Entre tantos prazeres, proporcionados
pelo Festival Olhar de Cinema em 2015, a conversa com Luiz Carlos Oliveira Júnior
foi o mais esclarecedor. Rivalizando até mesmo com o reencontro com Jacques
Tati, Roberto Rossellini e Nicholas Ray e com a evidência de que seus velhos
filmes ainda nos oferecem as mais iluminadas respostas aos dilemas enfrentados
hoje.
Isto graças, em primeiro lugar, à
generosidade pedagógica com que o nosso interlocutor apresentou suas idéias a
respeito de questões urgentes: do cinema na universidade ao fim da película,
passando por Alfred Hitchcock, mise en scène, crítica e outras questões estrategicamente
aposentadas pelos agentes de vendas das agendas contemporâneas.
Em segundo lugar, pela consciência
resultante destas questões de que apesar da aparente festividade, o cinema
enfrenta sim uma crise grave. No âmbito local, nacional e internacional. E que
reconhecê-la é obviamente o primeiro passo para o seu mais justo enfrentamento.
Naquela tarde de 14 de junho, Cauby
Monteiro, Leticia Weber e eu - graças à intervenção clandestina do mais nobre
entre os nobres, Alexandre Magno - ganhamos, mais do que o muito desejado encontro com um de nossos mestres
de cinema: uma pequena aula que
naquele momento valeu mais do que os quatro anos de faculdade e que agora
levamos a público nesta transcrição de fôlego - executada pelo nobilíssimo
Erick Moro – e que, apesar do tom apocalíptico, é habitada por algumas luzes.
É de vida que fala este texto de morte.
Miguel Haoni
Cinema na universidade
Miguel – Doutor Luiz Carlos Oliveira Jr... Já é ou
falta pouco?
Jr. – Eu já sou, mas não
precisa me chamar de doutor.
Miguel – E o que isso significa?
Jr. – Significa que eu
terminei o doutorado e estou desempregado. (Risos)
Miguel – Ah, o mercado é amplo, pode vender
cachorro-quente, pode vender...
Jr. – É. Exato, estou aí
engrossando a lista.
Miguel – Como é que foi a experiência acadêmica?
Jr. – Para mim foi
ótima. Porque foi a possibilidade de eu juntar tudo o que estava disperso no
meu pensamento, que eu construí na crítica, sobretudo nos textos que eu escrevi
na Contracampo, e para coberturas de festivais. Eu acho que surgiram muitas
coisas ali: setas de caminhos possíveis para eu me aprofundar, de temas que eu
poderia desenvolver, enfim, pesquisas em potência, em latência. E quando eu
parei para fazer o mestrado, e isso é muito claro na minha dissertação, (que
depois deu origem ao livro) foi de fato uma condensação de muita coisa que já
estava dispersa ou nem tão dispersa assim, mas cujas bases já tinham sido dadas
por uma série de artigos e críticas sobre filmes contemporâneos que eu tinha
escrito entre 2002 e 2006.
Miguel – Te ajudou a organizar e sistematizar a tua
produção?
Jr. – Claro. Mas existe uma
forma equivocada de se encarar a coisa. A do cara que vai para a academia
institucionalizar o pensamento dele, se encastelar dentro de uma instituição,
vestir uma certa arrogância acadêmica e se vedar ao debate que era feito por
exemplo, pela crítica, que vem de um tête-à-tête com os filmes, de uma
integração de grupos jovens e pessoas vivendo cinema, discutindo cinema todo
dia. O cara na academia vai se ultra-especializar, que é um dos grandes riscos
– falo de risco, mesmo – porque eu não enxergo como um...
(Breve
interrupção para marcar uma cerveja com Luis Campos que nunca será bebida)
... É
legal você ter uma especialidade e conhecer um assunto a fundo. Todos nós temos isso e é algo importante. Todo
pesquisador tem um assunto que sabe melhor que os outros. Mas existem formas e
formas de você ser um especialista. Existem excelentes pesquisadores no Brasil
que basicamente trabalham com um só tema, mas que têm uma contribuição para
aquele tema que é sempre renovada e empresta sentido ao fato da pessoa estar
trilhando aquele caminho de forma retilínea. Outros não, outros eu já vejo que
é uma coisa mais reiterativa, e não faz tanto sentido.
Mas
no meu caso, isto permitiu que eu tivesse o tempo e a dedicação de uma pesquisa
de mais fôlego, que é uma coisa que quando você está ali só na correria da
crítica você não vai fazer. Você não vai parar dois ou três anos para pesquisar
as origens da mise en scène no teatro
e no cinema e como isso se desdobra em meio à história dos estilos no cinema.
Para mim foi muito isso, foi me dar a oportunidade, inventar na minha vida a
ocasião de fazer pesquisa de mais fôlego, que é o que eu sempre quis fazer.
Miguel – Mas de maneira geral como é que tu percebes
a manipulação do cinema dentro da universidade? Tu consideras interessante a
forma como a universidade lida com cinema?
Jr. – Não dá para
generalizar a academia. Você tem que ver de pesquisador a pesquisador. É um caso individual mesmo. Tem gente que tem
uma relação com cinema que é totalmente imediata, vitalizante, em que a pessoa
realmente está tentando um contato com as imagens, está levando em conta no
trabalho dela a experiência estética – essa dimensão que é incontornável,
afinal de contas, estamos falando de uma obra de arte, de um filme. Um filme
envolve uma experiência estética, envolve uma fruição e ignorar isso para falar
só de conceitos me parece uma coisa bem problemática. Mas nem todo mundo faz
isso na academia, embora muita gente faça. É comum você ver, indo nesses congressos
e colóquios, que tem gente que arruma os mais sofisticados subterfúgios, os
mais rebuscados argumentos para conseguir a proeza de falar de cinema sem ir
aos filmes.
Miguel – Eu tenho a sensação de que dentro da
universidade algumas pessoas têm nojo do cinema, e então colocam luvas em cima
de luvas para poder chegar perto...
Jr. – É. Você pode
pensar numa charge com um sujeito olhando para uma tela que está a dois
quilômetros dele e na qual um filme está sendo projetado, e entre ele e a tela há
vários muros de pedra. E em cada muro você bota o nome de um filósofo. (Risos)
E aí
você vai ter mais ou menos a forma de abordagem de muita gente. Não só na
academia, porque isso já se expandiu até para a crítica. Você vê às vezes um
discurso ultramediado, uma necessidade de muita mediação, de muito instrumental
teórico para lidar com uma coisa que é pulsante, que quando acontece e você
entra em contato com ela é uma coisa que não está necessariamente te
solicitando toda essa mediação. Na verdade, é o contrário. Pode vir depois, mas
num primeiro momento o filme está te pedindo que você tenha com ele o contato
mais próximo possível, uma experiência sensível, e depois a partir disso...
Por
exemplo, um caminho que é muito comum num texto acadêmico e às vezes na crítica
também: começar falando de teoria para depois falar de um filme ou de um autor. Então você tem lá um texto que começa citando
vários pensadores, articulando conceitos, fazendo um verdadeiro pot-pourri de “filosofemas”. E depois de
todo esse pot-pourri, “o filme tal,
de fulano de tal, do ano tal...”. Aí, depois de apresentar toda aquela grelha
conceitual, você
vai inserir o filme a fórceps dentro dessa estrutura pré-moldada, só para
ilustrar os conceitos.
Isso
para mim não faz muito sentido. Não faz mesmo. É o caminho inverso ao que eu
faço. Eu parto dos filmes, pois partilho da crença de que existe uma teoria nos filmes, existe um pensamento no cinema. Os filmes – para usar um verbo
caro aos semiólogos, mas que no cinema causa ruído, mas vá lá –, eles enunciam uma
teoria. Enunciam um discurso sobre o mundo, sobre a arte e sobre o cinema,
neles mesmos. Eles não estão usando o cinema como formulação de um discurso,
não. Os filmes constroem isso. Tem uma organicidade ali e eu acredito nessa
ideia da imagem dotada de um pensamento próprio, de uma atividade inerente da
forma. A forma artística, de certa maneira, pensa. E eu tento enxergar qual é
esse pensamento. O que a imagem pensa e ao pensar me estimula a pensar junto
com ela (ou contra ela, que seja)? Esse é o caminho que eu acho mais
interessante. Não vou dizer que é o único caminho, ou que é o melhor... é o
mais interessante. Só consigo fazer desse jeito.
Porque
eu acho que, no fundo, falar de imagem, falar de filme é um negócio complexo. É
uma estrutura múltipla, um implexo de elementos heterogêneos. Basta dizer, para
formular essa dificuldade de maneira bem simplista, que existe uma pista de
imagem e uma pista de som. As relações que isso estabelece são por vezes das
mais complexas. Você tem também uma força de figuração muito forte, você tem
uma imagem com um grau de fidelidade mimética com a realidade sensível que está
na base de todo o nosso engajamento afetivo com o cinema. Há essa capacidade do
cinema de ser uma espécie de placa sensível, de esponja que absorve as forças
que atravessam uma determinada sociedade num determinado momento. E o filme cristaliza
isso, absorve, se impregna desse ar do tempo, dessa atmosfera da época.
Sem
falar na questão de mise en scène,
das múltiplas formas que você tem para focalizar determinada cena, determinado
sujeito, inseri-lo no espaço, articular as relações dele com esse espaço, com
outros sujeitos e outros elementos que ocupam esse espaço... Em resumo: é um
material complexo.
E as
pessoas – por mais que a gente viva a extremidade da tal civilização da imagem
e blábláblá – estão com
um bloqueio para falar de imagem. Qualquer imagem. A imagem virou uma coisa tão
natural na nossa vida, parte tão importante da nossa mobília existencial
cotidiana que a gente já não sabe mais o que dizer sobre aquilo. Que nem se alguém
começar a pedir para você falar um pouco do seu casaco. E a imagem está
chegando num ponto em que a pessoa a usa o tempo todo, vive, absorve e se nutre
no meio de imagens, mas não consegue dizer o que essa imagem representa, qual o
lugar dessa imagem dentro de uma história da representação no nosso imaginário
artístico ocidental – para não extrapolar para campos que a gente não domina
tão bem. E isso com tudo; com fotografia, pintura.
E
quando chega no cinema, que tem esse outro grau de complexidade, por envolver
esse dinamismo (são várias imagens, uma sucessão), me parece que essa
dificuldade vem sendo, em muitos casos, compensada por aquela hipertrofia de um
quadro teórico. Às vezes dos mais nobres, dos mais sofisticados, desde um
repertório da filosofia contemporânea, dos estudos culturais até a filosofia
alemã do século XIX. Tem de tudo.
Mas
veja bem, não estou generalizando. Tem gente que traz esse repertório para a
prática de análise fílmica e faz isso muito bem. Mas em muitos casos o que existe
é, na verdade, uma hipertrofia dessa prótese teórica como via de compensação
para uma dificuldade, quiçá uma verdadeira inabilidade de lidar com as imagens.
De tentar dizer, ver, enxergar, ter olho.
Alfred Hitchcock
Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958
Miguel – Te ouvindo e ouvindo o Francis Vogner dos
Reis nesses últimos dois dias, me parece que é um universo que intimida
bastante e as pessoas estão cada vez mais melindradas de ter um enfrentamento
ou uma relação mais livre e mais selvagem com esse universo. E a saída encontrada
– saída que também atende a
uma demanda mercadológica, visto que o mercado independente já está tão nocivo
quanto o grande mercado – é a de virar as páginas da história do cinema muito
prematuramente. E em 2015, você vem nos falar de Hitchcock. Precisa?
Jr. – Sempre precisa.
Miguel – Por quê?
Jr. – Imagine o Erwin
Panofsky, historiador da arte, em 1932, quando resolveu escrever A Perspectiva como Forma Simbólica,
imagina se alguém fala para ele “pô, mas você vai falar sobre a invenção da
perspectiva na pintura ocidental? Sério? Uma coisa lá do século XV?” E aí ele
não ia ter feito um dos grandes estudos de arte visual do século XX. Mesma
coisa o Hubert Damisch, que foi fazer um livro sobre a arqueologia de um
dispositivo de perspectiva inventado pelo Brunelleschi em mil quatrocentos e
pouco. Ele foi fazer este livro na década de 1980.
É
preciso entender que existe uma coisa que está para além.
Por
ser o cinema esta arte que lida de maneira tão imediata com o seu tempo, que
nasce como epítome da modernidade e carrega ao longo de toda a sua história o
peso de ser a arte moderna por excelência, de ser a arte dos tempos modernos,
isso automaticamente cria em muita gente o pensamento: “falar de cinema é falar
do presente, é falar do cinema que está sendo feito agora, do que está
dialogando com o mundo de hoje, como ele está nos ajudando a perceber o mundo
de hoje”. Eu acho que sim, o cinema é isso sim, ele é um acesso privilegiado ao
mundo. Agora, ele não é só isso.
Existe o cinema dentro de algo, que extrapola o próprio cinema, que é o que se
chama de história das formas artísticas. Então claro, é tão pertinente falar de
Hitchcock hoje como é falar de Poussin. Por que é que uma pessoa não pode mais
falar de Nicolas Poussin? Na filosofia não se fala de Platão ainda? Então no
cinema a gente tem que falar de Bazin a vida inteira.
Você
está falando ali dos fundadores de um pensamento sobre cinema. No caso você
está falando de um dos maiores inventores de formas da história do cinema, por
mais que já tenha gerado o maior número de exegeses da história da teoria e da
crítica cinematográfica no caso do Hitchcock. Nunca se escreveu tanto sobre um
diretor e no caso do filme que é o ponto de partida da minha tese, Vertigo, trata-se do filme mais falado
da história. Mas quem disse que ele foi esgotado? E quem disse que não existe
uma forma de, a partir dele – que é o que eu tento fazer na minha tese –, descobrir
uma nova brecha, uma porta de acesso à história do cinema, que estava ali
entreaberta e que só era possível chegar mediante uma revisita a Vertigo. Na verdade, Vertigo foi o filme que me permitiu
descobrir dentro da história do cinema – atravessada pela literatura, pela
pintura (eu falo muito de pintura na minha tese) – uma espécie de fio guia para
trilhar e acompanhar uma série, à qual chamei a série-Vertigo (poderia ser também a galáxia-Vertigo). Imagine ali um tapete com um desenho, uma figura. E você
vai tentar enxergar esse tapete usando um fio guia. No meu caso, foi o Vertigo. E aí surgem várias outras
coisas a reboque disso.
Mise
en scène
Miguel – Eu acredito que seja um medo mesmo do
enfrentamento mais direto com essa história por que...
Jr. – Intimida, você
falou bem, intimida.
Miguel – Por exemplo: o mercado está tentando nos vender
essa semana um cara chamado Nathan Silver. E compra-se isso com uma facilidade, como
se ele oferecesse uma saída. E pô, eu fui numa sessão de Trafic, que para mim é um filme que fala de 2015 e
não de 1971, e me pareceu que ele não teve o efeito que deveria...
O nome do teu livro é A mise
en scène no cinema. Trata-se ainda de uma
arte ignorada, como foi em 58 quando o Michel Mourlet escreveu o texto que você
traduziu?
Jr. – É uma arte menos
ignorada, no sentido de que houve um renovado interesse por ela. Nos últimos 15
anos uma série de livros lançou luz sobre o conceito de mise en scène, sobre o que é a mise
en scène, afinal de contas. Porque durante muito tempo se falou em mise en scène sem que nunca se chegasse
a uma definição com contornos precisos e nítidos. A figura ficava meio nublada
ali, meio borrada. E aí houve uma espécie de sintonia de pesquisadores em
diferentes partes do planeta pensando “Qual o lugar da mise en scène hoje?”. Essa é a principal pergunta. E resolveram
responder essa questão e isso obrigou que eles fizessem um recuo histórico para
pegar as origens do significado da mise
en scène no cinema, ou ainda antes, no teatro também. Outros já começam na
questão de como isso surge no vocabulário fílmico dos anos 50, ou melhor, como
isso surge desde os primeiros anos do cinema, mas é transformado em conceito,
magnificado e sistematizado no contexto da crítica francesa dos anos 50.
E
com isso, por um lado a gente ignora menos a mise en scène. Mas se a gente for pegar na raiz do que o Mourlet
está falando, ainda é uma arte ignorada, porque a maioria das pessoas ainda não
sabe, depois de ver um filme, dizer o que é a mise en scène nesse
filme. É que, na verdade, a questão do Mourlet é que as pessoas não
sabiam separar o joio do trigo, não tinham entendido que a essência do cinema é
a mise-en-scène e que somente alguns
cineastas alcançam essa quintessência da estética cinematográfica. Cineastas que
se contam nos dedos de uma mão, na visão do Mourlet. Então as pessoas ficavam laureando
a torto e a direito, descobrindo o novo gênio a cada semana e com isso ignoravam
a verdadeira arte do cinema que é a mise
en scène e que só está em um ou outro cineasta que você não vai ver toda
semana. É nesse sentido que ele fala da arte ignorada.
O Sepulcro Indiano, Fritz Lang, 1959
Então
a gente pode falar de duas dimensões: você ignorar o que é a mise en scène no sentido do que esse
conceito significa dentro da história das ideias sobre o cinema e você pode
falar de uma falta de percepção do que o cinema pode ser, de todos os
potenciais contidos no cinema, e que você poderia agrupar esses potenciais sob
essa expressão, “mise en scène”. Os
filmes que realizam a contento essas possibilidades implicadas na linguagem
cinematográfica e no cinema como meio de expressão são os filmes que têm mise en scène.
Mas também
é aquela coisa: você saber lidar com isso tudo sem entrar na via normatizadora.
De criar uma fórmula normativa na qual os filmes têm que ter isso aqui para eu
gostar ou dizer que é um filme que importa para a história do cinema, e os que
não tiverem eu excluo. Enfim, é complexo. Cada filme tem uma demanda. Mas é uma
verdade que é muito raro hoje em dia você ver um filme em que o realizador tem
uma vaga noção do que seja a mise en
scène. A maioria não tem nem uma vaga noção das possibilidades permitidas
pela câmera para enfocar determinada situação.
Porque,
se é difícil para a gente ver imagens, é difícil também, cada vez mais, fazer
imagens. E essa intimidação gera certo retraimento formal, que é uma das
tendências dominantes no cinema contemporâneo. Sobretudo no dito cinema de
arte, que passa nos festivais. É muito mais fácil você ver um filme em que o
cara resolve uma cena inteira num só enquadramento, e não necessariamente num
grande achado de composição que resolve realmente toda aquela cena num único
ângulo, num único ponto de vista, numa única composição que você possa dizer:
“é, essa cena tinha que ser filmada desse jeito” ou “entendo por que esse cara
filmou assim”. Não. Às vezes é um plano qualquer nota. E esse plano foi adotado
porque esse cineasta não aceitou o desafio da mise en scène. Ele se retraiu diante dessa complexidade (complexidade
no bom sentido para mim).
Eu
acho que se eu fosse fazer um filme ficaria muito frustrado de não queimar a
nuca em cada plano, sabe? Eu ia ficar muito frustrado em me contentar com
pouco, achar um quadro bonito e esse quadro me satisfazer. E esse cinema, como
você disse, é aceito com muita facilidade, de fato, pelo senso comum criado
pelos festivais, pelas curadorias e pela crítica também. A crítica (não toda
crítica, obviamente) criou um senso comum em torno do que é um bom filme hoje, um senso
comum que nivelou por baixo, que aceita qualquer filme com um pouco mais de sensibilidade,
que saiba trabalhar os tempos mortos de uma determinada forma, que lida com
certos temas e que saiba minimamente trazer uma sensação do espaço, uma criação
de ambiência. Se tiver aí uma meia dúzia de elementos que são os movimentos
obrigatórios, a coisa já é enaltecida.
A
função da crítica, como dizia o Clement Greenberg, um grande crítico de arte
americano, é criar uma pressão atmosférica no campo artístico. Dentro dessa
pressão atmosférica nasce a melhor arte. Quando você afrouxa tudo, não tem mais
pressão e aí a melhor arte passa a ser qualquer arte.
Hitchcock e a teoria feminista
Miguel – Eu acho que se exige muito pouco de si nesse
gesto de ver, pensar e fazer imagens. Acho que estamos covardes diante do cinema.
Cada vez mais. E me parece que uma das saídas, que é aquela que você localizou,
é voltar alguns passos nos fundamentos. Ainda não voltamos o suficiente em
Hitchcock. Ainda não voltamos o suficiente na mise en scène ou em Mourlet,. Essas coisas estão falando
de hoje, não estão falando de ontem.
Quando, por exemplo, uma colega nossa vem
me dizer, levada pela nova politização dos corpos e o feminismo, na
forma como este hoje se apresenta, que Hitchcock reforça o patriarcado, eu penso imediatamente que ele fez com Os Pássaros um dos maiores monumentos à potência sexual
feminina, então em destaque nos anos 60 e que ainda serve para hoje.
Jr. – Concordo
absolutamente.
Miguel – E eu acho que diversos aspectos daquilo que
nós enfrentamos hoje como sociedade e como indivíduos foram abordados não só
pelo Hitchcock, mas por aquilo que ele pode representar aqui nessa conversa, e
que infelizmente está sendo substituído por literalmente qualquer merda desde que
seja de 2015, que seja do cinema universitário...
Jr. – Que fale do mundo
de hoje, como se Hitchcock não falasse do mundo de hoje.
O
Hitchcock foi o xodó dos estudos feministas quando essa tradição de teoria
feminista voltada para o cinema se consolidou nos anos 70. Tem o texto seminal
da Laura Mulvey, um dos textos fundadores da teoria feminista, cujos objetos de
análise, cujos exemplos emblemáticos são os filmes do Hitchcock: o Visual Pleasure
and Narrative Cinema (1975). É um texto que eu já li várias vezes, já
estudei, voltei a ele na minha tese e que tem uma importância capital. Dá para
entender que é um texto que tem uma função de militância. Então, observado fora
do contexto,
a gente acha até um pouco bloqueada a visão da Laura Mulvey em relação ao
cinema do Hitchcock. Ela escreveu
um artigo revisando esse texto, onde ela revê muitas das suas posições, estou
curiosíssimo para ler esse artigo.
Mas
o fato é que seu artigo de 1975 gerou uma onda de estudos sobre a obra do
Hitchcock vinda das feministas, bem diferente do que elas fizeram com o Brian De
Palma, que foi usá-lo de maneira obtusa para atender a uma certa pauta do
momento. Usá-lo como exemplo de algo que elas estavam tentando combater, e que
os filmes dele efetivamente não representavam. No fim das contas elas não
estavam nem vendo os filmes... No caso do Hitchcock, ao contrário do que aconteceu
com o Brian De Palma, esses estudos renderam muita coisa boa. Acho que é
impossível estudar Hitchcock hoje em dia ignorando a contribuição da teoria
feminista.
Há um
livro em particular, o da Tania Modleski: ela viu isso que você estava falando.
O nome do livro é Women Who Knew Too Much:
“As mulheres que sabiam demais”. E ela vai tentar mostrar justamente isso, como
as mulheres nos filmes do Hitchcock são muito mais espertas e são muito
mais donas da situação do que a gente pode imaginar numa primeira leitura. E
vai fazer análises brilhantes dos filmes do Hitchcock a partir dessa
perspectiva. Eu acho que você iria se interessar por esse livro.
Miguel – O próprio Vertigo, na cena da floricultura: a mulher não é o objeto do olhar, ela é
sujeito de uma encenação...
Jr. – Ela é as duas
coisas.
Vertigo é
um filme que causa essa schizo do
olhar, onde o sujeito ao mesmo tempo é objeto e ator do teatro de olhares –
onde ele está se inserindo e ajudando a construir. No caso da Judy disfarçada
de Madeleine enredando o Scottie dentro daquela armadilha óptica. A cena da
floricultura é muito exemplar: ela faz um pequeno desfile ali pra ele, ela se
aproxima da porta, volta, parece uma modelo num desfile de moda, e ao mesmo tempo
em que ela se dá ao olhar e está sendo espiada pelo Scottie naquele casulo de voyeur, ela está de certa maneira
olhando para ele com toda a superfície de seu corpo. Não existe uma troca de
olhares, ela não olha efetivamente para ele, mas é como se todo o ser dela
naquele momento fosse um grande olhar voltado para ele.
Por
isso que eu falo da schizo do olhar,
que é a coisa do Lacan, do Seminário 11, em que ele conta aquela história do
pescador que vê a latinha de sardinha boiando no mar. Um raio solar incide
naquela latinha e reflete no olho dele e aquilo chama a atenção de quem está no
barco e... eu não lembro direito da história, mas enfim: não são só as pessoas
que olharam para aquele objeto, aquele objeto se fez olhar. Então na verdade é
a latinha de sardinha que está olhando para eles.
Miguel – Essa relação entre sujeito e objeto é muito
complexa.
Jr. – É. Passa pela
dicotomia entre sujeito e objeto, é coisa longa.
Crítica e o fim da película
Miguel – Tem uma coisa que eu acho importante que a
gente fale um pouquinho: o panorama da crítica cinematográfica hoje no Brasil,
que eu acho que tu estás intervindo menos do que nos anos anteriores.
Quando eu leio a revista Cinética, me
parece que o cinema contemporâneo brasileiro é maravilhoso. E nem sempre quando
eu encontro esses filmes, como por exemplo, sei lá o Branco
Sai, Preto Fica...
Jr. – Não vi. Mas é um
filme que está sendo muito falado.
Miguel – Eu vejo que não tem diferença do discurso do
curador ou do júri que dá um prêmio para esse filme e o discurso do crítico que
viu esse filme.
Isso quando eu consigo interagir, porque
também tem uma outra escola, que parece que está pegando alunos de mestrado (no
pior dos sentidos), que é a escola do Luiz Soares Jr., muito interessado em
palavras raras, que não me permite acessar nem o que ele quer me dizer nem o
filme que ele viu e eu vi também. Eu não sei, parece que a crítica está muito
perdida...
Jr. – Eu acho que, no
caso específico da relação da Cinética com o cinema brasileiro contemporâneo,
houve um momento que eu inclusive fiz essa crítica. Num Cinema Falado, que a
gente fazia aquele...
Miguel – Qual era?
Cauby – Cinema Falado, da Contracampo, teve um sobre
cinema brasileiro.
Jr. – Isso. Foi no ano
de dois mil e... num dos meus últimos anos na Contracampo. 2010, deve ter sido
isso... e eu fiz essa crítica à Cinética. Mas eu acho que essa relação mudou
nos últimos anos. Eu acho que eles, inclusive, em alguns casos, adquiriram uma
posição combativa em relação a alguns filmes contemporâneos ali que
aparentemente representavam o suprassumo do tal do novíssimo. O Fábio Andrade
fez textos bastante contundentes em determinado momento... E agora eu acho que a
revista mudou em termos de linha editorial e as pautas têm sido direcionadas
para um certo resgate de um cinema de autor, digamos assim, mais raro: Werner
Schroeter, James Benning.
Eu
vejo uma tentativa grande de incorporar elementos das artes visuais em geral,
do vídeo, da instalação, porque no fundo, o momento para as revistas de cinema,
o momento para quem está fazendo cinema e tentando entender o cinema, eu acho
que não é fácil. Porque a gente está numa transição e não sabemos qual vai ser
o lugar do cinema daqui a dez anos. A gente não tem mais a menor convicção de
onde vai estar o cinema.
Eu
tenho a impressão de que a gente subestimou o impacto que o fim da película ia
causar. Parece papo conservador, mas não é... Eu acho que houve alguma coisa ali... É
algo que eu venho pensando recentemente, não é nenhuma grande teoria articulada
e embasada, é uma teoria de mesa de bar, mas me parece que isso coincidiu com o
momento em que eu parei de ver uma safra de grandes filmes surgindo no cenário
internacional. Até os idos de 2005, 2006 era muito entusiasmante você
acompanhar o cinema contemporâneo, os filmes que chegavam via festivais, que
entravam em cartaz. Hollywood ainda dava espaço para alguns cineastas mais
ousados que mesmo trabalhando dentro de um sistema de representação, de um
universo do cinema de gênero, de cinema popular, eram cineastas muito ousados:
o Shyamalan, o Michael Mann...
A
Dama na Água, M. Night Shyamalan, 2006
Cauby – 2006 é o último filme do De Palma em Hollywood...
Jr. – De Palma... O De
Palma já tinha sido marginalizado após Missão:
Marte. Mas ele ainda fez aquele filme noir,
(Dália Negra) belíssimo filme que foi
um fracasso. Ali eu acho que foi o último estertor dele em Hollywood. Mas ainda
havia um espaço, Shyamalan estava fazendo filmes ainda, chutando o balde.
Michael Mann fez em 2006 o Miami Vice.
E no cenário internacional eu estava acompanhando os filmes da Claire Denis,
ela estava fazendo um filme melhor que o outro. Surgiram Apichatpong e outros
cineastas. Hou Hsiao-hsien estava bem na ativa ainda – agora ele fez um filme
novo, que passou em Cannes, mas ficou um bom tempo sem filmar. Kiarostami...
enfim, uma série de cineastas que estavam ali vivendo uma parte muito
interessante de sua carreira, ou o seu auge, e uma série de cineastas
interessantes estavam surgindo.
O
Intruso, Claire Denis, 2004
E eu
não estou dizendo que eles só estavam fazendo filmes bons porque era uma época
em que ainda existia a película, mas há uma coincidência com o fim de uma safra
interessante do cinema... O fim da película representa algo maior. Realmente de
uma mudança de era, de status. Uma mudança do lugar do cinema no mundo. Ele não
é o responsável por isso. Era uma coisa que vinha acontecendo há um tempão; o
fim da película é só o episódio que serve como a tomada de consciência. Claro
que é uma coisa natural, que ia acontecer em algum momento, que já vinha
acontecendo aos poucos desde os anos 90. A gente sabia... Mas acho que quando a
coisa aconteceu, teve um baque, que foi subestimado. Reagimos com falsa
naturalidade: “que nada, isso daí não representa nada. O cinema vai continuar. É
a mesma coisa que você dizer que se tirasse a tinta a óleo do mercado acabava a
pintura, quando na verdade há outras formas, outros materiais, outros suportes,
outros meios de expressão”... Sim, concordo absolutamente, o fim da tinta a
óleo não seria o fim da pintura. Mas seria o fim de uma certa pintura...
Isso
criou um problema para a arquivística também, para a questão do armazenamento
dos filmes. É um debate ultra-polêmico e muito forte hoje no campo da
preservação do patrimônio cinematográfico: como preservar os filmes. O suporte
digital é complicadíssimo do ponto de vista da preservação. Será que a gente
não deve lutar para que continuem fabricando película porque é uma forma mais
segura de guardar os filmes, por incrível que pareça?
É
uma teoria de mesa de bar, mas eu acho que a notícia oficial do fim da película
- “não se vai mais fazer filme com
película” - foi a cereja do bolo de algo que já vinha acontecendo. E isso
coincidiu com o momento em que estava todo mundo percebendo que, caramba,
mudou... o cenário mudou. E para onde ir? Eu acho que tem muita gente perdida.
Qual
o lugar do cinema na sociedade? Dentro de uma economia das imagens, tanto num
sentido material, industrial, quanto também no sentido de uma economia
estética, libidinal. Numa economia de como capturar os desejos, como lidar,
cativar e agenciar todo um investimento, todo um envolvimento libidinal que
está necessariamente implicado no contato de um sujeito com uma imagem. É um
momento de crise, em que está todo mundo perdido mesmo.
Cinema clássico
Miguel – Cara, eu tenho um pouco de resistência ao
cinema do presente e me interesso mais pelo cinema do futuro. E o cinema do
futuro é Raoul Walsh. Porque o Raoul Walsh pode iluminar alguma coisa, oferecer
uma saída para esse estado de coisas. Eu faço universidade de cinema e me
parece uma castração química de quatro anos. Um estado de desenergização
absoluto. Alguém está apontando hoje dentro da crítica cinematográfica, e
dentro da produção de filmes, uma saída possível, interessante? Existe futuro
para esse exercício?
Jr. – Acho que o James
Gray faz filmes que estão em continuidade com uma certa história do cinema que
inclui Walsh, por exemplo. Nessa percepção coletiva de que se atravessa um
momento de ruptura você perde um pouco da conexão com o passado. É essa coisa,
“o cinema agora é outra coisa, ele não é mais o que era antes. Materialmente,
economicamente e socialmente falando, ele não é mais o que era antes”, e isso
pode gerar uma perda de conexão com o passado. “Então obrigatoriamente a gente
precisa procurar algo totalmente diferente dos filmes do tempo do Raoul Walsh”
porque esse é o cinema do tempo da película, do tempo da indústria, do tempo da
ficção, da fabulação como forma de mobilização do imaginário coletivo, enfim,
um tempo onde você tem uma mitologia do cinema sendo criada e vivida. Mas ainda
é possível se manter conectado ao passado. Não sei se é o melhor caminho, só sei que um dos grandes cineastas surgidos nos
últimos vinte anos é o James Gray, que justamente está fazendo, com o estofo
sensível do mundo de hoje, com a modulação dramática de hoje, o que o Minnelli
poderia ter feito nos anos 50. Aquele filme que consegue te absorver
completamente. Não no sentido de alienação, mas realmente de um engajamento
afetivo com o filme. E depois daquelas duas horas, você tem a nítida sensação de
que algo aconteceu. Você viveu uma experiência, de fato. Você viveu alguma
coisa durante duas horas ali.
Era
Uma Vez em Nova York, James Gray, 2013
Miguel – O Gray diz que gosta muito das coisas
antigas. Eu acho que é uma saída possível. Parece que andamos muito para frente
e deixamos alguma coisa que ainda precisava ser melhor observada.
Jr. – O James Gray faz
um autêntico cinema de mise en scène.
Agora, aí é que está, é diferente você ver sistematicamente Raoul Walsh, John
Ford, Hawks, Losey, e tentar emular. Porque aí não vai soar natural. Essa
fluência do cinema do James Gray é porque justamente ele descobre ali o ritmo
próprio dele, dos atores, dos espaços, do drama que ele está encenando. E ele
vai chegar a uma forma de mise en scène,
que a gente pode até chamar de clássica, neoclássica que seja, mas não porque
ele aplica um certo estilo de decupagem que ele aprendeu com cineastas do
passado. Isso seria outra coisa. Isso seria pastiche, ou até uma releitura
maneirista da mise en scène clássica,
e o James Gray é pós-maneirismo. Ele não é um maneirista, definitivamente. Ele
está tentando justamente achar a fluência dramática. Ele tem o olhar clássico.
Porque
o olhar clássico é justamente esse que tenta entender a demanda interna dos
seus materiais, a mise en scène
clássica passa muito por isso. Qual o ritmo desse espaço, qual o ritmo desse
ator, como é que esse corpo se comporta dentro desse espaço?
Miguel – Com um olho no material e outro
permanentemente no invisível, na transcendência, no espírito...
Jr. – Certas definições
da mise en scène passam por uma ideia
de convergência de elementos materiais e não-materiais, de formas visíveis e invisíveis.
Há também um agenciamento do tempo, das durações... há um arranjo significante
do espaço e do tempo. Isso está ali na mise
en scène clássica, nos melhores casos.
As
pessoas confundem muito o classicismo com o academicismo. A aplicação banal da
regra, o aprendizado de uma técnica e a sua aplicação dentro de um sistema de
formas, isso é o academicismo: é quando você faz aquilo sem acrescentar a esse
conjunto de regras nada da sua sensibilidade particular, da sua verve, do seu
gênio. O classicismo envolve um conjunto de normas, porém ele é já a transgressão dessa norma. Um
equilíbrio sutil entre um sistema normativo, um conjunto de regras que formam o
arcabouço de um sistema formal, e um olhar que traz sempre alguma forma de
deslocar esse sistema. Pode pegar qualquer um desses grandes cineastas do
período clássico. Hawks, Lang, Hitchcock, Lubitsch. Todos esses conseguem ao
mesmo tempo se colocar dentro dessa norma e deslocá-la. E isso eu posso afirmar
aqui categoricamente, é batata. Existe um elã que transforma aquilo em algo
vivo, em algo vibrante. Isso é o classicismo. A banalidade campo/contra
campo/mastershot é academicismo. Não se pode confundir um com o outro.
Miguel – Pode crer. Eu acho que só existe a ruptura
onde tem a estrutura. Só pode haver a borboleta do Griffith se houver a cena.
Então, se eu for fazer só a borboleta do Griffith, eu vou fazer um documentário
sobre borboletas.
Jr. – E a borboleta não
vai ter o impacto que ela traz, ela passa ali e ela vira um elemento
decorativo, acessório. Quando a borboleta passa no Griffith e no Jean Renoir, ela traz uma iluminação. Ela ilumina o filme. Ela
é um aporte do mundo que redimensiona o drama. É preciso ter um mínimo de rigor
nas operações de mise en scène para
que algo banal se torne algo especial. É a alquimia da arte, que exige
pensamento, dedicação, experimentação...
Cinema e pintura
Cauby – Essa coisa que tu trouxeste e que foi muito
presente na crítica francesa dos anos 40 e 50 (Revue du Cinéma, Cahiers du
Cinéma, macmahonismo - o Rohmer, o Astruc, depois o Godard, inclusive nos
filmes que ele faz, Histoire(s) du Cinéma): a relação do cinema com as outras
artes. Como você percebeu que seria fundamental esse estudo dos elementos
pictóricos – enfim, estamos falando bastante de passado – indo muito ao passado?
Como você percebeu que seria importante estudar a pintura renascentista, a pintura
barroca para a compreensão de cinema?
Jr. – Eu não lembro
exatamente como isso se deu, foi algo natural. Mas para mim está muito claro
que o cinema não tem como produzir uma amnésia induzida que o faça esquecer as
artes que o precederam, que o faça esquecer todas as estratégias de composição
da pintura, por exemplo. No fundo existe uma questão de memória antropológica
das formas artísticas. Em diferentes épocas, com diferentes meios, a humanidade
vai tentar representar mais ou menos as mesmas coisas. Isso é algo que está
muito em voga hoje, por conta dessa abordagem antropológica da história da arte
que é o paradigma que vigora hoje nos estudos sobre as artes visuais. Houve um
determinado momento em que era a pintura a arte visual encarregada de
majoritariamente produzir uma representação da realidade.
Com
a passagem do século XIX para o século XX, eu acho que o cinema tomou a
dianteira e passou a ser a arte à qual a gente recorria quando queria ver a mimesis, quando queria ver a
representação da realidade. Porque nós temos essa necessidade desde que
habitávamos cavernas. A gente quer ver a representação do mundo em que a gente
vive, a gente quer exteriorizar, quer gravar num suporte uma representação do
mundo. Não só uma representação fantasiosa, não só uma criação de novos
universos a partir das inscrições, gráficas ou não, a partir dos nossos
mecanismos de representação – orais, verbais, visuais, icônicos, enfim. Mas a
gente tem tanta necessidade de inventar novos universos como também de recriar
o nosso mundo, cristalizá-lo numa forma que represente sua realidade. Aristóteles
fala da imitação como um dos elementos definidores do animal humano: o homem é
um animal que imita. Um animal que tem necessidade da mimese.
E
por que eu voltei a tudo isso? Justamente, então, se você está falando do
cinema, inevitavelmente irá enxergar um lado cíclico da história das artes.
Porque você vai ver o cinema tentando responder, tentando solucionar uma série
de problemas de representação que já se encontravam na pintura. Que já estavam
no teatro, ou mesmo nos ícones medievais. Porque existem questões relativas à
vontade de representar que se colocam a qualquer artista que esteja
trabalhando. E assim, o cinema não é um meio de expressão tão distanciado da
pintura. Não preciso nem me alongar nisso.
E
para mim, a certa altura da minha pesquisa sobre a mise en scène no cinema, os diferentes estilos de mise en scène, e também uma certa
identificação de qual estilo predominava em que época, houve um momento em que
muito naturalmente me deparei com uma problemática da representação do espaço e
da representação das relações dos corpos no espaço que trazia a mesma questão
que você vai ver na passagem do classicismo renascentista para a pintura
barroca, do renascimento tardio para o início do barroco.
Na
representação clássica predomina a composição planimétrica de um espaço onde
você identifica com precisão a figura e
o cenário, existe um destaque individual de cada figura. Elas não se embolam
dentro do plano como se fossem um emaranhado de corpos. Onde você tem a ideia
de uma marcação de cena, uma certa coreografia cênica muito claramente
trabalhada. Sem enrijecer a cena, sem engessar a mise en scène, e tudo se dá com absoluta fluidez. Mas se você
observar com cuidado você vê ali toda aquela coreografia sendo produzida. É essa
ideia do espaço, da tela de cinema como tributária ainda de um cubo cênico, que
é algo que também está na pintura do renascimento. Foi muito natural para mim,
enxergar nisso um paralelismo com a pintura.
E
depois, quando você vai ver, de forma mais evidente, no cinema dos anos 90 uma
tentativa de mergulho, de imersão sensorial nesse espaço atmosférico, aonde
você não distingue com tanta nitidez assim o lugar dos corpos nos espaços,
parece que todos eles formam um grande fluxo unitário, tudo isso se embola num
grande turbilhão de sensações, e o espectador é convidado a olhar para isso não
mais com o tal ponto de distância, do qual se falava na pintura renascentista –
existe a boa distância para observar um quadro. No barroco essa boa distância
se dissolve, a obra não está tentando te colocar numa relação de frontalidade,
ela está tentando te absorver, te envolver numa grande sensação de embriaguez
sensorial, de uma profusão dos sentidos.
Eu
enxerguei isso com muita nitidez. Aí você tem um abandono da composição
planimétrica, uma ideia de um quadro que é praticamente um meio aquático, onde
todas as figuras parecem estar um pouco que flutuando e constituindo uma grande
substância aquo-luminosa. Você vai ver isso nos filmes do Hou Hsiao-hsien, nos
filmes da Claire Denis dos anos 90. E essa tentativa de filmar as atmosferas,
os espaços que preenchem os intervalos entre os atores como algo que tem uma
materialidade, que tem uma presença física. Em suma, isso tudo está muito claro
pra mim, e faço com extrema convicção esse paralelo com a história da pintura.
Adeus
ao Sul, Hou Hsiao-hsien, 1996
Pedro Costa e o cinema digital
Letícia – Nessa conversa, pensei muito no Pedro Costa.
Acho muito difícil a gente encarcerar um determinado filme ou cineasta em um
conceito, mas ainda assim, por termos evocado muito nessa conversa o fim da
película, uma ida aos clássicos, Pedro Costa reverberou no meu pensamento. Eu
queria que você falasse um pouco sobre ele, não me lembro de ter lido críticas
suas sobre esse cineasta.
Jr. – É, acho que eu
nunca escrevi nada sobre o Pedro Costa. Eu definitivamente não o incluo no
cinema de fluxo, é outra coisa. É um cinema onde você vai ver Chaplin, John
Ford, Jacques Tourneur. Você vai ver Nicholas Ray, Rossellini, Straub, Ozu... É
um cinema típico de um cara que viu muito filme e que entende muito de cinema. Basta
ver ele falando sobre filmes, é sempre um aprendizado. Aliás, um risco que se
corre ao falar de Pedro Costa é justamente o de ficar só se escorando nas
referências dele e esquecer de falar do que ele traz de original. Pois ele traz
esse algo novo que tem a ver com um certo trabalho com o tempo, por exemplo. Não
sei se no sentido de duração de plano e de toda a gestão temporal dos filmes
dele, que é muito particular. Você tem ali uma noção de elipse muito própria,
uma noção de modulação do tempo, modulação da nossa experiência durante a
projeção cinematográfica, que é muito particular.
Juventude
em Marcha, Pedro Costa, 2006
E
tem também a questão do tempo no sentido de tempo de gestação de uma obra. Ele
tem um método de gastar tempo para fazer o filme. E esse tempo gasto na
fabricação do filme está ali. Tem essa densidade de um tempo de gestação
prolongado, que é algo dos novos materiais. Por exemplo: essa possibilidade da
câmera digital, do fazer um filme com orçamento reduzido e com material que não
é pesado, um material leve que ele pode transportar como um pintor transportava
um cavalete e suas tintas para o meio da natureza, para fazer o en plein air. De certa maneira ele vai
fazer isso. Vai se enfurnar naquele espaço, tentar entender toda a dinâmica do
espaço, estudar todas as possibilidades daquele espaço, filmar horas de
material, cinzelar. Imagina um escultor ali trabalhando aquele bloco de mármore
com muito cuidado, sem um compromisso contratual, entregar num prazo, eu acho
que isso é uma coisa que está ligada a um certo modelo de fabricação de filmes
que, embora ele adore John Ford e tantos cineastas clássicos, não era possível
lá.
Então,
para ele chegar num enquadramento que John Ford fazia num dos três filmes que
ele tinha realizado naquele ano, Pedro Costa precisa de meses. E esses meses
estão ali naquele quadro de alguma forma. Aquelas sombras densas que ele filma.
Eu acho que essa dilatação temporal da feitura dos filmes dele gera um tipo de
trabalho dentro do tempo diegético que é muito interessante. Por exemplo o Juventude em Marcha, tem um recorte
temporal que é muito rico, muito complexo.
Cauby – Tu achas que talvez os últimos grandes
filmes feitos em digital nos últimos 15 anos sejam filmes feitos de maneira
livre, praticamente caseira? Eu estou pensando no Pedro Costa, no Godard, e no
último filme do Jean-Claude-Brisseau, o Garota de Lugar Nenhum.
A
Garota de Lugar Nenhum, Jean-Claude Brisseau, 2012
Jr. – Eu não sei se dá
para fazer essa afirmação porque a gente pode achar uma dezena de contra-exemplos
também. Todo mundo está filmando com o digital, então todos os grandes filmes
que você viu nos últimos anos foram feitos com o digital. Agora, existe digital
e digital, com essa câmera aqui você pode fazer um filme.
Cauby – Os diretores que ainda têm uma produção, um
recurso produtivo maior como James Gray, Hou Hsiao-hsien... é mas tem o Michael
Mann. Aí tu me quebrou. (Risos) Mas mesmo Michael Mann. Ele é um produtor. Mesmo
o Miami Vice sendo um fracasso, mesmo
o último filme dele sendo um fracasso, ele tem ainda liberdade para fazer o próximo
filme.
Jr. – Daqui pra frente
eu não sei, viu...
Cauby – Os grandes cineastas ainda estão com uma
teimosia com a película...
Jr. – Sim. E mesmo
trabalhando com o digital a estrutura de produção mobilizada ainda é a mesma.
Trabalhar com digital não significa trabalhar com baixo orçamento e com modelo
de produção caseiro. Mas eu não sei, eu não saberia afirmar.
Eugène
Green, por exemplo, sempre afirmou que não ia fazer um filme que não fosse em
película. Ele é desses cineastas que teorizou a própria visão de cinema, escreveu
uma poética – no sentido aristotélico –, uma poética cinematográfica. E não só
ali, mas no Présence(s) também (outro
livro dele). Ele sempre deixou muito claro também em entrevistas que o cinema
tem na sua raiz uma conexão ontológica com o mundo, a ideia de impressão, de empreinte: um traço deixado na gelatina
sensível por um acontecimento, por uma presença. A nossa presença aqui sendo
capturada por um material sensível, as emanações luminosas desse espaço, dessas
fontes luminosas, de nós mesmos. Isso para ele estava na base da conexão dele
com o cinema. Ele dizia que não ia filmar quando acabasse a película, mas ele
filmou, e fez um belíssimo filme.
La
Sapienza, Eugène Green, 2014
Um
filme que gira muito em torno da arquitetura barroca e um dos personagens
principais é um arquiteto, que estudou muito Borromini e Bernini. Os
personagens estão fazendo uma viagem por Roma visitando as igrejas barrocas do
Bernini, do Borromini, e em determinado momento há um efeito digital. Onde você
pensou que ia ver isso num filme do Eugène Green?
As
pessoas se adaptam e se reinventam. Estávamos falando da crise, e quando eu vi
esse filme do Eugène Green eu saí de alma lavada. Talvez um pouco por isso.
Eugène Green, que bradava aos quatro ventos que jamais faria um filme que não
fosse com película, fez um filme com digital, usou ferramentas e recursos
específicos, e só possíveis graças ao digital, e fez um dos filmes mais belos
que eu vi nos últimos anos. Esse tipo de coisa mostra para a gente que o
discurso não precisa ser apocalíptico.
A imagem protéica
Alexandre – Mudando um pouco, queria perguntar a respeito
da tua relação com o cinema. Eu vi recentemente uns trechos de uma entrevista
com o Serge Daney que começa com o cara perguntando para ele qual foi a
primeira relação dele com imagens, qual foi a primeira imagem que marcou a
vivência dele e depois foi fluindo até chegar no ponto que o Daney chegou na
crítica de cinema. Eu queria perguntar o mesmo para você. Você tem alguma...
Jr. - ... alguma
proto-imagem? Se tem ela está recalcada no fundo do meu inconsciente (risos) e ela está tensionando todos os
meus trabalhos o tempo todo sem que eu tome consciência disso. Puxa, olha, não
sei, viu... eu não consigo identificar uma cena inaugural assim...
Alexandre – Alguns que foram importantes, então.
Jr. – Eu era uma criança
aficionada por filmes, mas não sabia aonde isso ia levar. Não sei identificar o
ponto de virada, onde exatamente eu passei de um aficionado para alguém que pensa
“opa, isso aí significa algo a mais para mim”. Não teve um filme que me disse: “cara,
vai lá que é isso aí”. Alguns filmes mexeram muito comigo e posso falar. Não é
uma cena inaugural, mas em 1999 o Festival do Rio estava fazendo uma
retrospectiva do Tarkovsky, e na época eu era um estudante de medicina em
crise, muito disposto a encarar a aventura de largar o quarto ano de medicina
para ir para o cinema. Um dia que me ajudou a ter convicção de que eu deveria
fazer isso foi o dia, durante a retrospectiva, em que eu vi O Sacrifício ali em Botafogo. E eu
lembro que depois eu andei a Voluntários da Pátria inteira refletindo sobre o
filme e falando “caramba, é... talvez eu tenha que me dedicar a isso aí”. Tudo
o que eu queria naquele momento era parar tudo e ficar escrevendo sobre esse
filme, pensando sobre esse filme, e isso não era possível caso eu continuasse
na faculdade de medicina.
O
Último Grande Herói, John MacTiernan, 1993
Isso é histórico.
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