quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O QUE ESTÁ DITO...


“Ce qui est, est.” / “Ce qui est dit, est dit.”

Em seu célebre artigo “Génie de Howard Hawks” (1953), Jacques Rivette diz que “a evidência é a marca do gênio” do diretor de Monkey Business. O estilo de Hawks deve ser buscado na parcela puramente física do filme, no que este tem de mais imediato, de mais associado à ação, ao gesto, ao homem reagindo às modulações do espaço. “Os passos do herói traçam a figura de seu destino”. O primordial é da ordem da ação. A inteligência artesanal de Hawks se aplica diretamente ao mundo sensível: “Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. O que é, é.”
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No primeiro plano de Le Monde vivant (2003), de Eugène Green, vemos um quarto vazio, com uma cama arrumada e uma pequena janela ao fundo. Ocorre um breve diálogo em off. Trata-se de um casal conversando sobre o desaparecimento do filho, quase como se fosse uma trilha de comentário sobre a ausência que o quarto vazio, em si, já significa. A mãe diz que fazem três dias desde que o filho desapareceu, o pai diz que o filho manterá contato, a mãe crava que não, o pai pergunta como ela pode saber, ela responde: “O que está dito, está dito”.

O filho disse que não retornaria e assim será, pois a palavra empenhada contém a verdade, a única verdade possível. Se em Hawks a evidência do mundo estava na ação, em Le Monde vivant ela se desloca para aquilo que, em Green, é o elo vivo entre o signo e a coisa: a palavra. O mundo vive em nós através da palavra. E a recíproca é verdadeira, já que a palavra, para vir à luz, precisa ser transcrita na matéria do mundo ou passar por um corpo para se tornar fala.

mise en scène, na visão de Rivette sobre o cinema de Hawks, prolongava as vibrações do mundo nos movimentos do corpo e vice-versa. Em Green, por sua vez, é por meio da palavra que o homem cria seu elo definitivo com o mundo. Ora, tornar sensível o elo entre o homem e o mundo nada mais é que a tarefa principal damise en scène descrita por Rivette. O desdobramento lógico é que a palavra, centro e origem da mise en scènede Green, cumpre a mesma função que o combate corporal e as lutas calorosas cumpriam enquanto meio natural dos heróis de Hawks. Para Green, “tudo parte da língua, mesmo as coisas visuais”
2. Sua estética se define pela tríade homem-palavra-mundo, ou pelas relações do homem e do mundo tendo como mediador a palavra, a linguagem. Talvez as frases de Rivette (cujo Hurlevent[1985], aliás, já apontava em parte o caminho que Green seguiria) e do início de Le Monde Vivant possam se fundir numa só: o que é, está dito.

Dar corpo ao espírito das palavras

Mediante o uso enfático da palavra, o cinema de Green se abre para um mundo que extrapola o corpóreo e o terreno e atinge o misterioso, o espiritual, o mitológico – em resumo: o poético. Em Toutes les nuits, o jovem Jules (Adrien Michaux) afirma – para o choque de seu professor de literatura e de seus colegas de faculdade – que “a poesia é a presença manifesta na linguagem de uma ordem”, ordem entendida não no sentido político (“mas toda ordem é política!”, protesta uma aluna – o ano é 1968), e sim como “alguma coisa universal que se pode sentir quando se está totalmente sozinho em uma igreja”. O que nem seu professor nem seus colegas percebem é que, com tal afirmação, Jules não revela uma postura reacionária, mas pratica um poderoso ato de resistência. Ele defende a poesia como o último refúgio de um absoluto da linguagem.

Derivada dessa poesia definida por Jules como ato de fé, a palavra greeniana é o ligante natural entre o corpo e o espírito, é a busca do caminho que liga a fonética do cotidiano aos mais profundos mistérios do sagrado. Aquela dicção tão peculiar de seus personagens é a depuração do momento em que o corpo se conjuga ao verbo que o anima. Green retira a musicalidade da declamação típica do teatro barroco, com o qual ele trabalhava antes de partir para o cinema, e interioriza os diálogos, como se cada personagem, ao falar com outro, falasse antes consigo mesmo, se inter-rogasse a todo instante.

A palavra cumpre em seu cinema a função que o desenhocumpria na cosmologia estética de Federico Zuccari (pintor e arquiteto italiano do período maneirista): o signo da presença de Deus nos homens e no mundo (ele assim interpretava etimologicamente: Disegno = segno di dio in noi 
3). À semelhança do desenho perfeito que Zuccari celebrava como o “segundo sol do cosmos”, a “segunda natureza criadora”, “o segundo espírito do mundo que vivifica e alimenta”, a palavra aparece em Green como a própria criação do mundo, como o elemento que aproxima o homem, criador de obras de arte, de Deus, criador da natureza.

Signos

Numa das mais memoráveis cenas de Le Monde vivant, Nicolas (Adrien Michaux) vem andando e se depara com o “chevalier au lion” (Alexis Loret). Só que o leão em questão é um labrador. O que faz dele um leão? O fato de que seu dono assim o designa. Se está dito que é um leão, ninguém há de contestar. Esse privilégio da idéia sobre a matéria, do signo sobre o corpo, pode sugerir um cinema “elevado” (sublimado, até), purista, austero. Mas não: Le Monde Vivant é um divertimento. Green nos transporta ao estado epifânico em que se dão os grandes milagres da linguagem, mas o faz por intermédio desse tipo de fantasia recreativa: chamar um cachorro de leão e assim crer e fazer crer.

Outra cena: Nicolas tem seu primeiro encontro com a princesa mantida prisioneira no alto da torre de uma capela. A primeira coisa que ela diz é: “Você não é um cavaleiro”. “O que distingue um cavaleiro de um não-cavaleiro?”, Nicolas pergunta. “A espada”, ela responde. Ela poderia ter dito também: “um signo”. Como se pode ser cavaleiro sem a espada? Como se pode ser cavaleiro sem o signo que cria a significação-cavaleiro? Entre o desígnio em si e sua presença fenomenal, a princesa percebe uma defasagem acarretada pela ausência de um objeto cujo aspecto fálico, inclusive, não é negligenciado (ocorre depois uma cena, maliciosamente cômica, em que Nicolas vai beijar a princesa, já portando uma espada na cintura, e ela reclama que foi “picada” pela ponta da espada, numa clara metáfora da ereção que o jovem teria tido naquele momento).

Nessa ordem instaurada pela linguagem, nada existe antes de receber um nome, ou antes de se articular com alguma outra coisa (universo, portanto, oposto ao de Mal dos Trópicos, onde as coisas existem antes, sobretudo antes, de receberem um nome ou se articularem numa linguagem pautada pelo choque entre signos 
4). Uma vez reivindicada a necessidade do signo, da linguagem, o diálogo entre Nicolas e a princesa passa do plano de conjunto ao campo-contracampo, cada plano correspondendo a uma fala. O plano é frontal, o corte é seco. A decupagem e a montagem de Green respondem a uma demanda intrínseca à crença absoluta na palavra e, por extensão, na transparência do mundo: frontalidade e objetividade.

Em Les Signes (2006), o laconismo do signo (que faz um plano valer por mil, um objeto valer por todos os outros, uma palavra substituir uma frase etc) se acentua e segue uma espécie de ritualística. Uma mulher (Christelle Prot) troca a vela de um candelabro todo dia, religiosamente. Ela explica a seu filho mais velho que a chama da vela, colocada junto à janela do apartamento que dá de frente para um canal, é um signo, um sinal para Deus e para o marido dela, um pescador que um belo dia desapareceu. A vela funciona, assim, como um chamariz. Se o lugar do signo é a janela, é porque ele deve ocupar o limite entre dois mundos: a função do signo é justamente comunicar o interior ao exterior, mesmo se não houver nenhuma garantia de que tal transmissão ocorrerá.

A chama de uma vela é ainda outra coisa: signo instável, tremeluzente, tão mais intenso quanto maior for sua iminência de apagar. O que é uma presença? É tudo aquilo que corre o risco de desaparecer. É o traço mais forte deixado por um corpo ou um objeto no mundo, antes da sua desaparição completa (lembrar das sombras de Adrien Michaux e Natacha Régnier sumindo num crescente clarão na penúltima cena de Le Pont des Arts).

Como a personagem de Christelle Prot em Les Signes, Green demonstra em todos os seus filmes uma fé absoluta no signo, algo que seu primeiro longa, Toutes les nuits(2001), já afirma: para figurar Maio de 68, por exemplo, ele só precisa de uma pequena barricada montada por alguns pneus, três ou quatro jovens carregando tochas, dois policiais armados de cassetete. Nas cenas passadas em Nova York, terra natal do diretor, o procedimento é ainda mais radical, e a cidade é construída apenas por uma ambiência sonora. A mesma lógica do labrador/leão impera aqui: se o filme diz que aquela calçada – deserta em pleno réveillon! – pertence a Nova York, está dito (e os sons dos fogos de artifício e da multidão eufórica estão lá para confirmar). A fé no signo e na presença leva a uma economia dos meios – sabedoria de um cineasta que veio do teatro.

Tudo que Green assimila das outras artes é trabalhado em seus filmes de modo “impuro”. Ele incorpora praticamente sem alteração alguns componentes do discurso literário e da encenação teatral que, codificados por outras práticas significantes, não conseguem atravessar com suavidade a tela de cinema e, em último caso, chocam-se a ela com violência, com peso; esses signos, essas palavras, essas presenças heterogêneas que não traspassam a tela, que não se dissolvem no fluido transparente da captura do real, todas essas coisas obrigatoriamente afrontam o espectador, pois nada lhes resta senão aparecer de forma crua e despudorada diante de nós. Green filma o nu frontal do gesto pictórico, da cenografia teatral, da poética literária.

A fronteira da alvorada

Se eu tivesse de escolher uma cena favorita dentro do cinema de Eugène Green, ficaria com aquele momento deLe Monde vivant em que, no coração da madrugada, horário por si só propício às aparições, o “chevalier au lion” retorna do mundo dos mortos, como que trazido pelo vento da noite, e dá a mão à sua amada Pénélope (Christelle Prot). O encontro das mãos dos dois personagens é um momento mágico, um dos mais belos da década. Assim como Dreyer, Duras, Rivette, Vincent Gallo e Philippe Garrel, Eugène Green sabe que o cinema, quando levado a certos limites, permite aos homens travar um diálogo secreto com os mortos.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

1. Publicado nos Cahiers du Cinéma nº 23.

2. Ver entrevista a Jean-Sébastien Chauvin, em Cahiers du Cinéma, abril de 2001, p. 101.

3. Cf. Erwin Panofsky, Idea: a evolução do conceito do Belo, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

4. Pego atalho num texto que escrevi na época de Mal dos Trópicos: “Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo” (cf. Contracampo nº 66).

Descrição: http://www.contracampo.com.br/95/imagens/bullet_ponto.gif Março de 2010
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/95/artgreenjr.htm)

Blackhat: crítica da separação

Por Guilherme Savioli
Blackhat se constrói sobre um intervalo abissal: aquele que se inicia com as primeiras imagens de uma terra quase cibernética, de onde só se enxergam algumas luzes – e a partir da qual somos lançados diretamente numa longa sequência de mergulho por um organismo virtual – e se estende até o momento em que o protagonista, o hacker Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth), constata que tudo se resumirá à uma questão de se conseguir chegar perto o suficiente e rápido o suficiente de seu alvo. No interlúdio entre esses dois momentos e na sequência que precede a constatação de Hathaway, Michael Mann compõe o que estaria próximo de uma sinfonia, na qual cada sequência é um movimento ensaístico que discorre sobre um problema contido na observação crucial feita por Hathaway (e que já está presente também no mergulho inicial do filme): as coisas, para serem assimiladas em sua essência, precisam ser colocadas fisicamente em choque, confrontadas proporcionalmente em suas escalas.
A luta que existe entre a passagem do virtual e abstrato para o plano físico e concreto não é um motivo que existe apenas a nível temático, mas está incrustado na essência formal da obra. Em Blackhat a encenação de Mann não é marcada tanto pela violência com que os elementos visuais e sonoros eram manipulados em seus últimos três filmes (Colateral, Miami Vice e Inimigos Públicos), mas sim por uma espécie de estudo e revisão do trabalho desenvolvido até então.
Para tanto, há uma certa urgência por parte do cineasta em apresentar de forma extremamente concisa seus personagens, alguns ambientes-chaves pelos quais eles irão circular e o que eles perseguirão. Através dessa concisão (principalmente dos personagens, talvez os mais compactos e superficiais do cinema do diretor) Mann irá trabalhar com o que há de mais aparente nas coisas, com sua superfície mesmo: uma cena de ação – como a briga no bar em Koreatown – servirá para o diretor o explorar ao máximo as nuances de luz e cor, os gestos e principalmente a alternância do ponto de vista e a duração temporal. Se alguns desses traços já eram marcas essenciais e caracterizavam formalmente seu cinema, aqui o componente da dilatação temporal e a tendência de se colocar a matéria à prova, puxando-a rumo à abstração, desenham uma obra sui generis em sua filmografia.
Uma das cenas mais perturbadoras de Blackhat é justamente aquela em que todos as pessoas que ligavam o protagonista e sua amante aos governos da China e dos EUA – personagens que garantiam o caráter de legalidade da missão – são fulminados pelo grupo bandidos. Assim como em Colateral, no momento em que Tom Cruise assassina o policial e Jamie Foxx se vê novamente sozinho, os personagens estão por conta própria a partir desse momento. Ao contrário do filme de 2004, o tratamento que Mann dá a cena não é marcada pela urgência e necessidade de tomada de decisão. O adeus ao amigo e irmão é filmado quase como um ritual, a cena da explosão (como em alguns outros momentos de outras cenas de ação) é filmado em um sutil slow motion. Ao fim da sequência, quando Hathaway e Chen Lien (Wei Tang) estão a caminho da Indonésia somos brindados novamente com uma cena extremamente bela e dura, quando Mann filma o olhar petrificado da atriz, sintetizando seu estado catatônico, e depois corta para o avião mergulhado na escuridão da noite, atravessando a cidade luminosa e finalmente ganhando o horizonte, mais iluminado, mas por apenas alguns breves segundos.
É também na cena do extermínio em que ocorre o plano mais cruel do filme: o momento em que Barrett (Viola Davis), baleada, quase morta, olha para um prédio. Acompanhamos o ponto de vista da morte, em um acentuado contra-plongé. O peso que o momento carrega advém de uma cena anterior, quando a mesma personagem pondera sobre o fato de ser justa a perseguição a Hathaway (ordem das instituições legais responsáveis) e revela que perdeu o marido no atentado do 11 de Setembro. Mann não se preocupa em desenvolver uma carga psicológica que acompanha a personagem (e o mesmo se pode dizer sobre todos os outros personagens e as relações estabelecidas entre eles), a dor existente e partilhada no plano existe, porém, justamente da secura dessa construção, da intensificação do sentido que vem primordialmente pelo aspecto visual, pela exploração dessa superfície.
Se o indivíduo que se debate contra as instituições é uma tônica no cinema de Mann, Blackhat é um dos filmes mais incisivos nesse aspecto, e sem dúvida o mais cético em relação à qualquer instância oficial. Esse aspecto está impresso na forma como Mann insere as figuras de seus personagens contra o horizonte, figura característica de seu cinema. Antes, apesar do peso existencial que dominava esses planos, o horizonte de possibilidades existia. Agora, o horizonte parece se desfazer, ou existe apenas por um breve instante.
Hathaway já havia feito a fatídica declaração (I’m doing the time, time isn’t doing me) e o ponto de vista da morte de Viola Davis é o bastião formal dessa profunda descrença (que em Blackhat já se converte em um profundo desprezo) pela ordem institucional, que opera sempre num plano quase virtual, abstrato. Novamente, é necessário trazer às coisas à terra, e nesse movimento a primeira instância a ser fulminada é essa suposta legalidade.
Ao compor esse ensaio sinfônico sobre um problema que julga ser central em nossos tempos, Michael Mann assume um risco e uma responsabilidade que se assemelham apenas ao salto formal rumo ao minimalismo, de um Howard Hawks em Red Line 7000. Seu diálogo atual é com Clint Eastwood, que em Sniper Americano propõe, igualmente, uma depuração em seu estilo, mas encaminha sua narrativa para o épico. Mann continua sendo um cineasta essencialmente do drama, mas ao submeter sua narrativa à uma construção formal que tensiona a matéria rumo ao abstrato, leva a discussão central de seu cinema a um outro patamar.

Texto original: 
http://www.revistainterludio.com.br/?p=8427

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