Salvo
engano, tive meus primeiros contatos com os textos de João Bénard da Costa em
2006 ou 2007. Isto quer dizer que apenas muito tardiamente (e, ao mesmo tempo,
apenas muito recentemente) em relação ao que constitui o bojo de sua produção
crítica. O que de imediato chamou minha atenção e contribuiu para o meu
interesse foi a imensa flexibilidade do seu pensamento e do
seu campo de referências. Qualidade ao mesmo tempo menosprezada e
incompreendida, confundida muitas vezes com um ecletismo de fachada, mal
formado e sem fundamento, essa flexibilidade diz respeito sobretudo à extensão
coberta por um olhar bastante preciso – ou, em outras palavras, verdadeiramente
generoso, porquê ao mesmo tempo suficientemente específico e
suficientemente amplo. Um ponto de vista, sim, mas perfeitamente heteróclito.
Acredito
que a segurança e a consistência das eleições e predileções de Bénard vinham do
seu profundo enraizamento (que nada teria, nem teria por que
ter, a ver com qualquer estagnação ou engessamento), característica fundamental
que o dotava da capacidade de abordar com conhecimento erudito e fôlego sempre
renovado as tradições mais longevas e duradouras de todas as artes, no teatro
como na pintura, na música como nas pesquisas poéticas e literárias, ou aquilo
que determinada cultura teria de menos evidente e, portanto, de mais interiorizado
e entranhado (seus textos sobre Mizoguchi, todos notáveis).
Capaz, também, e também por causa desse enraizamento, de conjugar a
efervescência analítica do campo ensaístico, por onde comumente trafegam os
(bons) teóricos quando abordam o cinema, ao assentamento de um estilo literário
distinto e requintado, comum aos grandes críticos de arte (é o crítico que mais
me faz pensar na empreitada de ÉlieFaure com a sua história da arte, mais até
do que Godard com as suasHistoire(s) ducinéma). É a esse enraizamento, e
não às oscilações de uma vontade vã e suscetível às mudanças ditadas pelas
flutuações de valores e pelos ditames dos gostos e das modas, que devemos
justamente a aptidão para a antevisão, pela qual Bénard da Costa veio a
detectar inúmeras vezes aquilo que já não era ou que rapidamente deixaria de
ser permanente, aquilo que não apenas acompanha as mudanças e as
transformações decorrentes delas como também as determina, dá-lhes uma direção.
Nesse sentido sua menção a Wenders na Folha da Cinemateca que escreveu
sobre The MostDangerous Man Alive (O Mais Perigoso Homem Vivo,
1961), de Allan Dwan, é nada menos que premonitória e definitiva.
Se Bénard
foi, junto com Jean-Claude Biette, o mais astuto espectador e cronista da
modernidade tardia que seguiu a efervescência dos cinemas novos, isto se deve a
uma capacidade de assimilação vigorosa, somada a uma penetrante e ao mesmo
tempo vigilante faculdade de descoberta e de renovação. Pioneiro nas
valorizações, quando não responsável direto pelas descobertas, de Werner
Schroeter, Raoul Ruíz, John Carpenter, Paul Newman, Alain Cuny, do próprio
Biette (isto sem falar em Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António Reis &
Margarida Cordeiro, João César Monteiro, Pedro Costa, Jorge Silva Melo, Alberto
Seixas Santos, Manuel Mozos, António da Cunha Telles, Rita Azevedo Gomes, João
Botelho e tantos outros a quem lhe devemos o simples alcance), nas
redescobertas ou revalorizações de Gerd Oswald, Richard Fleischer, Leo McCarey,
Jacques Tourneur, Henry King, Frank Borzage, Manuel MurOti, Sacha Guitry, Boris
Barnet, sempre atento em suma – sempre disponível -, Bénard
possuía o atributo fundamental dos grandes prospectores, dos grandes homens de
cinema, tal qual Henri Langlois, tal qual Pierre Rissient, tal qual Peter
vonBagh, Adriano Aprà, Miguel Marías e outros (não mais que um punhado):
ele ia aos filmes, subsequentemente perseverando por eles,
lutando para que fossem vistos, jamais esperando que eles chegassem a ele como
que por desvio de rota ou por distração (como parece ser o caso com parte
considerável dos atuais críticos e dos que sondam, ou pretendem sondar, a
atualidade do cinema). Essa ação, que determinou e condicionou a
dimensão e, por isso mesmo, a importância do trabalho de Bénard, não tem como
ser desvinculada da sua produção crítica nem tem como ser reduzida unicamente
aos caprichos de um curador insaciável: ela própria é eminentemente
crítica.
Se o seu
caso permanece exemplar, é justamente pelo que nele há de dedicação e anulação.
Bruno
Andrade
*
Qualquer pretendente a crítico tem como obrigação ler o texto dedicado a
Richard Fleischer na ocasião da morte do grande cineasta norte-americano (O Realizador do Balouço Vermelho), exemplo de como se escrever
sobre um realizador do passado e filmes de longa data com nada “de saudosismo
ou de retrocesso”, atento ao “progresso e modernismo que a evidência, a
filigrana e garra da posta em cena deste verdadeiro realizador afirma”, como
bem escreveu José Oliveira no seu excelente texto
sobre ViolentSaturday (Sábado Trágico, 1955), bem como a crônica que Bénard
escreveu sobre como veio a conhecer pessoalmente Jon Whiteley, o jovem John
MohunedeMoonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955) (De John Mohune a Jon Whiteley ou de Fritz Lang a
Jean-Auguste-Dominique Ingres): não há melhor escola.
** Dedico
este texto a Riccardo Freda e ao seu melhor filme, I miserabili (Os
Miseráveis, 1948), que Bénard certamente teria amado. A Bénard da Costa
dedico o site com
o qual eu e uns amigos nos ocupamos nas horas vagas: “theexercisewas
beneficial”.
[Bruno Andrade mantém uma revista
de cinema online, a Foco,
cujo primeiro número é dedicado a João Bénard da Costa, compilando
diversos dos seus textos e uma homenagem de Miguel Marías
(Texto original: http://www.apaladewalsh.com/2014/06/exemplo-de-joao-benard-da-costa/)
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