sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Debatendo "Almas Perversas"

(fragmento)

I’m a failure, Kitty”
- Edward G. Robinson em Almas Perversas

Quando, após uma hora de projeção, Chris Cross – o protagonista de Almas Perversas vivido por Robinson – revela à sua paixão, com um certo sorriso acanhado, que é um fracasso, nada faz além de explicitar aquilo que a obra-prima de Lang demonstra desde o início e continuará a afirmar, progressivamente, pela meia-hora restante de filme. O olhar do diretor dirige-se àqueles que, por qualquer espécie de razão, decidem alcançar um lugar ao sol na sociedade de consumo, mesmo que a chuva seja um fim inevitável. Neste sentido, Almas Perversas é não apenas a tragédia de Chris, mas também de Kitty e Johnny, os três personagens centrais que em algum momento de suas vidas resolvem que, dentro das luzes de Nova Iorque, alguma deveria brilhar para eles. “I’m a failure, Kitty”, e a frase ecoa nas rugas tristes de Robinson, no rosto esbelto de Dan Dureya, na bela face de Joan Bennett, e o fracasso dos três transforma-se na tragédia de toda uma sociedade. Pois, se mencionar que Scarlet Street representa o fim do sonho americano é pouco diante do filme, ao mesmo tempo é inevitável pensar que não são muitos os que conseguiram, tão bem, desmascarar toda uma cultura.
Almas Perversas é a refilmagem americana de A Cadela, de Jean Renoir. Mais do que uma refilmagem, o filme representa, porém, uma afirmação da visão de mundo de cada diretor. Em A Cadela, os atos apaixonados de Michel Simon serviam para, cada vez mais, libertá-lo do mundo burguês ao qual estava submetido. Devido ao amor por uma vigarista, o protagonista desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo e alcança, enfim, a liberdade. No próprio prólogo do filme, bonecos questionam se A Cadela é uma comédia ou uma tragédia. No fim, a resposta tende mais para a primeira opção. Pois é deste ponto-de-partida que Lang sai para fazer seu remake. Em algum momento o diretor alemão deve ter olhado para o filme francês e questionado: “mas isto deveria ser uma tragédia!”. E assim nasce Almas Perversas, uma tragédia sim, sem sombra de dúvidas.
A mudança no local em que se passam os dois filmes serve como parâmetro para a mudança de gênero deles. Em Paris, desejo é poesia; em Nova Iorque, é dinheiro. Chris Cross desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo, mas, ao contrário de Simon, não alcança liberdade alguma. Lang vai, assim, além de Renoir. Os atos do protagonista agora não são contrários ao mundo onde vive, mas impulsionados por ele, pois esse mundo é regido pelo desejo, e desejo, repito, é capital. Desde o início, esta relação fica clara. Na primeira vez em que aparecem juntos, um longo plano mostra Chris, sentado, de costas, enquanto seu chefe, em pé, de frente para a tela, discursa. Pouco depois, Chris comenta que gostaria de ter alguma amante jovem e bonita apaixonada por ele, como tem seu chefe, e como nunca, em sua vida, teve. Quando se apaixona por Kitty, o desejo que sente é apenas fruto daquilo que gostaria de ser: seu chefe, portanto. Mas Lang não deixa dúvidas; a paixão custa caro, em qualquer sentido, e não é qualquer um que tem o direito de desejar. Se para o patrão a questão moral não se coloca (e seria um tanto hipócrita pensar que Chris tem mau destino porque “peca”, quando o chefe também o faz, e mais naturalmente) é porque ele tem dinheiro e poder para comprá-la, como afirma a cena em que assegura a liberdade de seu funcionário subornando os guardas com uma caixa de charutos cubanos.

(…)

Leonardo Levis
(Texto na íntegra http://www.contracampo.com.br/82/dvdalmasperversas.htm)

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