por João Bénard da Costa
Começo pelo título. Que quer dizer “noiseuse”? A palavra há muito deixou o léxico habitual e as próprias personagens do filme se interrogam sobre o seu significado. Marianne (Emmanuelle Béart), a personagem que vai servir de modelo durante quase todo o filme, traduz “noiseuse” por “chata” (“emmerdeuse”). Em Portugal, traduziram por “impertinente” (A Bela Impertinente foi o título que por cá lhe deram, em 1992) o que não me parece nada pertinente. Marianne não é chata e nunca é impertinente. Não é isso. Checher noise, aprende-se no dicionário, é procurar questões ou disputas por coisas pouco importantes (noise é corruptela popular de nausée). Em que ficamos? Enjoativa? Embirrenta? Por mim, prefiro quezilenta. A Bela Quezilenta parece-me título bem mais fiel.
Marianne também não é muito quezilenta? A ver. Mas entre Frenhofer, o pintor (Michel Piccoli) e Marianne é de “chercher noise” que se trata e quezilentas são não só as relações entre pintor e modelo como as relações entre ambos e o quadro, ou as relações entre os dois casais. Quezilenta é a relação capital entre imagens e os sons neste filme. E quezilento talvez seja a melhor definição para o cinema de Rivette, desde Paris nous appartient (filmado em 1958 e estreado em 1961) até Jeanne la Pucelle (1995).
Quezilento tem ainda a “vantagem” de lembrar esquisito, esse esquisito adjetivo que em português se tornou pejorativo e em francês ou espanhol guardou o significado original de precioso, primoroso, raro. “Por que será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ela perde o jeito e fica assim esquisita?” interrogava-se Monteiro Lobato. Isto de palavras muda muito e tanto que, às voltas com dicionários, encontrei um esquisitíssimo verso de Gabriel Pereira de Castro (século XVIII) que resume mais ou menos o que passa em La belle noiseuse: “Para um retrete a leva em que detinha / A vista nas pinturas esquisitas / Da história que o pintor insigne tinha / Em viva e muda poesia escritas”. E em sentidos que já não se usam (como noiseuse) é para “um retrete” que o pintor leva o seu modelo e é “num retrete” que pinta “a pintura esquisita” que, depois, fechou para sempre num armário. E é chegada a altura de me deixar de tanta esquisitice (palavra puxa palavra), de deixar de chercher noise e de passar a outras quezílias.
La belle noiseuse é, na origem, uma livre adaptação do conto de Balzac Le chef d’oeuvre inconnu, história de um pintor que fechou a sete chaves a sua obra-prima. No filme, a ação situa-se em casa do pintor Frenhofer e da sua mulher Liz (Jane Birkin) quando recebem a visita do casal Marianne e Nicolas (David Bursztein). Há um jantar e uma aposta. Frenhofer pergunta a Marianne se esta aceita perder Nicolas por um quadro. Há uma série de quezílias nessa noite e depois desse convite. Mas antes de adormecer (cabeça tapada), Marianne diz a Nicolas “Boa noite, meu amor.” Et le lendemain matin...
E, no dia seguinte de manhã, começa a série de poses de Marianne, no “retrete” de Frenhofer, para o quadro que dá o título ao filme em que Marianne deve ser o modelo do nu feminino dele.
A primeira “sessão” é um dos exemplos supremos da quezilenta e esquisita arte de Rivette. Tempo, muito tempo. O tempo da mise en place do atelier e dos corpos nele. O tempo que demora até que ela abra o roupão e fique nua. Frenhofer não teve de lho dizer, lho pedir ou lho mandar. Os saltos no desconhecido dão-se muito depressa, mas depois de muito tempo.
Frenhofer cala-se. Marianne cala-se (ao princípio, nas primeiras sessões de pose, quase não dizem nada). Mas não se faz silêncio, mas não há silêncio. Há os ruídos quezilentos do lápis que risca, do carvão que raspa, do pincel que esfrega. Todos esses ruídos, tão quezilentoscomo uma unha que risca uma parede, dizem o indivisível, dizem que alguma coisa se pôs em marcha e não vai parar. São como o tique-taque de um relógio, medem o tempo, todo aquele tempo, dilatado e dilatador.
Ouve-se, de Stravinsky, a peça chamada Agon, que quer dizer combate. Mas os ruídos não são ruídos de combate, que ainda não existe, entre Frenhofer e seu modelo. São ruídos quezilentos, entre irritantes e exasperantes. E é a propósito deles (e porque talvez esteja consciente da quezília deles) que Frenhofer começa a falar da pintura e a dizer que, na origem dela, estão “la mer et la fôret mélées”, que é aliás uma citação de Matisse (são textos de Matisse e de Bram Van Velde que, livremente pirateados por Rivette, servem de base às longas digressões teóricas de Frenhofer sobre a pintura). “Le murmure de la fôret constant comme le bruit de la mer”. Dele nasce a pintura, ou o que está antes da pintura. Ou o que está antes da quezília entre Frenhofer e Marianne.
A quezília avança à medida que o quadro avança (horas, dias), à medida que a relação erótica ou a relação de pose se configuram. À medida que o nosso voyeurismo (em relação inversa ao do pintor) decresce, à medida que nos habituamos tanto à nudez de Marianne como ela própria se habitua. Ao princípio, esperamos para ver Marianne nua. E, se nunca nos esquecemos que estamos diante de uma mulher nua, completamente nua, o que progressivamente nos interessa não é o corpo mas o que está dentro do corpo. Mas reparamos. E reparamos que, nos dois primeiros dias, Marianne veste o roupão, no intervalo entre cada pose, e nos dois últimos deixa de o vestir, deixa-se ficar nua, como se a nudez fosse o seu estado natural, como se ela própria se esquecesse que estava nua. Nunca um filme nos deu tanto a ver de um corpo. Mas nunca um corpo foi tão visto como ocultação de outra coisa. “La possession c’est impossible. Faut tout lâcher. Et c’est ça que fait peur.”
Sempre os filmes de Rivette me fizeram medo, mas nunca nenhum como este. Porque nunca é a narrativa (sempre o aspecto mais trêmulo dos filmes de Rivette, à exceção de La religieuse) o que me interessa. Não me interessa saber se Marianne vai continuar a viver com Nicolas ou se Frenhofer vai continuar a viver com Liz. Não me interessa conhecer o que se passou antes do encontro dos casais, saber, por exemplo, porque é que, um dia, Marianne se quis atirar para debaixo do metrô ou que relação existiu entre Liz e o amigo do pintor, Porbus (Gilles Arbone). Mesmo a solução da quezília (a tal história da obra-prima desconhecida) não me apaixona por aí além.
O que me fascina é o duplo jogo pintura-cinema, é o tempo que vão durar as poses, é o tempo que leva a habituarmo-nos à nudez de Marianne (e a ela a habituar-se a estar nua diante de Frenhofer e diante da câmera e a Frenhofer a habituar-se a vê-la nua e a Rivette a habituar-se a vê-la nua). É o que é dito e o que não é dito. São os ruídos, a música, a floresta, o mar. É essa quezília que me fascina. Ficar agarrado a uma beleza e a um adjetivo: belle noiseuse. E a um traço (o que é o traço?). E a um plano (o que é um plano?). E não sentir mais tempo nenhum, nem sequer o das quatro horas de projeção que o filme dura.
O tema inicial do filme (em torno de uma fotografia) é o voyeurismo. Depois, começa o tema rivettiano da conspiração. Frenhofer esqueceu-se ou não se esqueceu do convite que fez a Nicolas e a Marianne? Liz sabe do convite e das razões dele? Por que é que o pintor demora tanto tempo a vir receber os seus convidados?
E, depois, há um plano surpreendente quando todos visitam o atelier. Já tinham visto as quimeras. Já Nicolas tinha dito: “Il se passe quelque chose de bizarre”. Marianne olha os quadros do mestre. Mas olha-os com um olhar que parece não ver nada, um olhar distraído, sem concentração. Erro da atriz? Erro da direção de atores? Saberemos que não quando, muito, muito mais tarde, Marianne diz a Frenhofer que, da primeira vez que entrou no atelier, estava a pensar noutra coisa. Pensava na capela do colégio dos seus tempos de adolescente. No espaço obscuro. E é entre essa memória sagrada e a relação sagrada que se vai estabelecer entre eles que existe aquezília. A quezília que exige sangue, o sangue de que se começa a falar nessa altura e que, muito depois, surgirá na tela do pintor.
Durante as primeiras sessões de pose, de cada vez que Frenhofer toca no corpo de Marianne, há quezília também. Porque o pintor jamais a toca eroticamente, mas clinicamente, como um médico pode tocar no corpo nu de uma doente. A sensação dominante é a do esforço físico dos dois, do cansaço dos dois. Mas quando - muito mais tarde - ela protesta contra essa relação e lhe pergunta afinal o que quer ele dela, Frenhofer responde-lhe: “C’est pas moi qui veut”. E berra-lhe que não quer saber nem de mamas nem de barriga, nem de pernas nem de rabo. Não é ele. É outrem. E percebemos a mais insólita das apostas de Rivette neste filme: a mão que vemos, a mão que pinta, não é a mão de Piccoli, mas a mão do pintor Bernard Dufour, o verdadeiro autor do quadro e dos quadros. É o tema das quimeras, metade Piccoli, metade Dufour? Em parte. Mas é sobretudo a idéia que nenhum corpo é uno, ou que corpo e eu não são idéias sobreponíveis. Pelas nossas mãos escrevem (ou pintam) outras mãos, como dizia Kafka. E no fim dessa quezília (a mais explosiva cena entre os dois), Marianne adormece. E Rivette manda-nos também descansar, acordar. Intervalo.
Na “segunda parte”, a narrativa condensa-se e adensa-se, sem que nunca saiamos do atelier. Marianne e Liz confundem-se. O tempo é tempo das memórias. Por isso, deixamos de ver o quadro que Frenhofer pinta cada vez mais velozmente. Em vez dele, um nu. De costas, e sem cabeça.
“Surpreendes-me sempre”, diz Liz ao marido, no almoço final. Rivette também me surpreendeu. E surpreendeu-me pensar que a cena do pintor e do modelo é a cena da filmagem do pintor e do modelo. Piccoli e Emmanuelle Béart nus para Rivette. Nus para nós. E é tão bonito ver personagens nus, assim. Nudez de um corpo de mulher. Nudez de um ato de criação. Quanto mais vemos, mais sabemos que nada vimos. E é essa a minha quezília com este filme. Marianne c’est moi, c’était moi. Mas Moi, quem é?
Texto extraído de: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-intrigante.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário