Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 391, janeiro de 1987.
A escola do super-8Cahiers du Cinéma: Como você foi levado a fazer cinema? Qual foi sua formação?
Nanni Moretti: Durante meus últimos anos no colegial, eu era um espectador apaixonado sem, no entanto, ser alguém doente. Eu via tudo, inclusive os filmes ruins, pois é muito importante vê-los. Fazer cinema? Não se pensa isso, é algo instintivo. O cinema, para mim, era, e é sempre, um meio adequado para comunicar aos outros e a mim mesmo aquilo que tenho dentro de mim. Na época, eu não conhecia ninguém no meio do cinema e os meus pais não tinham nada a ver com ele – eles são professores. Fazer cinema era um risco. Não era “Eu vou fazer cinema e eu farei”, mas mais um ponto de interrogação. Eu tinha que escolher entre duas vias diferentes, ou entrar numa escola de cinema ou me tornar assistente. Felizmente, não fiz nem um nem outro. O Centro Experimental de Cinema em Roma era reservado unicamente àqueles que tinham obtido um diploma de mestrado. Não tendo feito universidade após o colegial – eu não tinha muita vontade de entrar numa outra escola -, era impossível, para mim, me inscrever nesta escola de cinema. Por outro lado, a Academia de Arte Dramática, que é uma escola reservada aos atores (onde se ensina um tipo de atuação um pouco fria, árida), não me convinha. Então, eu tentei me tornar assistente, mas não funcionou. Cada vez que eu pedia diretamente a um diretor, a resposta era não. Ser assistente de um diretor é um trabalho diferente de querer se tornar diretor. Não há transmissão de uma expressão artística entre o diretor e seu assistente. Há somente histeria: berra-se, grita-se, e isto é tudo o que é dito entre os dois. O diretor tem o filme todo na cabeça e nem sempre quer comunicar, mostrar a outros seu processo, do roteiro à filmagem. Ser assistente é útil, talvez, uma vez ou duas, para compreender como é a organização, o plano de filmagem, mas de maneira alguma para saber o que é o cinema num plano artístico, pela proximidade com o processo do diretor. Ser assistente permite igualmente apreender um set de filmagem do ponto de vista psicológico: as relações entre o diretor e os atores, o diretor de fotografia, os técnicos. As pessoas têm o seu caráter, suas suscetibilidades, não é fácil. Para além do trabalho de assistente, há o risco de se tornar um cineasta profissional. Na Itália – não sei como é nos outros países -, dizer que um cineasta é um expert, que é um bom profissional, é o pior elogio que se pode oferecer a ele. É um defeito, não uma qualidade. É realmente muito negativo. Na Itália, quando um cineasta não é bom, dizemos que ele é bem preparado tecnicamente, bem instruído. O que nos leva a falar de uma não-mise en scène, uma mise en scèneestandardizada, impessoal: é ele, mas poderia ser qualquer outro.
Então, eu comecei a fazer cinema absolutamente sozinho, filmando pequenos filmes em super-8. La Sconfitta e Pâté de bourgeois (a história de um garoto que coloca secretamente sua câmera em banheiros públicos), que eu filmei em 1973, são filmes em que eu fiz tudo: a escritura do roteiro, a direção, a fotografia, a montagem, o ator. Foi assim que eu aprendi. O super-8 é uma escolha por falta de meios, mas é também um meio de expressão simples, longe de todo profissionalismo pesado. Na minha opinião, não há verdadeiro cinema sem um aporte pessoal, e com o super-8 há isso obrigatoriamente. Então, eu não poderia ter começado melhor. Amo quando a técnica é simples, não visível. O resto é a expressão, a linguagem, o estilo.
O super-8 me pôs na via de um cinema simples. É este que eu amo, e não um cinema simplista ou banal. É muito mais difícil fazer um filme com uma câmera imóvel do que movendo-a sem razão aparente. É mais difícil fazer um cinema simples do que um videoclipe. Um cinema simples pressupõe um grande trabalho de escrita previamente. É um cinema que confia no espectador, pois, no caso de um filme cômico, ele não o obriga a rir em tal momento, com um enorme piscar de olhos ou uma careta, ou a chorar em tal outro. Fazer um filme simples não constitui um ponto de partida, somente um pouco de chegada.
Carta de um cineasta
CC: O fato de ter filmado em super-8 (condições de trabalho, leveza do suporte) permitiu a você abrir espaço à improvisação na filmagem?
NM: Enquanto ator, sou incapaz de improvisar. Não quero tentar e não acredito de maneira alguma na improvisação. Alguém como Begnini pode improvisar – ele tem a experiência do teatro, da cena -, eu não. Como cineasta, também não improviso. Passo muito tempo escrevendo um roteiro. Durante a preparação, posso modificar certas coisas de acordo com os atores e as locações, mas eu não improviso. Alguns diretores de filmes cômicos dizem: “Ah, como nos divertimos na filmagem, improvisamos bastante.” Isso não quer dizer que o público achará isso divertido. Quando começo a filmar, tenho o roteiro mas não a decupagem em planos, com os movimentos de câmera. Faço a decupagem durante a filmagem ou pela manhã, no carro a caminho do set, como um garoto que faz seus deveres de casa atrasado, no último momento, depois de ter passado a noite jogando futebol ou vendo televisão.
CC: No início, sua vontade de fazer cinema era ser, ao mesmo tempo, ator e diretor ou somente ator?
NM: Os dois ao mesmo tempo, desde o início. Me parecia natural para o tipo de filmes, muito pessoais, que eu queria fazer. Truffaut disse um dia, ao ser perguntado por que tinha sido ator em filmes como L’Enfant Sauvage e A noite americana: “Há cartas que escrevemos à máquina; esses dois filmes são cartas escritas à mão.” Quanto a mim, eu jamais escrevi uma carta à maquina em toda a minha existência. Eu sempre atuei em meus filmes e sempre pensei, sem me colocar muitas questões, que a minha maneira de atuar ou de não atuar era, com os seus ritmos, suas pausas, seus silêncios, aquela que convinha a meus filmes.
CC: Você não considera dirigir um filme sem atuar nele, ou ser ator de um outro cineasta?
NM: Dirigir sem atuar? Até o momento, não. Ser ator em filmes de outros, eu não digo não, mas, para isso, há muitos fatores que entram em jogo e que tornam a coisa muito difícil. Seria preciso que eu amasse o tema, que amasse o personagem, que tivesse vontade de atuar, que eu amasse o cineasta com o qual iria trabalhar e, sobretudo, que eu tivesse tempo de fazê-lo.
Autorretrato de um personagem
CC: Quando concebe o personagem que você interpretará, você parte primeiro da sua profissão (professor, padre), da função que ele exerce na vida social?
NM: Não. Para A missa acabou, me divertia vestir uma batina, me ver assim, muito antes de pensar no papel do padre, sua significação, mesmo que seja um personagem que tem a ver com aqueles que já interpretei. Quando escrevo um roteiro, me apoio em fatos precisos. Não começo escrevendo uma história. É preciso primeiro que eu identifique a psicologia do meu personagem, seus sentimentos. O resto, a história, deriva daí.
CC: Em que seus personagens se revelam autobiográficos?
NM: Eles o são pelo caráter, por certos dados psicológicos, mas não realmente pelos episódios contados pelo filme. Se quisermos ser minuciosos, o mais autobiográfico seriaEcce Bombo, em que eu faço o papel de um cineasta que vive com sua mãe, que é um pouco colérico (ele agride todo mundo) e que faz um filme sobre um velho senhor que vive com sua mãe e se toma por Freud [a descrição, no entanto, corresponde a Sogni d’oro, e não Ecce Bombo. N.T.]. Nos meus sonhos, eu me vejo um professor apaixonado por uma de suas alunas. Em Io sono un autarchico, faço o papel de um pai que acaba de deixar sua esposa e que vive com seu filho de cinco anos. É um ator de teatro que participa de uma trupe de vanguarda, a “Escola Romana”, o que estritamente não tem nada a ver com a minha vida: eu não tenho filhos e jamais fiz teatro. Meus personagens são autobiográficos na medida em que eles representam um estado de espírito meu em um dado momento e em que eles exprimem sentimentos.
Os personagens dos meus dois últimos filmes (Bianca e A missa acabou) são próximos. Eles se realizam nos outros e sua felicidade se dá através daquela do outro. No fim, eles percebem que a realidade, felizmente ou infelizmente, é mais complicada do que eles esperavam. Quando personagem de Bianca percebe que a realidade não é tal como ele quer, ele a destrói: ele mata seus amigos que se traíam uns aos outros e que, por esta mesma razão, traíam a ele. Em A missa acabou, o personagem começa a aceitar a ideia de que a realidade é mais complicada do que ele imaginara. Então, ele não insiste. É ao mesmo tempo uma vitória e uma derrota. Uma derrota com relação aos outros, porque ele não conseguiu fazer algo por seus amigos. Uma vitória sobre ele mesmo, em relação ao personagem de Bianca, porque ele assume sozinho esta derrota.
Autobiografia, certo, mas autoterapia não. Não faço filmes para resolver meus problemas – eles não mudam nada, não me sinto melhor uma vez que o filme foi realizado e não creio de maneira alguma nesta função do cinema -, mas somente porque eu gosto de comunicar pelo viés do cinema.
Atores em família
CC: De onde vêm os atores de seus filmes? Aqueles de A missa acabou são formidáveis.
NM: Eles não são atores de cinema (risos). Os atores de cinema, na Itália, são uma farsa, por causa da dublagem. Claro, há aqueles da comédia italiana, Gassman, Sordi, mas é uma outra geração. Os atores dos meus filmes vêm de dois horizontes: os não profissionais, pessoas da minha família (em Sogni d’oro, meu pai faz um produtor, emBianca, o psiquiatra, em A missa acabou, o juiz do tribunal), amigos, críticos de cinema (Giovanni Buttafava, Tatti Sanguinetti), e os profissionais, que são pessoas do teatro. Em geral, prefiro discutir com eles uma meia-hora, tomar uma cerveja, mais do que passar três horas vendo-os no teatro. O que eu procuro num ator são as qualidades humanas. Na filmagem, amo a mistura entre atores profissionais e não profissionais. Do ator profissional eu tento eliminar seus defeitos mais profissionais, eu o trato como um amigo. Contrariamente, com um ator que não é da profissão, eu tento criar uma relação muito profissional, eu lhe insuflo o profissionalismo. Eu escolho eu mesmo todos os atores dos meus filmes, incluindo os figurantes e aqueles que têm apenas uma única fala a dizer. Eu tenho um enorme dossiê sobre eles, com muitas fotos.
CC: Enquanto ator e cineasta, como você procede com os outros atores?
NM: Quando há um problema na filmagem entre o ator e seu personagem, eu prefiro ir do personagem em direção ao ator, mais do que obrigar o ator a entrar em seu personagem. O ideal é terminar a escrita do roteiro no momento em que escolho os atores. Eu começo a preparação, defino as locações e escolho os atores no meu escritório. A partir dos atores, eu sei que posso fazê-los dizer certos diálogos e não outros. Isto dito, durante a filmagem, é preciso saber detectar a tempo aquilo que o ator pode ou não pode dizer. Todos os diálogos são escritos previamente, nada é improvisado. Me acontece de mudá-los quando percebo que eles não se adaptam ao ator. Uma frase de um diálogo, tão bonita quanto for, se mal dita, se torna ridícula. Na decupagem das sequências há poucos planos, mas faço muitas repetições para o trabalho dos atores, o som. Nos meus filmes, durante os takes, o técnico de som, se acreditar que existe um problema em particular, pode fazer parar tudo. Ele tem esse direito, enquanto que normalmente, na Itália, ele não vale nada. Sou muito perfeccionista no que concerne ao trabalho dos atores. Em geral, filmo planos que duram muito e que não admitem pontos de corte. É preciso, então, que eles estejam bem do início ao fim. Daí as múltiplas repetições.
O som vale ouro
CC: Seus filmes são dublados ou você usa o som direto?
NM: Utilizo som direto, 100%. Na França, é algo quase normal, na Itália é totalmente incongruente. Os diretores não estão habituados, os atores muito menos, os técnicos de som, os diretores de fotografia – pois eles devem posicionar os microfones de maneira que não vejamos sua sombra na imagem -, a produção (a organização do plano de filmagem), ninguém. Eu escolho os pequenos papeis em função da captação do som direto. Não mitifico a espontaneidade, o natural, mas sei que é quase impossível recuperar na dublagem o sentimento que tinha o ator em um dado momento durante a filmagem, suas emoções, as nuances na voz, seus altos e baixos. Na Itália, a dublagem vai de mal a pior: os filmes são dublados como os folhetins americanos: há vozes, alguns passos e mais nada. Tudo é uniformizado.
CC: O fato de você ser ator e diretor lhe coloca problemas particulares na filmagem?
NM: No início, vou para trás da câmera, decido a composição do plano colocando alguém no meu lugar. É muito rápido. Em seguida, começo a atuar e faço todas as repetições com os atores. Fico mais diante da câmera do que atrás dela. Filmo muitos takes, para ter o máximo de material na montagem. Nunca sei na filmagem se a melhor é a primeira, a quinta ou a nona tomada, e consequentemente mando revelar praticamente todas as tomadas no laboratório e escolho depois. Não utilizo monitor de vídeo durante a filmagem [já em Palombella Rossa, no entanto, sabe-se que Moretti admitiu o uso de vídeo-assist. N.T.]. Detesto equipamento eletrônico. É um paradoxo, pois sei que a maioria dos diretores-atores utilizam o vídeo durante a filmagem. Ao meu ver, no lugar de me fazer ganhar tempo, ele me faz perdê-lo. Pode-se ficar obcecado, em busca de um resultado que gostaríamos que fosse perfeito, e em seguida o operador de câmera dá sua opinião, o diretor de fotografia a sua, o maquiador, o assistente também... Alguém tão obcecado como eu jamais estaria satisfeito. Arriscaria jamais terminar o filme. Eu prefiro, então, ter a surpresa dois dias depois, ao assistir ao material filmado.
A comédia italiana
CC: Você se define como um realizador de filmes cômicos?
NM: (risos, silêncio) É um pouco ridículo querer censurar as gargalhadas, impor o riso aqui mas não ali, porém tenho a impressão, enquanto espectador de meus filmes, de que alguns espectadores riem um pouco demais. (risos) Há um lado cômico, mas também um lado doloroso, um pouco dramático e, eu espero, não muito angustiante. Um bom filme não nos angustia jamais.
Você me falava agora há pouco da profissão exercida pelos meus personagens. Em Bianca, sou um professor. Em Sogni d’oro, há uma cena em que sou professor, e emA missa acabou, eu ensino catequismo e dou cursos pré-nupciais. Só hoje me dou conta de que, nos três casos, eu fico enxotando os outros. Em A missa acabou, eu enxoto aqueles que riem demais, aquele que zomba do casal com a mulher grávida. É um pouco como o mau espectador dos meus filmes e como se eu mesmo o enxotasse da sala de cinema. Isto dito, esse quiproquó sobre o fato de que eu faço filmes cômicos me dá um enorme prazer. Na Itália, meus filmes não tiveram um sucesso enorme, mas de qualquer forma foi razoável e, graças a isso, eu pude fazer outros. O espectador está habituado. Se ele ri cinco vezes em um filme, ele vai querer rir 50 vezes no próximo. O espectador não está acostumado a um filme que mistura o cômico e o dramático e, no que me concerne, eu gosto não de sucedê-los um ao outro, mas de juntá-los em um mesmo momento, fazer de forma que a cena seja a um só tempo engraçada e dramática. Isso obriga a um cômico diferente, pois é preciso não acrescentar, mas retirar. É um cômico um pouco avarento, que me convém porque não me interessa pegar o espectador pela mão, como no maternal, e lhe dizer onde deve-se rir.
CC: Como você se situa com relação à tradição ou à herança da comédia italiana?
NM: Quando comecei, nós estávamos nos últimos filmes da comédia italiana. Ela rendeu bons filmes, ainda que tenhamos sido um pouco generosos demais com ela. Hoje, são filmes para a Páscoa e o Natal, filmes de produtores e atores, como Adriano Celentano, que são ruins. Quando comecei, eu queria fazer um cômico diferente da comédia italiana, enquanto que os outros falavam a meu respeito de uma renovação do gênero. Eu tinha mais a impressão de fazer um contrapé. Todos os cineastas da comédia italiana falaram de meios que estavam longe deles: um operário, um pequeno burguês etc. Eles zombaram de personagens de meios que lhe eram estrangeiros. Pessoalmente, eu zombo de personagens e meios que me são muito próximos, que eu conheço muito bem. É um pouco a autobiografia como crueldade para consigo mesmo. Não temos o direito de sermos perversos com os outros se não o somos conosco mesmos. A auto-ironia é obrigatória, sob pena de tornar-se ridículo.
Entrevista realizada por Charles Tesson. Traduzido do francês por Calac Nogueira.
Agosto de 2012
(Texto extraído: http://www.contracampo.com.br/99/artentrevistamoretti.htm)
LEFFest
2014: retalhos da vida de um gajo que vê filmes, parte II (fragmento)
(...)
Lisboa, 10 de Novembro
de 2014 – Dia 4
Hoje foi dia F. F de Ferrara.
Não quebrei o regime
do filme-diário (vou guardar esse trunfo lá mais para a frente) só vi Pasolini(2014)
mas recupero aqui o que tinha escrito no vento das redes sociais sobre o outro filme
do nova-iorquino Welcome to New York (2014), sobre a persona de
Dominique Strauss-Khan, que também foi exibido hoje. Escrevia que:
O corpo de Gerard
Dépardieu – que era suposto ser o símbolo da encenação minuciosa da alta
finança, do jogo/negócio da pobreza – nas suas opulentas carnes, ora
projectadas, ora ofuscadas pelas luzes dos quartos de hotel, é antes sinal de
grotesco. Esse grotesco, em que se vê mais do que era suposto quando conduzido
pelo “fazer ver” representativo, mostra duas coisas. Uma, que a carne não se
encena. Duas, que a pulsão sexual predatória parece almejar um estatuto
qualquer de dignidade muito primária quando colocada lado a lado com a
racionalidade insuperável do livro de cheques.
Posto isto fico a
pensar no que liga Strauss-Khan a Pasolini. Se calhar nada mas foram dois filme
sobre figuras históricas que Ferrara quis colocar sobre o filtro do seu cinema
em 2014. Porquê esteregard por estas pessoas? Ferrara já fez
documentários mas aqui é o impulso do real concreto (o assédio sexual de
Strauss-Khan a uma empregada de hotel em Nova Iorque e o assassinato de
Pasolini nas redondezas de Roma em 1975) que o levam a ficcionar. Neste artigo
o Vasco Câmara contou que a versão de Ferrara era que ambos estavam unidos “pela coragem da
solidão, porque em ambos essa solidão era em si qualquer coisa de herético”. Fico a pensar nesta
resposta, que não me convence de todo mas não tenho alternativa… Assim estamos.
Na conversa com o
público após a sessão, no seu jeito bully bad-boy com coração de manteiga,
Ferrara disse que aos 20 anos quando viu Il Decameron (Decameron, 1971) ficou menos
convencido da sua própria genialidade e da importância das curtas que tinha
feito nos anos 70 e apercebeu-se que Pasolini raised the bar so high that he
couldn’t see the bar. Se em Welcome to New York há uma certa admiração pelo
encurralamento de Khan e pela extrema ditadura do seu instinto (o que fazia com
que estivesse à vontade para filmar a carne de Dépardieu de fora, curioso,
pensativo) com Pasolini, a carne do seu cinema está tão imprimida no trajecto
de Ferrara que não há esse espaço para ver o realizador de Salò
o le 120 giornate di Sodoma (Salò
ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) de fora. Por isso Pasolini é um filme demasiado próximo a
um ídolo, feito com demasiado gut feeling,
transformando-o por vezes nessa figura arquetípica do seu cinema, punk, óculos
escuros, na noite. Pasolini herói sobre quem há um certo pudor em mostrar o
corpo, em mostrar a sujidade pura sem estilo do seu imaginário. Nesse impasse,
o cinema de Pasolini parece devorar a homenagem (Ferrara falou disso mesmo
quando decidiu abrir o seu filme com as imagens da abertura de Salò)
e o espaço do homem polémico e multifacetado – que falava do fim da narrativa,
do ódio à televisão portadora de notícias-legionella, do “desaparecimento dos
pirilampos”
como símbolos de resistência, pouco tempo antes de morrer – dá lugar às cenas
de carácter burlesco (a aparição de Maria de Medeiros) ou de pura emoção pelo
desaparecimento do mestre, com a música de Maria Callas e o desespero de
Adriana Asti (actriz de Accatone) no papel de
mãe de Pasolini.
Fica impresso no ecrã
a morte do italiano. É pena que juntamente com um filme onde as orgias sejam
apenas as orgias de reprodução e Ferrara não tenha conseguido conter-se nos
fogos de artifício e nas estrelas de Belém. Entre a merda de Salò que
Pasolini nos tinha deixado e a claridade total do novo “fascismo cultural” que
já não permitia ver os clarões na noite, estes fogos de artifício são cópias
pálidas da intermitência dos seus poéticos políticos pirilampos. Quase 40 anos
depois da sua morte, as “linhas de fuga” da trilogia da vida permanecem
fechadas.
Texto original: http://www.apaladewalsh.com/2014/11/leffest-2014-retalhos-da-vida-de-um-gajo-que-ve-filmes-parte-ii/
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