(fragmento)
Kane é apreendido em fragmentos independentes; vive através de flashbacks, isto é, no passado, e neste processo o tempo assume importância capital; o herói é rompido no tempo. Esta dialética repete-se em inúmeras obras do cinema moderno.
Igualmente "fechados" são os personagens e objetos; "Rosebud", o trenó, a fortuna de Kane são elementos desconhecidos para nós. Thompson, por exemplo, não o vemos claramente, não há informações psicológicas sobre a sua pessoa; é quase sempre uma presença apagada, vista de costas, uma sombra que perscruta o mundo, talvez a visão da História. Ou então do cinema.
É verdade que tal tratamento corresponde ao ideal expressionista de transformar os seres e objetos em símbolos. Mas eles não são somente símbolos, há algo mais. A certa altura, "Rosebud", por exemplo, deixa de ser somente o signo da melancolia de Kane para tornar-se, também, um elemento de conflito, isto é, para materializar-se. Os significados são inúmeros (símbolo da pureza, da infância perdida, do amor e implicações maternas, da regressão, da felicidade etc.) mas o que é, finalmente, Rosebud? Também Welles não intenta decifrá-lo.
O princípio da película – fornecer múltiplos pontos de vista sobre uma mesma incógnita – aproxima-se muito daquele tom de entrevista evidenciado em diversas fitas modernas, chegando mesmo a instituir uma técnica cinematográfica de reportagem. Neste sentido, lembro algumas posições de câmera diante do décor: um entrevistador diante do entrevistado; a filmagem desdramatizada, em cenas longas, de um grupo de pessoas conversando, rindo, discutindo geralmente ao mesmo tempo (Welles não filma ações mas discussões, agravadas posteriormente em A Marca da Maldade e O Processo). Cidadão Kane antecipa a "estética da conversa fiada", característica do cinema moderno, a que se refere o crítico J. C. Ismael.
Outro crítico, o francês Jean Domarchi, declarou, num artigo intitulado "América", que "para Welles ver o mundo significa falar desse mundo". Não é à toa que Kane renuncia à fortuna por um minúsculo matutino nova-iorquino ou que o fio condutor da história seja um jornalista: a fita parece, de fato, uma imensa reportagem sobre uma grande personalidade. E como na reportagem, detém-se em perguntar: quem é Kane? "Rosebud"? O amor, a civilização americana? O dinheiro? Naturalmente as respostas não são dadas: "os grandes cineastas primam pela enunciação de problemas e não por sua resolução", dizia na ocasião o próprio Welles.
Outro fator de modernidade é a proximidade com o teatro. O cineasta aproveitou a sua carreira anterior, que movimentara fortemente Broadway e arredores, oferecendo inéditas experiências sonoras ao cinema de então. Neste sentido, nada mais teatral, no cinema, do que o "estilo radionovela" adotado em algumas seqüências, talvez em homenagem à sua carreira de rádio.
Esquematicamente, pode-se definir esta fita como uma híbrida junção entre reportagem e teatro... a serviço do cinema.
Rogério Sganzerla
(Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 1965)
(Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 1965)
Texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/58/olegadodekane.htm
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