terça-feira, 18 de setembro de 2012

Carne e Espírito

Texto sobre o filme “A Última Tentação de Cristo” (1987) de Martin Scorsese

Martin Scorsese sempre foi apegado aos princípios cristãos. Na infância recebeu uma educação católica e durante sua juventude preparou-se para o exercício de sacerdócio, que não chegou a cumprir em função de sua recém-iniciada carreira no cinema. De qualquer maneira as questões religiosas o acompanhariam por todo o seu trabalho, ganhando a primazia naquela que foi sua obra predileta e pela qual mais lutou: “A Última Tentação de Cristo”.
O livro de Nikos Kazantzakis, no qual o filme foi inspirado, propunha um problema ousado: como se operava a dualidade entre o Humano e o Divino em Jesus Cristo? Para compreender tal conflito o autor empreendeu um olhar sobre o homem comum que, confuso e inseguro, descobriu-se detentor da incumbência de ser Deus. Tal tratamento encantou Scorsese que, apesar de não ser um grande apreciador de literatura, entrou em contato com a obra durante as filmagens de “Touro Indomável” e reconheceu nela um tipo de abordagem que apreciava muito, decidindo assim adaptá-la para o cinema.
Um produtor perguntou por que motivo Scorsese gostaria de realizar “A Última Tentação...” ao que ele prontamente respondeu: para conhecer melhor Jesus! Este tipo de princípio é o que guiou a prática cinematográfica do diretor em seus principais filmes, uma espécie de interesse real pelos personagens, sem julgamentos nem preconceitos. Uma lição que o autor tomou dos grandes mestres do realismo cinematográfico.

Realista, portanto, foi sua abordagem das ações. Scorsese empreendeu, ainda na roteirização do filme, um processo de despoetização do texto bíblico. Interessava-lhe dar a cristo e aos Apóstolos um ar de gente real, de pessoas que nós poderíamos conhecer e nos identificar e a linguagem no filme precisava necessariamente condizer com tal proposta. Para tal o diretor e o roteirista Paul Schrader, utilizaram o sotaque das ruas de Nova York eliminando assim a linguagem rebuscada dos Evangelhos em função de uma proximidade com o público atual.
Observa-se, também, um estilo de direção mais cru que a média das obras de Scorsese. O diretor transformou o problema da redução no orçamento em vantagem, ao conseguir trazer a urgência documental que embalava os humores das filmagens para dentro das telas. A câmera na mão durante o Sermão da Montanha nos dá a dimensão humana da prática de Cristo e é um exemplo de realismo incomum aos filmes de temática religiosa. Até nos instantes em que o fantástico ganha o filme, ele nos é apresentado de maneira simples, sem grandes efeitos, como durante os milagres que o Messias opera.
Nestas cenas evidencia-se a leitura de Scorsese sobre o trabalho de mestres do cinema italiano. Na apresentação de João Batista e na chegada ao templo de Jerusalém, observamos uma mise-en-scène “estranha”, baseada em figuras mórbidas numa espécie de tapeçaria humana. Esta é a base de uma forma de encenação imortalizada por Federico Fellini em filmes como “Julieta dos Espíritos” e “Satyricon”. 
Julieta dos Espíritos, 1965


Satyricon, 1969
 Algumas mudanças de foco e profundidade de campo, como por exemplo, no plano em que o olho esquerdo de um árabe é valorizado, com Cristo ao fundo, enquanto ambos esperam ser atendidos por Maria Madalena nos remete ao jogo de câmera empreendido por um desprezado gênio do horror: Lucio Fulci. 
Zombie, 1979
Este diretor amadureceu os filmes de zumbis imortalizando os mortos-vivos como personagens clássicos do cinema. Estes personagens aparecem também no filme de Scorsese na cena em que Cristo exorciza os desgraçados que vivem em buracos e na própria ressureição de Lázaro.
Zombie, 1979
As maiores influências do filme, porém são a de Mario Bava e Píer Paolo Pasolini. Durante a “última tentação”, Cristo é ludibriado por Satanás que aparece sob a pele de uma garota de sete anos.
Este é o motivo central da obra-prima “Kill Baby Kill”, em que Bava joga com os símbolos de maldade e inocência de maneira única. O Cristo megalomaníaco e agressivo de Scorsese é uma referência direta ao Messias guerrilheiro de “O Evangelho Segundo São Mateus”, obra prima de Pasolini.
Kill Baby Kill, 1966

O Evangelho Segundo São Mateus, 1969
E as referências ao cinema italiano não acabam aí. Porém, o mais interessante é perceber como Scorsese alia tais influências a uma proposta díspar de crueza realista em uma obra que é ao mesmo tempo “Scorsese puro” e difere de tudo feito até então pelo diretor.

Miguel Haoni
(Associação Paraense de Jovens Críticos de Cinema – 2008)

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