Luiz Carlos
Oliveira Jr.
Clint
Eastwood, na melhor tradição do cinema americano (talvez devêssemos dizer: do
cinema republicano), filma a ação e o conflito. Ele chega direto ao ponto, não
disfarça as questões essenciais dos filmes em pegadinhas de roteiro ou
construções rebuscadas. Sua miseenscène segue a frontalidade e a retidão dos
grandes homens de ação da história de Hollywood (Hawks, Dwan, Walsh, Huston,
Siegel). Clint faz um cinema calcado no confronto dramático e na ação física,
com um conflito moral como ponto culminante. O que dá a força de Menina de ouro
(MillionDollar Baby, 2004), por exemplo, não é apenas a maneira frontal com que
ele aborda um tema tão delicado como a eutanásia, mas principalmente o fato de
que tudo recai sobre a consciência de um indivíduo apanhado entre duas ações
possíveis e contraditórias. Um homem deve decidir que atitude tomar: eis a
situação dramática central do cinema de Eastwood. Como os personagens de John
Ford e Howard Hawks, o homem eastwoodiano age segundo uma moral que não lhe é
imposta de fora, mas que ele descobre trilhando o caminho da vida.
Isso destoa do mundo atual. Em tempos de politicamente correto, o homem é afastado das escolhas morais: os valores vêm pré-fabricados, não se tem a menor responsabilidade sobre eles. Face à normatização dos discursos e das práticas, nossa sociedade se engessa espiritualmente—só há a norma e o desrespeito à norma; a consciência não trabalha, aceitando o conforto que o establishment oferece em troca de passividade; as coisas são reduzidas a um vocabulário jurídico, técnico, frio; não sobra espaço para o amadurecimento moral, que obrigaria os homens a pensar sobre a natureza e o valor de seus atos e decisões. Algo da complexidade do homem se perdeu. Há uma tendência hoje, que se verifica em muitos filmes de jovens autores, a excluir do mundo a dimensão do conflito. O grande sonho conservador de um mundo sem contradições se realiza pouco a pouco.
Mas em Clint Eastwood não se vê nada disso. Seu mundo é tão conflituoso e repleto de contradições quanto o de Fritz Lang. Seus heróis não são incorruptíveis: bebem, têm ideias controversas e, ao agirem com teimosia e violência, colocam em risco a vida dos outros. Eastwood filma a zona de confusão e dubiedade de onde emerge a consciência moral, essa zona desconfortável em que se entrecruzam todas as dúvidas existenciais. Ele sabe que a natureza do homem é ambígua, e enxerga de frente essa ambiguidade, ou seja, ele não foge ao problema.
Em Coração de caçador (White Hunter Black Heart, 1990), filme em memória a John Huston, Clint Eastwood assume o papel do cineasta, do diretor, daquele que comanda o show, com toda a dose de responsabilidade que isso implica. Seu personagem, John Wilson, está na África para as filmagens de uma aventura hollywoodiana, mas insiste em atrasar a produção, pois está obcecado com a ideia de caçar um elefante. A caçada precisa acontecer, segundo ele, antes das filmagens, não pode ficar para depois. O roteirista, irritado e preocupado com o desejo insano de Wilson, discute com ele, dizendo que o filme está indo para o buraco por conta de sua obstinação em cometer um crime. Wilson, mantendo seu olhar sempre na mesma direção, como quem contempla uma ideia fixa, rebate o argumento do roteirista: não, matar um elefante não é um crime, é um pecado, é muito pior. Cometer um crime é estar disposto a responder perante um conjunto de leis forjado pelos homens. Cometer um pecado é estar disposto a prestar contas com o Criador, é rivalizar com as leis da Natureza. Wilson quer testar o limite do livre arbítrio humano, quer experimentar o último estágio de um sentimento que começa na infância, quando, ao jogar uma pedra no rio, vemos os círculos concêntricos que se formam na água e nos encantamos com a possibilidade de intervir no mundo exterior. Ao maravilhamento da infância, aconsciência adulta adiciona o perigo contido nessa ação. Esse perigo é o que move John Wilson.
Na caçada, por imprudência sua, morre o rapaz africano que trabalhava para ele como guia. Wilson volta para o set de filmagem, assiste ao choro dos africanos, senta em silêncio em sua cadeira de diretor, ergue o rosto e diz: “ação”. Sua consci- ência agora pesa uma tonelada—o filme pode então começar a ser rodado, não para expurgar essa culpa, mas para dialogar com ela de alguma forma. A responsabilidade sobre o ocorrido não pode ser transferida para nenhuma estrutura social, cultural ou psíquica que estaria sobredeterminando as atitudes do personagem. O homem, no universo eastwoodiano, é consciente de seus atos, e os assume.
Eastwood não filma heróis, anti-heróis ou vilões; ele filma homens. Seus personagens não são exemplos de virtude; eles agem como homens e às vezes falham. São comuns os personagens de Eastwood que vivem solitários, remoendo um trauma, uma perda ou mesmo um erro do passado. A solidão é a condição do homem eastwoodiano. Mas não é a solidão dos heróis de história em quadrinho, isolados por seus superpoderes, sua disciplina, sua missão de salvar o planeta; é a solidão do homem que se choca com o mundo e se isola em suas convicções, sua moral de caçador. Essa solidão implica o monólogo interno da consciência; é uma solidão para os fortes (diferente da “solidão povoada” da era das redes sociais—a solidão dos fracos).
Em Gran Torino (2008), Walt Kowalski, interpretado pelo próprio Eastwood, é um veterano da Guerra da Coreia que acaba de ficar viúvo e vive num bairro decadente rodeado de imigrantes. Na garagem, conserva um Gran Torino 1972, que o adolescente Thao, seu vizinho, tenta roubar pressionado pelos membros de uma gangue local. Walt se vê um estrangeiro em seu antigo bairro, agora predominado por (outros) estrangeiros.A periferia de Detroit em que o filme se passa é um pouco como o Velho Oeste atravessado por JoseyWales no filme de 1976, o quinto dirigido por Eastwood (quarto em que atuou/dirigiu): cenário de barbárie habitado por desenraizados de diversas raças e origens. Lá esse cenário estava relacionado ao limbo pós-guerra civil; aqui, às consequências últimas do modelo de nação triunfante nessa mesma guerra. Lá era o início do ciclo, aqui é o fim. A decadência econômica, portanto, faz uma cidade que já foi signo do progresso industrial remontar às origens caóticas de um contrato social que não se impõe senão às custas da violência. O pacto de convivência nasce da eliminação ou assimilação (quase nunca pacífica) dos outsiders, outlaws ou quaisquer outros agentes de contradições fundadoras. Mas tem um detalhe dessa história que Gran Torino explicita: todos são outsiders. A começar pelo polaco Kowalski. Não há um só personagem que seja um trueamerican, ou melhor, todos são trueamericans na medida em que revelam uma origem fora do território americano e, deste modo, reintegram o devir de um país de imigrantes.
Na cena mais pesada do filme, a adolescente Sue, que Walt em outra ocasião salvara do assédio de jovens delinquentes, chega em casa completamente arrebentada. O que indiretamente desencadeou tal agressão extrema foi uma atitude de Walt: ele “mandara recado” ao primo de Sue, líder da gangue Hmong que perturba a vizinhança, ordenando que a gangue parasse de importunar Thao (agora seu amigo e quase filho adotivo). Os gângsteres se vingaram estuprando e violentando Sue, irmã de Thao. A chegada dela após o ocorrido é um choque. Walt, que está lá e presencia esse momento, vai para casa, se tranca em um desesperador sentimento de culpa. Ele soca a porta de vidro de um armário, se autoflagela, sente sua existência como um erro da natureza. O espaço ao redor dele seafunda na mais densa escuridão do filme. O cenário se converte em espaço mental; o drama se relocaliza nessa espécie de câmara obscura da consciência. A sombra no rosto de Eastwood sempre existiu para que se pudesse olhar além dele, buscando algo que seu rosto esconde e, no entanto, quer confessar. Nessa cena de Gran Torino, Walt se entrega à escuridão porque ela nada mais é que a substância mesma de sua alma, a matéria de que é feita.
Isso destoa do mundo atual. Em tempos de politicamente correto, o homem é afastado das escolhas morais: os valores vêm pré-fabricados, não se tem a menor responsabilidade sobre eles. Face à normatização dos discursos e das práticas, nossa sociedade se engessa espiritualmente—só há a norma e o desrespeito à norma; a consciência não trabalha, aceitando o conforto que o establishment oferece em troca de passividade; as coisas são reduzidas a um vocabulário jurídico, técnico, frio; não sobra espaço para o amadurecimento moral, que obrigaria os homens a pensar sobre a natureza e o valor de seus atos e decisões. Algo da complexidade do homem se perdeu. Há uma tendência hoje, que se verifica em muitos filmes de jovens autores, a excluir do mundo a dimensão do conflito. O grande sonho conservador de um mundo sem contradições se realiza pouco a pouco.
Mas em Clint Eastwood não se vê nada disso. Seu mundo é tão conflituoso e repleto de contradições quanto o de Fritz Lang. Seus heróis não são incorruptíveis: bebem, têm ideias controversas e, ao agirem com teimosia e violência, colocam em risco a vida dos outros. Eastwood filma a zona de confusão e dubiedade de onde emerge a consciência moral, essa zona desconfortável em que se entrecruzam todas as dúvidas existenciais. Ele sabe que a natureza do homem é ambígua, e enxerga de frente essa ambiguidade, ou seja, ele não foge ao problema.
Em Coração de caçador (White Hunter Black Heart, 1990), filme em memória a John Huston, Clint Eastwood assume o papel do cineasta, do diretor, daquele que comanda o show, com toda a dose de responsabilidade que isso implica. Seu personagem, John Wilson, está na África para as filmagens de uma aventura hollywoodiana, mas insiste em atrasar a produção, pois está obcecado com a ideia de caçar um elefante. A caçada precisa acontecer, segundo ele, antes das filmagens, não pode ficar para depois. O roteirista, irritado e preocupado com o desejo insano de Wilson, discute com ele, dizendo que o filme está indo para o buraco por conta de sua obstinação em cometer um crime. Wilson, mantendo seu olhar sempre na mesma direção, como quem contempla uma ideia fixa, rebate o argumento do roteirista: não, matar um elefante não é um crime, é um pecado, é muito pior. Cometer um crime é estar disposto a responder perante um conjunto de leis forjado pelos homens. Cometer um pecado é estar disposto a prestar contas com o Criador, é rivalizar com as leis da Natureza. Wilson quer testar o limite do livre arbítrio humano, quer experimentar o último estágio de um sentimento que começa na infância, quando, ao jogar uma pedra no rio, vemos os círculos concêntricos que se formam na água e nos encantamos com a possibilidade de intervir no mundo exterior. Ao maravilhamento da infância, aconsciência adulta adiciona o perigo contido nessa ação. Esse perigo é o que move John Wilson.
Na caçada, por imprudência sua, morre o rapaz africano que trabalhava para ele como guia. Wilson volta para o set de filmagem, assiste ao choro dos africanos, senta em silêncio em sua cadeira de diretor, ergue o rosto e diz: “ação”. Sua consci- ência agora pesa uma tonelada—o filme pode então começar a ser rodado, não para expurgar essa culpa, mas para dialogar com ela de alguma forma. A responsabilidade sobre o ocorrido não pode ser transferida para nenhuma estrutura social, cultural ou psíquica que estaria sobredeterminando as atitudes do personagem. O homem, no universo eastwoodiano, é consciente de seus atos, e os assume.
Eastwood não filma heróis, anti-heróis ou vilões; ele filma homens. Seus personagens não são exemplos de virtude; eles agem como homens e às vezes falham. São comuns os personagens de Eastwood que vivem solitários, remoendo um trauma, uma perda ou mesmo um erro do passado. A solidão é a condição do homem eastwoodiano. Mas não é a solidão dos heróis de história em quadrinho, isolados por seus superpoderes, sua disciplina, sua missão de salvar o planeta; é a solidão do homem que se choca com o mundo e se isola em suas convicções, sua moral de caçador. Essa solidão implica o monólogo interno da consciência; é uma solidão para os fortes (diferente da “solidão povoada” da era das redes sociais—a solidão dos fracos).
Em Gran Torino (2008), Walt Kowalski, interpretado pelo próprio Eastwood, é um veterano da Guerra da Coreia que acaba de ficar viúvo e vive num bairro decadente rodeado de imigrantes. Na garagem, conserva um Gran Torino 1972, que o adolescente Thao, seu vizinho, tenta roubar pressionado pelos membros de uma gangue local. Walt se vê um estrangeiro em seu antigo bairro, agora predominado por (outros) estrangeiros.A periferia de Detroit em que o filme se passa é um pouco como o Velho Oeste atravessado por JoseyWales no filme de 1976, o quinto dirigido por Eastwood (quarto em que atuou/dirigiu): cenário de barbárie habitado por desenraizados de diversas raças e origens. Lá esse cenário estava relacionado ao limbo pós-guerra civil; aqui, às consequências últimas do modelo de nação triunfante nessa mesma guerra. Lá era o início do ciclo, aqui é o fim. A decadência econômica, portanto, faz uma cidade que já foi signo do progresso industrial remontar às origens caóticas de um contrato social que não se impõe senão às custas da violência. O pacto de convivência nasce da eliminação ou assimilação (quase nunca pacífica) dos outsiders, outlaws ou quaisquer outros agentes de contradições fundadoras. Mas tem um detalhe dessa história que Gran Torino explicita: todos são outsiders. A começar pelo polaco Kowalski. Não há um só personagem que seja um trueamerican, ou melhor, todos são trueamericans na medida em que revelam uma origem fora do território americano e, deste modo, reintegram o devir de um país de imigrantes.
Na cena mais pesada do filme, a adolescente Sue, que Walt em outra ocasião salvara do assédio de jovens delinquentes, chega em casa completamente arrebentada. O que indiretamente desencadeou tal agressão extrema foi uma atitude de Walt: ele “mandara recado” ao primo de Sue, líder da gangue Hmong que perturba a vizinhança, ordenando que a gangue parasse de importunar Thao (agora seu amigo e quase filho adotivo). Os gângsteres se vingaram estuprando e violentando Sue, irmã de Thao. A chegada dela após o ocorrido é um choque. Walt, que está lá e presencia esse momento, vai para casa, se tranca em um desesperador sentimento de culpa. Ele soca a porta de vidro de um armário, se autoflagela, sente sua existência como um erro da natureza. O espaço ao redor dele seafunda na mais densa escuridão do filme. O cenário se converte em espaço mental; o drama se relocaliza nessa espécie de câmara obscura da consciência. A sombra no rosto de Eastwood sempre existiu para que se pudesse olhar além dele, buscando algo que seu rosto esconde e, no entanto, quer confessar. Nessa cena de Gran Torino, Walt se entrega à escuridão porque ela nada mais é que a substância mesma de sua alma, a matéria de que é feita.
Autorretratos na sombra
Gran Torino é
o último capítulo de uma série de autorretratos que Eastwood realizou no
decorrer de sua carreira. Para marcar o fim dessa longa série, que começou nos
anos 1970, ele se filma dentro de um caixão, depois que seu personagem morre. A
imagem é decerto inquietante. Os autorretratos de Eastwood não costumam ser
nada indulgentes; são, antes, cenas nas quais ele confessa, mais que uma
virtude ou um vigor, uma reentrância sinistra da consciência e, sob a forma
física do envelhecimento, uma transformação irreversível do corpo.
Em Impacto fulminante (SuddenImpact, 1983), há aquela cena, ainda no início, quando “Dirty” Harry Callahan invade a festa de um magnata e lhe faz graves acusações diante de toda sua família, acabando por provocar o infarto do velho corrupto. Antes do ataque cardíaco, porém, com ar debochado, o adversário havia dito uma frase extraordinária: “Callahan é a única constante num universo em incessante mudança”. A frase do adversário de Callahan constata um modo de comportamento muito próprio da persona de Clint Eastwood; basta observar e perceber que uma mesma imagem perpassa seus filmes: de JoseyWales a Walt Kowalski, é possível encontrar o mesmo olhar e o mesmo semblante—ainda que não o mesmo rosto.
A cada filme, a cada reimpressão de sua persona, Clint se mostra o suporte de sua própria aparição, o corpo que receberáo fantasma de si mesmo (num verdadeiro curto-circuito da luz). Toda vez que se filma como ator, a tarefa de Clint é fazer retornar uma figura do passado; seu rosto é a superfície que hospeda desde sempre a mesma imagem. Essa superfície, no entanto, vem mudando de textura, ganhando rugas, criando vincos, salientando cicatrizes. A mudança não está na imagem projetada, portanto, mas antes no seu local de projeção. A partir disso, Clint desnuda seu rosto, transforma sua pele numa tela com memória, superfície que conserva traços, vestígios de outras viagens—ao contrário da tela de cinema que precisa começar uma nova sessão sem nenhuma reminiscência da sessão anterior; que precisa esquecer cada imagem que passa para dar lugar à imagem seguinte. Na pele do rosto de Clint, o cinema encontra uma tela viva, com as artérias pulsando na testa—um muro que se descasca enquanto assistimos à impassibilidade da imagem que a ele se lança. Rosto e imagem, aqui, começam descolados um do outro apenas para, no fim das contas, se reunirem numa só coisa, o rosto se vendo iluminado por sua própria imagem. A melhor forma de perceber a mudança é colocando-a ao lado de algo imutável—ou, no caso, sobrepor ambos. A dialética entre aquilo que se mantém—a imagem, o ícone—e aquilo que se modifica—a pele, o ator—é o modelo em cima do qual Clint redescobre seu rosto ao filmar-se envelhecendo.
A cena de Poder absoluto (Absolute Power, 1997) em que Eastwood se esconde atrás do espelho, imagem por si mesma evocativa—mais do que isso, um dispositivo realmente complexo—, preenche a dupla equação de sua miseenscène. Seu personagem vai parar naquela situação quando é surpreendido, enquanto praticava mais um de seus roubos artesanais, pela chegada do casal formado pelo presidente da república e sua amante, que mora naquela mansão. Ao ficar escondido na penumbra, vendo a cena sem ser visto (o vidro é transparentepara ele e reflexivo para quem está do outro lado), Clint soma à ação de alguém que pratica uma arte com as mãos—o roubo, mas também os desenhos que seu personagem gosta de fazer entre um “trabalho” e outro—aquela do observador imóvel, do voyeur que se recolhe ao anonimato para testemunhar uma cena (e não uma qualquer, mas sim uma de sexo e assassinato, os combustíveis-padrão do voyeurismo). Ele perfaz também uma tripla via de diretor-ator-espectador. Ao se esquivar à visão de quem está no filme, Clint se entrega exclusivamente à nossa visão: essa cena é uma confissão íntima, ele se esgueira ao silêncio e ao escuro daquele compartimento para nos sussurrar que ainda é o mesmo, embora tenha mudado. O mais impressionante da cena está no que ela revela sobre o rosto de Eastwood se esgarçando da escuridão, com melancolia, mas também com o vigor do ator/cineasta gigante que ele já se tornara naquele momento. Ele refaz ali, como já havia sido em Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992), seu autorretrato crepuscular. Uma máscara pétrea brota das trevas, quase em alto relevo, mais uma escultura do que uma imagem bidimensional. Ou uma gravura, como as que ele rabisca no início do filme.
Clint afronta e atualiza a assombração do perecimento do corpo: ele rejeita as inscrições simbólicas da passagem do tempo, aquilo que o homem, nos seus ritos e nas suas artes, no mais das vezes preferiu representar somente para manter à distância. Para muitos, o cinema é menos a escrita luminosa da vida do que a morte em marcha, o universo em procissão fúnebre. Ao se filmar no escuro, reduzido ao estado de espectro, Clint sugere a realidade fantasmática de um lugar de trabalho que pertence ao passado (o métier do artesão).
Na cena do principal confronto em Impacto fulminante, o rosto de Clint aparece em radical contraluz, suprimindo sua face. Ele esvazia sua imagem, tornando-se a própria escuridãopersonificada, o próprio nada de onde seu herói emerge para socorrer a sociedade de que ele mesmo se vê à margem. Cabe à nossa consciência e nossa memória restituir a face oculta—ou encarar o vazio como sua manifestação legítima. A tradição prescreve o oposto, isto é, que o fundo da imagem seja apagado para fazer ressair o mito em primeiro plano. Mas Clint prossegue em contraluz (autoiconoclasta?). Antes de uma reticência a ser recoberta por uma imagem, trata-se de uma reflexão no vácuo, pois quando imagem e suporte se dão as costas um para o outro, o resultado é o sumiço de ambos. Permanece a silhueta inconfundível. De onde vem essa dispersão súbita dos raios, essa antirreflexão ocorrida entre a imagem de Clint e seu rosto- -tela? Simplesmente da posição que Impacto fulminante ocupa em sua obra, a meio-caminho entre um crepúsculo e outro, entre o cowboy fantasma dos westerns e o velho rabugento dos anos 2000. Em 1983, é meia-noite no jardim de Clint Eastwood.
Em Impacto fulminante (SuddenImpact, 1983), há aquela cena, ainda no início, quando “Dirty” Harry Callahan invade a festa de um magnata e lhe faz graves acusações diante de toda sua família, acabando por provocar o infarto do velho corrupto. Antes do ataque cardíaco, porém, com ar debochado, o adversário havia dito uma frase extraordinária: “Callahan é a única constante num universo em incessante mudança”. A frase do adversário de Callahan constata um modo de comportamento muito próprio da persona de Clint Eastwood; basta observar e perceber que uma mesma imagem perpassa seus filmes: de JoseyWales a Walt Kowalski, é possível encontrar o mesmo olhar e o mesmo semblante—ainda que não o mesmo rosto.
A cada filme, a cada reimpressão de sua persona, Clint se mostra o suporte de sua própria aparição, o corpo que receberáo fantasma de si mesmo (num verdadeiro curto-circuito da luz). Toda vez que se filma como ator, a tarefa de Clint é fazer retornar uma figura do passado; seu rosto é a superfície que hospeda desde sempre a mesma imagem. Essa superfície, no entanto, vem mudando de textura, ganhando rugas, criando vincos, salientando cicatrizes. A mudança não está na imagem projetada, portanto, mas antes no seu local de projeção. A partir disso, Clint desnuda seu rosto, transforma sua pele numa tela com memória, superfície que conserva traços, vestígios de outras viagens—ao contrário da tela de cinema que precisa começar uma nova sessão sem nenhuma reminiscência da sessão anterior; que precisa esquecer cada imagem que passa para dar lugar à imagem seguinte. Na pele do rosto de Clint, o cinema encontra uma tela viva, com as artérias pulsando na testa—um muro que se descasca enquanto assistimos à impassibilidade da imagem que a ele se lança. Rosto e imagem, aqui, começam descolados um do outro apenas para, no fim das contas, se reunirem numa só coisa, o rosto se vendo iluminado por sua própria imagem. A melhor forma de perceber a mudança é colocando-a ao lado de algo imutável—ou, no caso, sobrepor ambos. A dialética entre aquilo que se mantém—a imagem, o ícone—e aquilo que se modifica—a pele, o ator—é o modelo em cima do qual Clint redescobre seu rosto ao filmar-se envelhecendo.
A cena de Poder absoluto (Absolute Power, 1997) em que Eastwood se esconde atrás do espelho, imagem por si mesma evocativa—mais do que isso, um dispositivo realmente complexo—, preenche a dupla equação de sua miseenscène. Seu personagem vai parar naquela situação quando é surpreendido, enquanto praticava mais um de seus roubos artesanais, pela chegada do casal formado pelo presidente da república e sua amante, que mora naquela mansão. Ao ficar escondido na penumbra, vendo a cena sem ser visto (o vidro é transparentepara ele e reflexivo para quem está do outro lado), Clint soma à ação de alguém que pratica uma arte com as mãos—o roubo, mas também os desenhos que seu personagem gosta de fazer entre um “trabalho” e outro—aquela do observador imóvel, do voyeur que se recolhe ao anonimato para testemunhar uma cena (e não uma qualquer, mas sim uma de sexo e assassinato, os combustíveis-padrão do voyeurismo). Ele perfaz também uma tripla via de diretor-ator-espectador. Ao se esquivar à visão de quem está no filme, Clint se entrega exclusivamente à nossa visão: essa cena é uma confissão íntima, ele se esgueira ao silêncio e ao escuro daquele compartimento para nos sussurrar que ainda é o mesmo, embora tenha mudado. O mais impressionante da cena está no que ela revela sobre o rosto de Eastwood se esgarçando da escuridão, com melancolia, mas também com o vigor do ator/cineasta gigante que ele já se tornara naquele momento. Ele refaz ali, como já havia sido em Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992), seu autorretrato crepuscular. Uma máscara pétrea brota das trevas, quase em alto relevo, mais uma escultura do que uma imagem bidimensional. Ou uma gravura, como as que ele rabisca no início do filme.
Clint afronta e atualiza a assombração do perecimento do corpo: ele rejeita as inscrições simbólicas da passagem do tempo, aquilo que o homem, nos seus ritos e nas suas artes, no mais das vezes preferiu representar somente para manter à distância. Para muitos, o cinema é menos a escrita luminosa da vida do que a morte em marcha, o universo em procissão fúnebre. Ao se filmar no escuro, reduzido ao estado de espectro, Clint sugere a realidade fantasmática de um lugar de trabalho que pertence ao passado (o métier do artesão).
Na cena do principal confronto em Impacto fulminante, o rosto de Clint aparece em radical contraluz, suprimindo sua face. Ele esvazia sua imagem, tornando-se a própria escuridãopersonificada, o próprio nada de onde seu herói emerge para socorrer a sociedade de que ele mesmo se vê à margem. Cabe à nossa consciência e nossa memória restituir a face oculta—ou encarar o vazio como sua manifestação legítima. A tradição prescreve o oposto, isto é, que o fundo da imagem seja apagado para fazer ressair o mito em primeiro plano. Mas Clint prossegue em contraluz (autoiconoclasta?). Antes de uma reticência a ser recoberta por uma imagem, trata-se de uma reflexão no vácuo, pois quando imagem e suporte se dão as costas um para o outro, o resultado é o sumiço de ambos. Permanece a silhueta inconfundível. De onde vem essa dispersão súbita dos raios, essa antirreflexão ocorrida entre a imagem de Clint e seu rosto- -tela? Simplesmente da posição que Impacto fulminante ocupa em sua obra, a meio-caminho entre um crepúsculo e outro, entre o cowboy fantasma dos westerns e o velho rabugento dos anos 2000. Em 1983, é meia-noite no jardim de Clint Eastwood.
Uma arte do presente
Uma das
primeiras pérolas do cineasta, o singelo e belíssimo Interlúdio de amor
(Breezy, 1973), conta o romance de uma jovem hippie com um homem mais velho. Os
anos 1970 aparecem lá de maneira bem interessante—década colorida, mas triste;
libertária, mas conservadora. O filme é romântico sem ser piegas, emotivo sem
ser over. Há uma grande maturidade do diretor na maneira como filma tanto os
hábitos da juventude quanto os preconceitos da geração anterior. Vemos a
amizade e o amor nascendo entre dois opostos.
Era o prenúncio de um cineasta que, como poucos, teria grande habilidade para filmar os bons sentimentos, os laços que se criam em meio às trevas, como se nota claramente em seus últimos filmes, Gran Torino, Invictus (2009) e Além da vida (Hereafter, 2010). Este terceiro possui uma importânciaparticular em sua obra, pois revela uma vontade de retratar o mundo de hoje num escopo abrangente, reunindo muitos de seus aspectos de uma só vez. Do alto de sua experiência, Eastwood se abre à realidade contemporânea com grande receptividade e generosidade e tenta compreender alguns de seus relatos marcantes. Lembra um pouco os afrescos coletivos de Otto Preminger nos anos 1960. Eastwood é um desses poucos artistas aptos a narrar as epopeias políticas e espirituais do nosso tempo.
Os “planos de solidão”, uma especialidade de Eastwood, estão mais pungentes do que nunca. Matt Damon comendo sozinho na cozinha de seu apartamento, o menino que perdeu o irmão gêmeo indo dormir sozinho no quarto, sempre com a escuridão dominando o ambiente… Duas almas miseráveis que depois se encontram para, da escuridão, tocar a luz. Nesse filme espiritualista e místico, a morte tem, todavia, um impacto material, uma presença concreta. O choque físico nas cenas dos acidentes é crucial, e nos ensina algo sobre o estar vivo, sobre as forças que agem à nossa volta o tempo todo.
Há algo de anônimo em Além da vida, Eastwood funcionando como um receptáculo das coisas ambientes. Qual foi a última vez que vimos um retrato tão variegado e palpável da realidade contemporânea? Um cineasta octogenário conseguiu fazer esse painel coletivo do mundo atual de uma forma que nenhum cineasta nascido dos anos 1960 para cá tem sido capaz de fazer. A caracterização dos personagens e de todo um conjunto de “cenas da vida moderna”—um curso de culinária, uma patricinha sem noção, um estivador vidente, uma âncora que escreve um livro de autoajuda, um acidente de carro, uma catástrofe natural—impressiona pela exatidão. São algumas das pessoas e dos fatos que constituem o mundo em que estamos vivendo neste momento. O filme demonstra que o cinema ainda pode ser um reflexo direto do mundo presente, pode dar formaao estofo sensível da realidade e fornecer um documento histó- rico de um dado momento de uma civilização.
O sentimento plástico contemporâneo casa melhor com ambiências virtuais e afecções subjetivas do que com a pura atenção à realidade circundante. Eastwood, no entanto, nos convida a refletir sobre o mundo que reencontraremos ao sair da sala. Ele não propõe um cinema de museu, de galeria, de ambientação em espaços deslocados da experiência cotidiana, vedados do mundo exterior. Além da vida é um olhar crítico sobre o mundo que conhecemos (como Lang e Premingersouberam fazer um dia). Eastwood se mantém na esteira de uma arte dedicada a registrar as angústias universais, sendo o meio privilegiado de comunicação com o presente. Ele leva adiante o cinema como possibilidade de capturar um momento da história coletiva dos homens. Por isso há algo de anônimo no filme: não interessa se é um filme de Clint Eastwood, interessa que é um filme que emociona qualquer pessoa que esteja vivendo no início do século xxi. O cineasta que não cansou de se filmar como homem anacrônico, como cowboy deslocado do presente (cf. Bronco Billy, 1980), mostra-se totalmente apto a registrar o espírito que atravessa o nosso tempo. Típica sabedoria de um cavaleiro solitário.
Era o prenúncio de um cineasta que, como poucos, teria grande habilidade para filmar os bons sentimentos, os laços que se criam em meio às trevas, como se nota claramente em seus últimos filmes, Gran Torino, Invictus (2009) e Além da vida (Hereafter, 2010). Este terceiro possui uma importânciaparticular em sua obra, pois revela uma vontade de retratar o mundo de hoje num escopo abrangente, reunindo muitos de seus aspectos de uma só vez. Do alto de sua experiência, Eastwood se abre à realidade contemporânea com grande receptividade e generosidade e tenta compreender alguns de seus relatos marcantes. Lembra um pouco os afrescos coletivos de Otto Preminger nos anos 1960. Eastwood é um desses poucos artistas aptos a narrar as epopeias políticas e espirituais do nosso tempo.
Os “planos de solidão”, uma especialidade de Eastwood, estão mais pungentes do que nunca. Matt Damon comendo sozinho na cozinha de seu apartamento, o menino que perdeu o irmão gêmeo indo dormir sozinho no quarto, sempre com a escuridão dominando o ambiente… Duas almas miseráveis que depois se encontram para, da escuridão, tocar a luz. Nesse filme espiritualista e místico, a morte tem, todavia, um impacto material, uma presença concreta. O choque físico nas cenas dos acidentes é crucial, e nos ensina algo sobre o estar vivo, sobre as forças que agem à nossa volta o tempo todo.
Há algo de anônimo em Além da vida, Eastwood funcionando como um receptáculo das coisas ambientes. Qual foi a última vez que vimos um retrato tão variegado e palpável da realidade contemporânea? Um cineasta octogenário conseguiu fazer esse painel coletivo do mundo atual de uma forma que nenhum cineasta nascido dos anos 1960 para cá tem sido capaz de fazer. A caracterização dos personagens e de todo um conjunto de “cenas da vida moderna”—um curso de culinária, uma patricinha sem noção, um estivador vidente, uma âncora que escreve um livro de autoajuda, um acidente de carro, uma catástrofe natural—impressiona pela exatidão. São algumas das pessoas e dos fatos que constituem o mundo em que estamos vivendo neste momento. O filme demonstra que o cinema ainda pode ser um reflexo direto do mundo presente, pode dar formaao estofo sensível da realidade e fornecer um documento histó- rico de um dado momento de uma civilização.
O sentimento plástico contemporâneo casa melhor com ambiências virtuais e afecções subjetivas do que com a pura atenção à realidade circundante. Eastwood, no entanto, nos convida a refletir sobre o mundo que reencontraremos ao sair da sala. Ele não propõe um cinema de museu, de galeria, de ambientação em espaços deslocados da experiência cotidiana, vedados do mundo exterior. Além da vida é um olhar crítico sobre o mundo que conhecemos (como Lang e Premingersouberam fazer um dia). Eastwood se mantém na esteira de uma arte dedicada a registrar as angústias universais, sendo o meio privilegiado de comunicação com o presente. Ele leva adiante o cinema como possibilidade de capturar um momento da história coletiva dos homens. Por isso há algo de anônimo no filme: não interessa se é um filme de Clint Eastwood, interessa que é um filme que emociona qualquer pessoa que esteja vivendo no início do século xxi. O cineasta que não cansou de se filmar como homem anacrônico, como cowboy deslocado do presente (cf. Bronco Billy, 1980), mostra-se totalmente apto a registrar o espírito que atravessa o nosso tempo. Típica sabedoria de um cavaleiro solitário.
Luiz Carlos
Oliveira Jr. é crítico e pesquisador, doutorando em cinema pela Universidade de
São Paulo.
Texto
publicado em MONASSA, Tatiana (org.). Clint Eastwood. São Paulo: CCBB, 2011
(pp. 98-108).