(Leitura sobre o 2° Episódio de "O Sangue de um Poeta" de Jean Cocteau, 1930)
Para os surrealistas a arte é o resultado de um voo irracional, no qual toda a razão e consciência se eclipsam para que os desejos e sonhos mais recônditos possam vir à tona. No processo criativo, sistematizado na ideia de escrita automática, o artista reduz-se a mero canal para a sua imaginação profunda e é surpreendido pelo resultado. Nesta via, o criador reencontra a si mesmo onde nunca soube que estivera como no ritual do divã psicanalítico.
Este "strip-tease da alma" (ao qual se refere Jean Cocteau na abertura de "O Testamento de Orfeu", seu último filme) não se opera sem consequências. E se, do outro lado, o artista encontrar coisas que não gostaria, se se vê através portas que não queria abertas? É exatamente neste ponto que se desenrola a tese de "O Sangue de um Poeta".
Na sequencia central do filme (2° Episódio: as paredes têm ouvidos) o poeta se vê impelido pela obra a mergulhar em si, através do espelho, e após atravessar um limbo fantasmagórico, aporta no Hotel Folies-Dramatiques onde flagrará seus segredos através dos buracos das fechaduras.
Na primeira porta, a esperança engajada de reverter a morte, de devolver a vida a um metonímico mexicano através da magia cinematográfica. Na seguinte, os mistérios celestiais do ópio, veredas que o diretor frequentava assiduamente. Nesta passagem veem-se apenas sombras projetadas no teto e quando o personagem tenta enxergar "algo mais", um olho chinês o impede, devolvendo a sua invasiva curiosidade.
Na terceira porta, a que diz "Lições de Voar", temos uma visão da infância: uma autoritária professora, com chicote na mão, adestra uma criança coberta de guizos a levitar rente à parede. Quando a criança atinge o teto, a professora a manda descer, o que aquela responde dando a língua e fazendo caretas. Aqui, os fundamentos da educação em nossa hipócrita sociedade (a alfabetização, por exemplo) são dinamitados pela simplicidade bem-humorada do símbolo.
A última porta é a que guarda o "perigo de morte". O corpo de uma hermafrodita se compõe abruptamente ao som do rufar de tambores. A visão da figura hipnótica, meio homem, meio mulher, meio real, meio ficção, revela ao artista uma ambiguidade, uma dubiedade (sexual, inclusive) que ele não admite enxergar em si. A consequência é, no plano interior, o suicídio e no exterior, a destruição à marteladas da estátua que o fez testemunha de seu próprio abismo.
Esta saída pela negação representa a morte do artista, seu enrijecimento. No fim do episódio, ele mesmo tornou-se estátua.
Miguel Haoni
(Cineclube Sesi, 2012)
(Cineclube Sesi, 2012)
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