identificação de qual estilo predominava em que época, houve um momento em que muito naturalmente me deparei com uma problemática da representação do espaço e da representação das relações dos corpos no espaço que trazia a mesma questão que você vai ver na passagem do classicismo renascentista para a pintura barroca, do renascimento tardio para o início do barroco.

Na representação clássica predomina a composição planimétrica de um espaço onde você identifica com precisão a figura e o cenário, existe um destaque individual de cada figura. Elas não se embolam dentro do plano como se fossem um emaranhado de corpos. Onde você tem a ideia de uma marcação de cena, uma certa coreografia cênica muito claramente trabalhada. Sem enrijecer a cena, sem engessar a mise en scène, e tudo se dá com absoluta fluidez. Mas se você observar com cuidado você vê ali toda aquela coreografia sendo produzida. É essa ideia do espaço, da tela de cinema como tributária ainda de um cubo cênico, que é algo que também está na pintura do renascimento. Foi muito natural para mim, enxergar nisso um paralelismo com a pintura.

E depois, quando você vai ver, de forma mais evidente, no cinema dos anos 90 uma tentativa de mergulho, de imersão sensorial nesse espaço atmosférico, aonde você não distingue com tanta nitidez assim o lugar dos corpos nos espaços, parece que todos eles formam um grande fluxo unitário, tudo isso se embola num grande turbilhão de sensações, e o espectador é convidado a olhar para isso não mais com o tal ponto de distância, do qual se falava na pintura renascentista – existe a boa distância para observar um quadro. No barroco essa boa distância se dissolve, a obra não está tentando te colocar numa relação de frontalidade, ela está tentando te absorver, te envolver numa grande sensação de embriaguez sensorial, de uma profusão dos sentidos.

Eu enxerguei isso com muita nitidez. Aí você tem um abandono da composição planimétrica, uma ideia de um quadro que é praticamente um meio aquático, onde todas as figuras parecem estar um pouco que flutuando e constituindo uma grande substância aquo-luminosa. Você vai ver isso nos filmes do Hou Hsiao-hsien, nos filmes da Claire Denis dos anos 90. E essa tentativa de filmar as atmosferas, os espaços que preenchem os intervalos entre os atores como algo que tem uma materialidade, que tem uma presença física. Em suma, isso tudo está muito claro pra mim, e faço com extrema convicção esse paralelo com a história da pintura.

Adeus ao Sul, Hou Hsiao-hsien, 1996

Pedro Costa e o cinema digital

LetíciaNessa conversa, pensei muito no Pedro Costa. Acho muito difícil a gente encarcerar um determinado filme ou cineasta em um conceito, mas ainda assim, por termos evocado muito nessa conversa o fim da película, uma ida aos clássicos, Pedro Costa reverberou no meu pensamento. Eu queria que você falasse um pouco sobre ele, não me lembro de ter lido críticas suas sobre esse cineasta.

Jr. – É, acho que eu nunca escrevi nada sobre o Pedro Costa. Eu definitivamente não o incluo no cinema de fluxo, é outra coisa. É um cinema onde você vai ver Chaplin, John Ford, Jacques Tourneur. Você vai ver Nicholas Ray, Rossellini, Straub, Ozu... É um cinema típico de um cara que viu muito filme e que entende muito de cinema. Basta ver ele falando sobre filmes, é sempre um aprendizado. Aliás, um risco que se corre ao falar de Pedro Costa é justamente o de ficar só se escorando nas referências dele e esquecer de falar do que ele traz de original. Pois ele traz esse algo novo que tem a ver com um certo trabalho com o tempo, por exemplo. Não sei se no sentido de duração de plano e de toda a gestão temporal dos filmes dele, que é muito particular. Você tem ali uma noção de elipse muito própria, uma noção de modulação do tempo, modulação da nossa experiência durante a projeção cinematográfica, que é muito particular.

Juventude em Marcha, Pedro Costa, 2006

E tem também a questão do tempo no sentido de tempo de gestação de uma obra. Ele tem um método de gastar tempo para fazer o filme. E esse tempo gasto na fabricação do filme está ali. Tem essa densidade de um tempo de gestação prolongado, que é algo dos novos materiais. Por exemplo: essa possibilidade da câmera digital, do fazer um filme com orçamento reduzido e com material que não é pesado, um material leve que ele pode transportar como um pintor transportava um cavalete e suas tintas para o meio da natureza, para fazer o en plein air. De certa maneira ele vai fazer isso. Vai se enfurnar naquele espaço, tentar entender toda a dinâmica do espaço, estudar todas as possibilidades daquele espaço, filmar horas de material, cinzelar. Imagina um escultor ali trabalhando aquele bloco de mármore com muito cuidado, sem um compromisso contratual, entregar num prazo, eu acho que isso é uma coisa que está ligada a um certo modelo de fabricação de filmes que, embora ele adore John Ford e tantos cineastas clássicos, não era possível lá.

Então, para ele chegar num enquadramento que John Ford fazia num dos três filmes que ele tinha realizado naquele ano, Pedro Costa precisa de meses. E esses meses estão ali naquele quadro de alguma forma. Aquelas sombras densas que ele filma. Eu acho que essa dilatação temporal da feitura dos filmes dele gera um tipo de trabalho dentro do tempo diegético que é muito interessante. Por exemplo o Juventude em Marcha, tem um recorte temporal que é muito rico, muito complexo.

CaubyTu achas que talvez os últimos grandes filmes feitos em digital nos últimos 15 anos sejam filmes feitos de maneira livre, praticamente caseira? Eu estou pensando no Pedro Costa, no Godard, e no último filme do Jean-Claude-Brisseau, o Garota de Lugar Nenhum.

A Garota de Lugar Nenhum, Jean-Claude Brisseau, 2012

Jr. – Eu não sei se dá para fazer essa afirmação porque a gente pode achar uma dezena de contra-exemplos também. Todo mundo está filmando com o digital, então todos os grandes filmes que você viu nos últimos anos foram feitos com o digital. Agora, existe digital e digital, com essa câmera aqui você pode fazer um filme.

CaubyOs diretores que ainda têm uma produção, um recurso produtivo maior como James Gray, Hou Hsiao-hsien... é mas tem o Michael Mann. Aí tu me quebrou. (Risos) Mas mesmo Michael Mann. Ele é um produtor. Mesmo o Miami Vice sendo um fracasso, mesmo o último filme dele sendo um fracasso, ele tem ainda liberdade para fazer o próximo filme.

Jr. – Daqui pra frente eu não sei, viu...

CaubyOs grandes cineastas ainda estão com uma teimosia com a película...

Jr. – Sim. E mesmo trabalhando com o digital a estrutura de produção mobilizada ainda é a mesma. Trabalhar com digital não significa trabalhar com baixo orçamento e com modelo de produção caseiro. Mas eu não sei, eu não saberia afirmar.

Eugène Green, por exemplo, sempre afirmou que não ia fazer um filme que não fosse em película. Ele é desses cineastas que teorizou a própria visão de cinema, escreveu uma poética – no sentido aristotélico –, uma poética cinematográfica. E não só ali, mas no Présence(s) também (outro livro dele). Ele sempre deixou muito claro também em entrevistas que o cinema tem na sua raiz uma conexão ontológica com o mundo, a ideia de impressão, de empreinte: um traço deixado na gelatina sensível por um acontecimento, por uma presença. A nossa presença aqui sendo capturada por um material sensível, as emanações luminosas desse espaço, dessas fontes luminosas, de nós mesmos. Isso para ele estava na base da conexão dele com o cinema. Ele dizia que não ia filmar quando acabasse a película, mas ele filmou, e fez um belíssimo filme.

La Sapienza, Eugène Green, 2014

Um filme que gira muito em torno da arquitetura barroca e um dos personagens principais é um arquiteto, que estudou muito Borromini e Bernini. Os personagens estão fazendo uma viagem por Roma visitando as igrejas barrocas do Bernini, do Borromini, e em determinado momento há um efeito digital. Onde você pensou que ia ver isso num filme do Eugène Green?

As pessoas se adaptam e se reinventam. Estávamos falando da crise, e quando eu vi esse filme do Eugène Green eu saí de alma lavada. Talvez um pouco por isso. Eugène Green, que bradava aos quatro ventos que jamais faria um filme que não fosse com película, fez um filme com digital, usou ferramentas e recursos específicos, e só possíveis graças ao digital, e fez um dos filmes mais belos que eu vi nos últimos anos. Esse tipo de coisa mostra para a gente que o discurso não precisa ser apocalíptico.

A imagem protéica

AlexandreMudando um pouco, queria perguntar a respeito da tua relação com o cinema. Eu vi recentemente uns trechos de uma entrevista com o Serge Daney que começa com o cara perguntando para ele qual foi a primeira relação dele com imagens, qual foi a primeira imagem que marcou a vivência dele e depois foi fluindo até chegar no ponto que o Daney chegou na crítica de cinema. Eu queria perguntar o mesmo para você. Você tem alguma...

Jr. - ... alguma proto-imagem? Se tem ela está recalcada no fundo do meu inconsciente (risos) e ela está tensionando todos os meus trabalhos o tempo todo sem que eu tome consciência disso. Puxa, olha, não sei, viu... eu não consigo identificar uma cena inaugural assim...

AlexandreAlguns que foram importantes, então.

Jr. – Eu era uma criança aficionada por filmes, mas não sabia aonde isso ia levar. Não sei identificar o ponto de virada, onde exatamente eu passei de um aficionado para alguém que pensa “opa, isso aí significa algo a mais para mim”. Não teve um filme que me disse: “cara, vai lá que é isso aí”. Alguns filmes mexeram muito comigo e posso falar. Não é uma cena inaugural, mas em 1999 o Festival do Rio estava fazendo uma retrospectiva do Tarkovsky, e na época eu era um estudante de medicina em crise, muito disposto a encarar a aventura de largar o quarto ano de medicina para ir para o cinema. Um dia que me ajudou a ter convicção de que eu deveria fazer isso foi o dia, durante a retrospectiva, em que eu vi O Sacrifício ali em Botafogo. E eu lembro que depois eu andei a Voluntários da Pátria inteira refletindo sobre o filme e falando “caramba, é... talvez eu tenha que me dedicar a isso aí”. Tudo o que eu queria naquele momento era parar tudo e ficar escrevendo sobre esse filme, pensando sobre esse filme, e isso não era possível caso eu continuasse na faculdade de medicina.

O Último Grande Herói, John MacTiernan, 1993

Tem momentos assim, sabe. Quando eu vi O Último Grande Herói em 1993 no cinema... John McTiernan, Schwarzenegger. Foi a primeira vez em que eu fiquei no cinema para ver a sessão seguinte. Na época podia fazer isso. Fiquei e vi de novo o filme. São momentos que na hora não significam nada, não é épico, mas depois você fala: é... estava se consolidando ali uma relação com o cinema que ultrapassava a normalidade, estava ficando um troço que não era mais normal. Precisava estudar cinema.

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