sábado, 31 de outubro de 2015

O BEM-ESTAR DO HOMEM, COMPORTAMENTO & A DIFUSÃO DO CONHECIMENTO


por Roberto Rossellini


A hora da verdade chegou para o homem. Algumas pessoas acreditam que os eventos conducentes ao fim da existência humana em nosso planeta já começaram. Exatamente o que acontecerá e quando é conjectura, mas homens que sabem mais a respeito dessas coisas do que a maioria de nós - aqueles que lidam cientificamente com o comportamento humano, a saúde mental ou a poluição do meio ambiente - concordam que a humanidade está lançando-se para a destruição em uma velocidade vertiginosa.
            O envenenamento progressivo da atmosfera, das águas e de todo o meio ambiente, embora real o suficiente, não chega a ser o problema principal. O maior perigo do homem brota do seu comportamento (o qual é causador da poluição). É bem verdade que o comportamento humano torna-se cada vez mais patológico, como apontariam alguns exemplos da vida cotidiana. A popularidade de uma psiquiatria superficial e diletante indica ao menos que estamos cientes das aberrações no nosso comportamento. Há o crescente conflito entre gerações, entre pai e filho. Além disso, os absurdos do nosso comportamento sexual.
            Tornou-se costumeiro passar a promover tudo isso como evidência da nova liberdade do homem e um retorno à inocência; na realidade, isto ilustra o grau em que nosso comportamento animal vem esmagando aquilo que nos torna humanos. O tráfego caótico nas ruas e a carnificina diária nas rodovias (a agressividade do homem está aproximando-se de um nível suicida!) são produtos diretos de um comportamento aberrante. E há ainda a conduta baseada em um mal entendido e obsoleto sistema econômico e jurídico, em orgulho, egoísmo e preconceito, todos os quais são de caráter anti-social. O paradoxo é que nós, que somos criaturas sociais, continuamos cometendo ações que parecem voluntariamente destinadas contra nossas próprias vidas e que não possuem nenhuma relação com a nossa inteligência. Afinal de contas, o intelecto, tendo a chance de manifestar-se por si só, é uma medida exata do que é autenticamente humano em nós. Como disse Bergson, a inteligência parece caracterizar-se por uma incompreensão natural da vida. O que escrevi até agora talvez possa parecer que augura um discurso moralizador, mas não se trata disso. Apenas citei alguns fatos reais que precisam ser analisados cientificamente em conjunção com aquilo que nós já sabemos. (Etimologicamente, “ciência” deriva do latim sciens, “saber”.) Por exemplo - e as razões para isso são muitas - a sociedade humana mudou profundamente nos últimos anos: a mortalidade infantil foi reduzida a um número muito baixo; o número de vidas salvas aumentou; antibióticos e vacinas restringem epidemias; as técnicas cirúrgicas têm se desenvolvido das de transplantes para as de reanimação. O resultado é que a média de vida está aumentando, e de tal modo que a sociedade de hoje inclui uma vasta gama de pessoas de todas as idades.
            No passado, quando o tempo de vida era mais curto, os idosos eram raros. Eles foram honrados, reverenciados e ouvidos pela autoridade proveniente de suas experiências. As palavras “senador” e “signore” vêm do latim senexsenis ou “velho”. Visto que a mortalidade infantil era alta, os homens que sobreviviam aos acasos da infância e da puberdade atiraram-se na vida, dando vazão a toda a sua vitalidade. Os homens sentiam contentamento por emergirem da idade mais precária de suas existências, mas também sabiam que, em poucos anos, estariam destinados a serem eliminados pela morte.
            Para entender como a sociedade mudou significantemente, basta lembrar que até 1.800 não havia mais que 800 milhões de pessoas na Terra e que, no século seguinte, esse número dobrou. No início do século XX, de fato, numerávamos um bilhão e 600 milhões. Em cerca de cinqüenta anos duplicamos novamente (3 bilhões e 200 milhões) e esse número será dobrado nos próximos 25 anos. Até o final deste século, vamos numerar mais de seis bilhões, e no ano de 2013, em torno de 13 bilhões!
            Revoluções em nosso modo de vida também foram aceleradas: levou 40.000 anos para chegarmos à Revolução Agrícola, menos de 10.000 para alcançarmos a Revolução Religiosa, outros 1.600 anos para chegarmos à Revolução Científica, e menos de 300 anos para entrarmos na Revolução Eletrônica. E o ritmo continua a acelerar. Há quinze anos a idéia de conquistar o espaço interplanetário parecia um assunto para a ficção científica; neste ano, um homem conduziu um veículo na lua. O futuro se fecha sobre nós com uma velocidade meteórica. Seus efeitos são traumáticos. No passado, o futuro parecia distante. O homem dispunha do luxo da profecia, e recebíamos alertas de gráficos antes que situações de emergência ocorressem. Hoje o futuro está diante de nós e ninguém se atreve a encará-lo. Entender isso ajuda a explicar aquilo que, de outro modo, pode parecer apenas um comportamento aberrante.
            Há, por exemplo, uma nova necessidade de selvageria. Barbas e cabelos compridos perderam o sentido que tiveram no século passado, quando eles eram símbolos de masculinidade, agressividade de espírito e romance. Os despenteados de hoje são justamente o contrário: são desnorteados e parecem prontos para desertarem a qualquer momento da humanidade. (Ainda mais expressivo deste “escapismo” é a tendência em direção ao unissex.) A disseminação de drogas que entorpecem e rebaixam o intelecto indica a extensão do nosso temor à parte mais humana do cérebro, a parte que nos faz pensar, que nos dá escolha e razoável capacidade de decisão, consciência e responsabilidade. São fatos que devem ser cuidadosamente avaliados. Precisamos olhar para os nossos padrões de comportamento aberrante com compreensão e compaixão, pois são alertas de que algo deve ser feito que nos redimirá e nos permitirá retornarmos ao ser humano; isto é, sermos conscientes, pessoas responsáveis e dotadas de julgamento.
            Outrora o homem sobreviveu a uma aventura igualmente assustadora e emocional. Penso em 50 ou 60 mil anos atrás quando nós, homo sapiens, aparecemos na Terra. O cérebro naquele momento, com um número de neurônios equivalente a 2³³, diferenciava-se nitidamente daquele do nosso progenitor Pithecanthropus erectus, cujo número de neurônios fosse talvez o equivalente a 2³². A passagem de 2³² para 2³³ representou uma vasta mudança, deixando o homem vítima de temores que se difundiram a partir de sua inteligência expandida. A nova e repentina consciência nos transformou em seres que, ao invés de viver de acordo com a Natureza, começou a viver de acordo consigo, de acordo com a sua própria vontade e fantasia. No início, contudo, o desnorteamento deve ter sido imenso. (A massa cinzenta, a parte de raciocínio de nosso cérebro, desenvolveu-se por último, envolvendo e dominando o encéfalo subcortical, a parte original do nosso cérebro, a parte mais animal que regula as funções fisiológicas, tropismos e instintos.)
            A invenção da linguagem deu ao homem recursos para romper com a vida de rebanho e encaminhar-se a uma vida social com suas novas formas de lidar com obstáculos e temores de dispersão. Sem defesas naturais, sem recursos ou uma maior proteção de pele, presas ou garras ou, ainda, uma aparelhagem especial de músculos, o que nós pobres bípedes poderíamos fazer para sobreviver em um ambiente hostil repleto de perigos os quais, agora, podíamos verificar e avaliar intelectualmente? Certamente devemos, naquele momento, ter ansiado um retorno à animalidade. Mas a inteligência nos salvou. Junto da linguagem veio a alegria de expressar capacidades criativas e senso de direção; isso nos ajudou a memorizar nossas experiências, a classificar, separar e sintetizar nossas observações e então transmiti-las. Ela certamente nos deu, como disse um escritor, a exultação de uma segunda criação. Isto acontecia há 50.000 anos, quando quase 4½ milhões de nós homo sapiens vivíamos nesta terra, divididos talvez em 150.000 pequenas comunidades de cerca de trinta pessoas cada. Através da inteligência, começamos a estabelecer a nossa dominação sobre a natureza, o que por sua vez iniciou a explosão demográfica. Com a humanidade concentrando-se em áreas adequadas para a agricultura, a comunicação entre as pessoas tornou-se cada vez mais difícil. Habilidades dialéticas diminuíram, e linguagem fervorosamente criativa converteu-se em eloqüência (ou “meios de persuasão”, como indica a etimologia da palavra). Há cerca de 5.000 anos atrás, quando 2 bilhões de homens estavam envolvidos na construção da Babilônia, um diálogo exato - comunicação entre cada um e todos - não era mais possível. A partir de então a retórica desenvolveu-se rapidamente. Os sofistas se multiplicaram e suas ferramentas mais persuasivas, o prazer e a emoção, deixaram grandes massas de homens perdidas e confusas.
            É um fato comum que o homem, como animal, precisa satisfazer sua fome, sede, cansaço e apetites sexuais; contudo, isso apenas não basta para nos sustentar. Para o homem, o equilíbrio depende acima de tudo da satisfação de necessidades especificamente humanas: estabilidade, correlação, transcendência e identidade. Fortíssima é a necessidade de um senso de orientação e devoção. Quando nos sentimos perdidos e quando, pela falta de fatos e conhecimento, somos incapazes de satisfazer as nossas necessidades humanas, construímos pequenas pseudo-realidades, pequenos mundos, conchas em que nos fechamos e que nos dão a ilusão de satisfação. Superstições, mitos, crenças e dogmas são abrigos alternativos aos quais nos agarramos desesperadamente.
            A educação da maneira que foi praticada até agora complica ainda mais as coisas. A raiz latina da palavra, educere, também significa “castrar” e certamente a educação começa pela castração, pela simples razão de que ela não consegue dar conta da singularidade de cada ser humano. Deixe-me explicar. Sabemos, e isso pode ser provado, que cada indivíduo, embora seja similar a outros homens, é distinto. Cada filho do mesmo casal é diferente dos seus irmãos e irmãs, ainda que cada um possua alguma semelhança com seus pais. Possíveis semelhanças equivalem ao número 10 elevado à potência de 2 bilhões e 400 milhões. (Para se ter uma idéia tímida do que isso significa, retenha que 10 à potência de 8 é um bilhão!). Assim, uma variedade infinita de indivíduos, cada um com suas próprias tendências e caprichos, qualidades específicas, talentos, lógica e gostos, resulta em uma contribuição contínua e essencial para a riqueza da inteligência humana, fato que a educação de massa, tal como é praticada, é forçada a ignorar. Vejam a situação como ela realmente é: um homem é mais intuitivo, outro mais matemático; um terceiro é um sonhador, um quarto é sólido com poucos caprichos; outro é cheio de imaginação; um sexto é astuto e outro cheio de humor; um oitavo tem um sentido dramático de vida, e assim por diante, em uma série de variantes infinitas até as formas das características faciais, mãos e pés, de tamanha variedade que cada um de nós consegue reconhecer um amigo mesmo estando em uma multidão.
            A educação também castra por escolher certos estilos de vida e certos modos de pensar que procura nos impor como modelos. Mas há ainda mais: os sistemas educacionais, conforme são orientados hoje em dia, preocupam-se em refazer o homem de ontem ao invés de construir o homem de amanhã. No passado esse sistema educacional pode ter respondido a certa lógica, porque a vida, as idéias e as civilizações permaneceram estacionárias por séculos. Numa sociedade estática o exemplo do homem de ontem era utilitário. Hoje, no entanto, a vida nos projeta para o futuro e temos que repensar e modificar nossos sistemas de ensino para nos prepararmos para aquilo que está por vir. A função da história seria, então, não uma celebração do passado, mas usá-lo como um guia para guiar-nos, e guiar-nos melhor, em direção ao futuro. Devemos ter conhecimento do que já foi feito, mas apenas com o intuito de irmos além. Devemos evitar a formação (como tem sido o caso até agora) de falsas orientações que nos dão conforto, não importa se impelidos pela vaidade, fraqueza ou covardia.
            O homem deve estar ciente de que a vida para seres inteligentes é a recorrência contínua do início de uma excitante aventura na qual devemos constantemente reorientar-nos. Neste contexto, deve-se dizer que a educação - que eu prefiro chamar de difusão do conhecimento por achar que é uma expressão mais útil - não deveria mais ser considerada uma preparação para se viver, mas um componente permanente da vida. (A própria UNESCO acabou por aceitar esta maneira de se pensar a questão.) A difusão do conhecimento deve envolver os adultos imediatamente, pois eles também devem estar preparados para reorientarem-se, já que é no ambiente familiar que o jovem aprende e cresce.
            A ironia é que cada tentativa de reorientação se vê frustrada pelos avanços enormes na comunicação cuja pretensa “informação” se faz presente opressivamente a cada minuto do nosso dia. É minha opinião que o mais grave problema de poluição do homem hoje vem da mídia. Considere a forma como eles nos envenenam e, ao mesmo tempo, afetam nosso comportamento. Os produtos que a mídia nos oferece são sempre os mesmos, mesmo quando pretendem ser diferentes na forma. Eles são sofisticados e retóricos; em outras palavras, divertidos e comoventes. Na maioria das vezes a mídia nos alimenta com simples estupidez, inútil para a mente, e ainda mais prejudicial por fornecer as bases da evasão, da deserção e do comportamento irresponsável. Freqüentemente, a mídia estimula nossas atitudes destrutivas ao alimentar o cinismo ou o pessimismo, produtos tóxicos porque idealizam e, por conseguinte, nutrem tanto a superficialidade como o falso intelectualismo. Isso me remete a uma declaração do Dr. Omar Moore: “Aos dois impulsos elementares que norteiam a nossa conduta - o medo e o desejo - adiciono um terceiro, o falso conhecimento.” Se isso for verdade, podemos entender o efeito paralisante da pseudo-intelectual, alegadamente “artística” produção da mídia.
            Até mesmo as “notícias” como nos são veiculadas criam danos. Quem trabalha, como eu, no campo do cinema e da televisão, sabe que em “noticiários” televisionados ou filmados, assim como na imprensa de informação, deve-se aderir a certas regras que se tornaram moda. A busca interminável pela novidade restringe o homem ao sensacionalismo, o momentâneo e o controverso. O que, no meio tempo, aconteceu com os noticiários, que deveriam nos permitir a correção dos nossos critérios atuais e nos reorientarmos? Toda a operação da “informação” está contaminada por uma doença crônica sutil: a propaganda. Porém, ainda pode haver uma importante reviravolta neste campo. Percebemos indícios aqui e ali: em determinados programas televisivos na Itália; alguns na França; e a criação da difusão pública nos Estados Unidos. Estes indícios são encorajadores, e há outros. Meu sonho, no entanto, é de que as vozes poderosas do rádio, da televisão, do cinema e da imprensa se tornassem veículos que, além de nos entreter, também difundissem o conhecimento; pela invenção de novas fórmulas eles poderiam servir ao reestabelecimento de um diálogo entre cada um e todos. Se um dia chegássemos nisso, como seria inebriante participarmos de um novo e vasto diálogo humano.
            Gostaria, neste momento, de dizer algumas palavras aos meus colegas. Expressei minhas opiniões sem intencionar qualquer acusação. Se aquilo que eu disse tiver valor crítico, talvez leve cada um a um exame de consciência ou auto-crítica (que são substancialmente a mesma coisa). Por isso, examinemos o problema e nos perguntemos: neste momento histórico de enorme confusão em que perdemos contato com uma galopante realidade, seriam os meios de informação, como agora utilizados, os principais veículos da infecção que agrava a patologia do nosso comportamento?

Texto retirado do site http://www.focorevistadecinema.com.br/jornalrossellini.htm
(Originalmente publicado na revista Film Culture nº 56-57, 1973, pp. 17-23. Traduzido por Felipe Medeiros) 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

No Mundo de 2020


(Soylent Green. Richard Fleischer. EUA. 1973.)

Nova Iorque, 2022. É o que nos informa a legenda de “Soylent Green”, mas o que ela quer situar e mostrar verdadeiramente é o fim dos fins de uns inquilinos que passaram algures numa via láctea e não souberam que fazer, o novo do novo que para aí remete, o inaceitável. Por isso, mais perto de um Robert Bresson ou de um John Carpenter, a luz que se fecha e mais evapora a cada segundo passado a pacto com a unificação a toda a força e violência do estilhaço e do fragmento que corrói, do que visionarismos ou criatividade da ficção dita cientifica ou da antecipação da humanidade e do high tech, essa que normalmente limpa os prémios de efeitos especiais e cataloga de freaks os autores envolvidos. Como chegámos a isto, o mundo era melhor lá para muito atrás, eu estive lá, posso prová-lo, tudo isto são interrogações e tristes afirmativas do mais velho ser que ainda paira e vai resistindo num mundo que mais do que perto do colapso está insuportavelmente possuído pela mais incrustada fealdade. Talvez por isso se chame Sol, e vá dando uns toques latinos para mais disso se recordar, e tenha sido interpretado por Edward G. Robinson, também no último papel da sua espantosa e combativa carreira. Porque ali ele é o único jovem ainda, com sangue na veia e sede de saber e comer bem comido. E é o que vai passando ao Thorn de Charlton Heston, amor, conhecimento, beleza, o sabor antes de todo o pré-fabricado, plástico, de todas as correntes de degustação asséptica, de limpeza corporal e moral e sexual. Vendo agora, estamos de facto muito perto. Valha Deus aos macrobióticos e aos saudáveis sem carne…
                                                             
Uma simples maçã que parece reluzir fora do seu esconderijo e exterminação, o espanto por um bife clandestino e com osso suculento há muito apagado do mapa, saladinha verde na proporção contrária aos raios queimados da panela de pressão que derreta as ruas, um refugado que envergonha as barrinhas que se tornaram único fruto, meia garrafa de Whiskey do divino gamada ao demo, uma colher rapada de morango desconhecido…um jantar a dois entre o velho e o seu pupilo já maduro que olha para o que já foi habitual e banal e ali é exotismo histórico…solenidade e ritual só a ver com o arroz malandrinho e os jaquinzinhos que João César Monteiro sacralizava e convertia na mais alta forma de sagrado nos seus sagrados banquetes. Música erudita também já esquartejada pela eletrônica e muitos sorrisos matriciais e sibilinos para um acto perfeitamente proibido, o de comer bem do que a terra oferece, a animalidade ou bestialidade orgulhosa da sua origem. O embalo e o instante perfeito ameaçados pelo fora e pelo bem geral que tudo calcou. Bem fundo naquela casa de madeira partilhada e forrada a material alienígena, livros, papel, material de escrita manual. Obviamente um último reduto a abater. Numa hipotética actualização realizada por um vencido da vida que continua a socar como a beber trocava-se a película pelo vídeo e pelos DCPs vigentes e era o mesmo efeito? Como é que no tempo da Maria Cachucha se aguentavam riscos na tela gigante demais, saltos daquelas coisas chamadas bobinas, quebras abruptas e mesmo a possibilidade de incêndio? Eram felizes aqueles seres?

Até à morte de Robinson, talvez a mais fabulosa e transcendentalmente terreste dos filmes de Richard Fleischer, grande cineasta da morte, da arte de morrer e do percurso derradeiro, onde todos os pixels esborratados da aparelhagem virtual que comeu peitos e coxas surgem devorados pelo que no auge da grande arte e do autorismo seria só bilhete-postal. Naquela redoma horrível e íntima o asseadinho vai ser vergado pelo onirismo, campos em flores e beleza etérea de pacotilha são o aquecimento e a salvação possível, ao ritmo da suavidade melodioso que hoje toca nos hipermercados. Momento em que o sensível e o crescendo boquiaberto rima com a abertura fotográfica de imagens congeladas da Magnum, que vão desde os sépias familiares da nossa descendência e contentamento, de Ford (John ou Henry) até Faulkner ou similitudes confluindo em fumos e lixo, fogo e máscaras do gás e do medo. Da sombra e do cinzel ao Photoshop. Arco temporal e desembocar lógico para os cadáveres que nos darão de comer, para os fornicamentos sem centelha, escravidão sem nome nem consciência. Se nos momentos de “The Boston Strangler” a “10 Rillington Place” a cabeça doente propagava ao meio, aqui, valha-nos Maria Santíssima, nem os mortos podem aspirar ao eterno descanso ou a outra ascensão qualquer. Tudo a mata-cavalos e no speed do áudio e do visual conforme? Precisamente não e tudo sequencialmente e agrupado, puzzle em visão conjunta, para apreciarmos limpidamente e em cristalina filigrana o êxito da expertise. E queima, queima, arde, como os mil graus que na rua se adivinham. E só faz bem, se esta genial obra ainda puder ser vista, será o melhor dos nossos remédios e das nossas rezas.

José Oliveira
(Texto original: 
http://raging-b.blogspot.com.br/2013/12/nova-iorque-2022.html)

Cineclube da Cinemateca: "Sócrates" de Roberto Rossellini

Neste sábado, dia 31, o Cineclube da Cinemateca exibe "Sócrates", encerrando o ciclo Roberto Rossellini. Sempre com entrada franca!
Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Sócrates" de Roberto Rossellini 

Esta cinebiografia apresenta os últimos dias de Sócrates, elucidando de maneira concisa e bastante clara alguns dos mais célebres diálogos platônicos, a exemplo da "Apologia" (discurso de defesa no julgamento), "Críton" (o diálogo sobre a prisão entre um discípulo e Sócrates) e "Fédon" (os últimos ensinamentos do mestre antes de tomar a cicuta).

Serviço:

31 de outubro
às 14h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cineclube Sesi: "No Mundo de 2020" de Richard Fleischer

Nesta quinta, dia 29, o Cineclube Sesi exibe "No Mundo de 2020" encerrando o ciclo Richard Fleischer. Em novembro é a vez deEric Rohmer Anos 80.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta:
"No Mundo de 2020" de Richard Fleischer

Em 2022 a face da Terra está bem modificada. Em Nova York há 40 milhões de habitantes e o efeito estufa aumentou muito a temperatura, deixando o calor ficar quase insuportável. No entanto os ricos vivem em condomínios de luxo, onde belas mulheres são parte da mobília. Mas a comida está escassa para todos, tanto que um vidro de geléia de morango custa 150 dólares. Neste contexto é assassinado um milionário, William R. Simonson (Joseph Cotten), que quando viu que seria morto não esboçou gesto nenhum para se defender. O detetive Robert Thorn (Charlton Heston) é designado para investigar o caso e constata algo realmente estarrecedor.

Serviço:
dia 29/10 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi
Produção: Atalante

sábado, 24 de outubro de 2015

GERTRUD

(Carl Theodor Dreyer, Dinamarca, 1964)

Quase uma década depois de A Palavra (Ordet), Dreyer faz aquele que seria seu derradeiro filme, o estonteante Gertrud. Um trabalho de depuração se observa em seus dois últimos filmes, uma purificação da forma e também do texto: só se fala e só se mostra o essencial. Na montagem não há nenhum contracampo: este se torna um local imaginário, um segundo compartimento que a mente do espectador constantemente acopla às imagens mostradas no filme, para ao fim se completar um drama em dupla camada que ressoa a substância mesma de Gertrud, e quem sabe de toda a obra de Dreyer: o material e o idealizável, a fé e a experiência concreta, o que é visto e o que só pode existir sob uma crença compartilhada (no caso, a assimilação de um fora-de-quadro que não precisa aparecer para ser real).

Primeiro momento mágico do filme: o plano-seqüência que começa com o olhar lançado ao espelho. Essa superfície que reflete o mundo em profundidade reenvia a Gertrud sua verdade mais implacável: a solidão que redireciona e torna secundária toda outra característica possível (a começar pela vaidade). É o começo de um plano em que muita coisa está para acontecer, e a câmera se move até com alguma ansiedade, quase afoita para nos mostrar o decorrer do filme (ou talvez ela mesma precise descobrir o que vai acontecer). Em Gertrud, Dreyer consegue de sua câmera um interessante comportamento duplo, pois a precisa marcação do plano divide espaço com um sentimento espontâneo do instante, ou uma espécie de sensibilidade pontual da cena, no sentido de fazer pequenos movimentos que são como respostas instintivas ao ritmo que os atores encontram durante a cena, diferentemente dos grandes travellings e das panorâmicas reveladoras que dão a espessura de um exaustivo ensaio prévio. Gertrud é a escrita livre de uma tragédia perfeitamente estudada. Do início ao término dos planos, a palavra e o pensamento devem se encontrar numa expressão comum.

Dreyer sugere à sua personagem-título uma saída bastante iluminada, mesmo que não pareça acolhedora de todo: uma saída para o branco, uma desaparição súbita no excesso de luz e de claridade. Toma-se o branco, de maneira geral, como mistura de todos os matizes – o Todo indistinto. Pois Dreyer ilustra através do branco um mergulho violento na idealidade que serve como fonte de toda a tragédia de sua personagem. É a busca evasiva por um amor ideal o que ele simboliza. O filme conflui para um retiro radical de Gertrud, uma vez fracassado seu projeto emocional grandioso porém irrealizável. Na cena em que Gertrud olha para o quadro atrás de si e reconhece exatamente a cena de um sonho que teve, o filme trai suas palavras, sua defesa do livre-arbítrio em oposição ao fatalismo de que seu pai fora um árduo defensor. A câmera faz um recuo ameaçador e enquadra em maior ângulo a imagem da mulher nua sendo devorada por lobos. A cena é análoga àquela do início, mas agora se trata de um outro tipo de espelho, mais adequado à figuração evocativa do sonho. A revelação, contudo, é a mesma.

Num flash-back iluminado por um branco alusivo e obsedante, Gertrud encontra junto ao desenho de seu perfil, feito por um amante do passado, as palavras que a devastam: "o amor de uma mulher e o trabalho de um homem são inimigos mortais". Entre o jovem pianista com que vive uma relação frívola e passageira, o marido de quem não gosta mais e o ex-amante que não corresponde a seus anseios, um mosaico incompleto se desenha sobre o coração de Gertrud. Ela está em contato com o mundo através de toda a superfície de seu ser, mas ainda assim o experimentando com uma grande parcela de desafecção. Ela diz coisas como: "Não há felicidade no amor", ou "Meu coração envelheceu". A forma narrativa busca um certo grau de desligamento físico na descrição de como ela se porta e se desloca no mundo. O olhar lasso de Gertrud é o signo mais forte e pregnante do filme, talvez seu único fato incontestável, sua única evidência verificável. Mas é um signo sem significação. A beleza de Gertrud – como de praxe na obra de Dreyer – é de uma tal ordem que não se descreve. À semelhança de A Palavra, o filme realiza uma condensação de diferentes níveis de entendimento do mundo. Mesmo o místico e o obscuro se sucedem na ordem natural das coisas. Dreyer invoca uma permutabilidade com o mundo, e uma presença nele, muito anterior à inteligência.

Segundo uma inscrição original e inesperada, os corpos do filme parecem representações espelhadas na antiga arte egípcia. Os movimentos das pessoas não dispensam uma organicidade, mas são também assustadoramente mecânicos. As partes da figura humana são dispostas de tal forma que se apresentam ou em projeção totalmente frontal, ou em puro perfil. Vale lembrar que a intenção artística egípcia era dirigida não à variável, mas à constante, não à simbolização do presente vital, mas à realização da eternidade intemporal (por isso, ao contrário dos gregos, reproduziam a forma e não a função orgânica do ser humano). Com essa inusitada aproximação, Dreyer põe às claras sua expectativa em relação às vidas mostradas no filme. Trata-se menos de simular uma vida do que de criar substrato material para outra vida: rosto semi-mumificado, Gertrud está praticamente à espera de reanimação, ou ao menos de uma recarga afetiva.

É só a uma personagem que dizem respeito a mise en scène e o drama do filme; os demais corpos são agentes de reforço, estão ali para construir ao lado de Gertrud seu sentimento de "a sós com o universo". Os personagens não se olham enquanto dialogam não por uma exigência da sociedade em que vivem, mas por uma premissa dramatúrgica colada à natureza da protagonista, que só enxerga um alhures, um mundo formado por tudo que não está ao seu alcance. Gertrud é portanto uma dramaturgia do inalcançável, ou daquilo que está ainda – e eternamente – por suceder. Já na velhice, visitada pelo amigo de longa data, Gertrud diz que vive como uma eremita, esquecida por todos, mas que precisa da solidão e da liberdade. Ao amor incompleto, a irredutível Gertrud prefere a reclusão. Tudo ou nada: o coração não trabalha com meias-medidas. Qual será seu mistério? Na seqüência final, Gertrud concorda com seu amigo e afirma: "O amor é tudo". Mas a solidão é o absoluto, o que prevalece.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

(Texto originalmente publicado em http://www.contracampo.com.br/78/dvdvhsgertrud.htm)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Cine FAP: "O Inesquecível", de Keisuke Kinoshita

O Cine FAP realiza em outubro mostra de filmes japoneses da era clássica: nesta segunda, dia 26, a exibição e discussão de O Inesquecível (também conhecido como Amor Imortal), do cineasta Keisuke Kinoshita. A mostra continua em novembro e dezembro com filmes japoneses modernos (em torno da nouvelle vague japonesa e do cinema de gênero dos anos 70 e 80 - a programação será divulgada em breve).



 Cine FAP apresenta: 
"O Inesquecível", de Keisuke Kinoshita
    
 
Heibei (Tatsuya Nakadai) é um jovem que retorna para casa após lutar na II Guerra, e força o seu casamento com Sadako (Hideko Takamine) após violentá-la e usar sua influência para convencer o pai da garota. A partir daí, o casal vive uma relação conflituosa, pois a Sadako era apaixonada por Takashi (Keiji Sada), um combatente japonês que Heibei odiava desde criança.


Serviço:

dia 26/10 (segunda)
às 19 hs
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA


Realização: Cine FAP
 

Apoio: Coletivo Atalante

Viagem fantástica pelo cinema de Richard Fleischer

De Luís Mendonça · Em Julho 8, 2014

Ela: I see you’re moving again. 
Ele: That’s right, tonight. 
Ela: Why do you move so often?
Ele: It’s a habit with me. Like you are. 
Ela: Say, these are good-looking shirts. Why do you cut the labels off?
Ele: The same reason I keep moving: I don’t like labels. (…)
Diálogo de Armored Car Robbery (Brigada Comercial, 1950)

Nesta última crónica Civic TV antes das férias, proponho uma viagem fantástica a dois filmes realizados por um dos maiores cineastas norte-americanos do seu tempo, de todos os tempos: Richard Fleischer. Digo “um dos maiores cineastas”, mas a propósito dele, cortesia da televisão portuguesa, vejo-me forçado a fazer girar a análise em torno de dois dos seus “filmes menores”. Uma menoridade que poderá ser importante, como dita a política dos autores, para desatarmos finalmente o nó à difícil – se não impossível – questão: quem é e onde está o cineasta Fleischer nos seus filmes? Em Fantastic Voyage (Viagem Fantástica, 1969), filme recriado anos mais tarde por Joe Dante no clássico Innerspace (O Micro-Herói, 1987), uma tripulação que percorre o interior do corpo de um diplomata, para desfazer em pedaços um coágulo que tem no cérebro, sai do seu estado de “menoridade” física à boleia de uma lágrima. No laboratório, e recolhendo a lágrima, um dos agentes da CIA localiza os heróicos tripulantes pelo microscópio. É agora por semelhante microscópio que procuramos encontrar Fleischer em Conan the Destroyer(Conan o Destruidor, 1984) e Red Sonja (Kalidor: A Lenda do Talismã, 1985), dois dos seus filmes mais mal amados que tiveram honras de sessão dupla na televisão portuguesa.

Concordo que são muitas as dificuldades, identificadas por João Palhares na sua crítica à magnum opus The New Centurions (Os Centuriões do Século XX, 1972), em “decifrar e rotular” ou “etiquetar” um cinema como o de Richard Fleischer: “se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil”, escreve o colega walshiano. Desde logo, como sintetiza Georges Sadoul no seu Dicionário dos Cineastas, Fleischer é um desses realizadores-operários que “fez tudo”, cujo principal “rótulo” ou “etiqueta” está na maneira, muito justa e rigorosa, como põe em cena cada história. Ele é um “mestre contador” para William Friedkin, provavelmente o realizador que mais directamente soube receber os seus ensinamentos, até porque também ele fez tudo ou quase. O mestre contador é um mestre contentor. É difícil traçar um perfil a alguém que durante mais de 40 anos realizou cerca de 60 filmes, a maior parte dos quais sob o tecto da fábrica clássica de Hollywood – era, conta Friedkin, um dos favoritos de Darryl Zanuck, o homem forte da Fox. Posto isto, não é acidental que tenha assinado The Boston Strangler (O Estrangulador de Boston, 1968) e feito das dificuldades de um inspector (Henry Fonda) em identificar um padrão na acção do assassino o primeiro locus de interesse na narrativa. Primeiro, estrangulou até à morte senhoras caucasianas de idade adiantada. Depois, surgem já cadáveres, nos seus apartamentos, jovens raparigas, uma delas negra. O padrão parecia ser, de igual modo, “impossível” de identificar – os ecrãs múltiplos, proeza visual impressiva, sugerem essa dispersão. O que unia, contudo, estes actos bárbaros entre si era o “modo”, mais concretamente o nó que o estrangulador dava aos farrapos que trituravam as goelas das várias vítimas. Não haja dúvidas de que nesta imagem da violência (a que, como desenvolverei, mais vem à superfície no seu cinema), Fleischer é um pouco como o estrangulador, entenda-se: o assassino e o “seu” filme. O que interessa isolar, para nos desfazermos dos “impossíveis” da sua coerente legibilidadeé a maneira como Fleischer “dá o nó” às suas histórias. Um metteur en scène puro, um dos mais estupidamente subvalorizados da sua geração e aquele que vale a pena “investigar” a sério, mesmo sabendo que, por exemplo, nunca se soube verdadeiramente quem, entre 1962 e 1964, matou 13 mulheres nos seus apartamentos em Boston.
Em Junho, porventura em mais um “sábado violento”, o canal Fox Movies ofereceu aos seus espectadores um double bill dedicado a Fleischer. Certo? Não, claro que não. Todos sabemos as razões das passagens das heroic fantasies Conan the Destroyer Red Sonja. A primeira é Arnold Schwarzenegger e a segunda é Arnold Schwarzenegger. Ou, se preferirem, a razão é apenas uma: Conan, o Bárbaro, herói criado por Robert Howard nos anos 30 e popularizado numa série BD nos anos 70. A sua visão fantasiosa da Idade Medieval, vagamente  aparentada com as histórias de magia e aventura de Merlin e do Rei Artur e do famosíssimo épico parabólico de J.R.R.Tolkien, The Lord of the Rings, tornou-se numa máquina de fazer dinheiro (sobretudo graças à edição em VHS) desde o lançamento do blockbuster de John Milius. Dino de Laurentiis, mítico produtor italiano de realizadores tão diferentes como Fellini e Cimino, tinha faro para este género de produções espectaculares e uma especial propensão para não dar nenhuma história por encerrada. Seguiram-se, então, Conan the Destroyer e, sequela não oficial deste, Red Sonja. Os dois filmes seriam realizados pelo amigo Richard Fleischer, com quem retomava uma colaboração que até então apenas redundara em fracassos comerciais e de crítica: Mandingo (1975) e Armityville 3-D(Amityville III – O Demónio, 1983). Em relação ao primeiro filme de Milius, as diferenças serão notórias e explicarão parte do fracasso popular das duas sequelas. O propósito destas sequelas passava por aligeirar o negrume do primeiro tomo e, aproximando-as do público infantil da banda desenhada, tornar as façanhas de Conan e companhia num bom naco de entretenimento para toda a família: o pai, a mãe, os filhos e o cão.
Conan the Destroyer funde fábula e comédia com a linguagem do western um pouco ao jeito,hélas!, de um Star Wars (Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança, 1975). É um filme de aventuras revolvido por uma mitologia fantástica que vai debitando mensagens sobre a vocação das personagens para o poder e para o heroísmo (do estilo may the force be with you). Temos a princesa Jehnna à procura do diamante mágico que fará dela rainha de todos os reinos e temos Conan, o intrépido guerreiro que a irá acompanhar nessa demanda a pedido da rainha Taramis, que em troca promete devolver à vida a sua amada Valeria. Uma recompensa que a capciosa Taramis não poderá, nem quererá, cumprir, já que o seu único interesse é despertar o temível Deus Dagoth, deitando mão sobre a jóia mágica e sacrificando a princesa. Esta sinopse algo apressada não trairá muito o que se passa em Conan the Destroyer, a saber: uma luta pelo poder. A mesma sinopse, com poucas correcções, e o mesmo tema valem para Red Sonja. De novo, aqui a aventura é narrada sob a forma de uma travessia por mundos fantásticos, habitados por seres míticos e regida por leis extrahumanas. Desta feita, o talismã do mal (my precious…) é roubado pela terrível rainha Gedren e é, numa corrida contra o tempo, que os nossos heróis, Red Sonja e Conan, procurarão travar os seus planos maquiavélicos de dominação mundial. Acresce aqui um subplot de vingança, que é arrumado em poucos minutos na sequência pré-genérico do filme: Sonja (interpretada pela belíssima Brigitte Nielsen) é acordada por um espírito da floresta – um daqueles que Apichatpong Weerasethakul trata por  tu – que não só muito convenientemente conta toda a sua história passada como, com um toque de espada, empresta poderes mágicos à nossa heroína. Em poucos planos, o espectador fica inteirado da backstory de Red Sonja, nomeadamente o facto de esta ter rejeitado tornar-se escrava da rainha Gedren, deixando no seu rosto a marca dessa recusa, e em resposta disso a implacável soberana ter mandado os seus homens violarem Sonja e matarem a sua família. Filme de espada e magia com uns pózinhos de revenge flick. O novo condimento não disfarça, contudo, a evidência de que Red Sonja é uma espécie de remake no feminino de Conan the Destroyer, um Johnny Guitar (1954) da heroic fantasy, com os mesmos vermelhos intensos a colorirem a rivalidade de morte entre duas gatas assanhadas.
Apesar do fracasso relativo dos dois filmes, confesso que me parecem hoje mais comestíveis, por causa de todo o seu lado camp descontraído, que o sisudo filme de Milius – essa sisudez “data-o” mais, entenda-se. Tenho mais uma confissão a fazer: apesar de ser uma obra menor na filmografia de Fleischer, que poucas “obras menores” terá, não penso que Red Sonja mereça tantas manifestações de embaraço. Para além do flop comercial que foi, este filme marca um ponto de viragem na carreira de Arnold, que, depois dele, larga em definitivo a personagem de Conan e os filmes de aventuras e magia. Para o protagonista de Junior (1994) este foi o pior filme da sua carreira, ao ponto de o ter usado como “papão” na educação dos filhos: “Eu digo-lhes, se me enervarem, que eles terão de assistir a Red Sonja dez vezes seguidas. Consequentemente, nenhum dos meus filhos me deu muitos problemas”. Com o tempo, filmes ingénuos e apressados [uma velocidade que virá da escola RKO, onde filmou primorosos films noirs como Armored Car Robbery e, um dos meus preferidos, The Narrow Margin (Forças Secretas, 1952)] vão ganhando um certo charme difícil de resistir. O protagonista de Junior bem que se pode ter precipitado. Afinal, o facto de o filme ser toda uma girl fight mitológica torna-o imediatamente excitante, se não para os filhos de Arnie, pelo menos, para este cronista cinéfilo. Depois, subitamente, ares de romance cor-de-rosa invadem personagens nos trajes (e no meio das paisagens) mais invulgares – veja-se o incrível último plano de Red Sonja, com o beijo eterno a ligar as duas action figures.
Em Conan the Destroyer, Conan não se havia reencontrado com a amada Valeria nem encontrado a rainha para o seu reino. Ora, Fleischer e De Laurentiis dão-lhe uma, numa bandeja, em Red Sonja. Ela é o lado feminino de Conan, até porque de modo muito literal lhe dá luta. A princesa virgem com cio do filme anterior, desde os primeiros instantes tomada por um coup de coeur pelos músculos e cabelo longo do Bárbaro, não era o seu tipo. Sonja, por sua vez, é uma mulher de armas, tão ou mais destemida que ele, mas tem um senão, ou melhor, tem ainda mais um ponto a seu favor: não gosta de homens. O trauma da violação mandada por Gedren será o principal campo de batalha para Conan, como em The Vikings (Os Vikings, 1958), o filme de Fleischer que justifica a sua escolha por De Laurentiis para prorrogar o franchise, é a disputa por uma mulher que está no centro da terrível luta fratricida. Para além desse “excesso romântico”, encontro nestes dois títulos pontes interessantes com o grande cinema de aventuras de Raoul Walsh [The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924)] e de Fritz Lang [a saga Die Spinnen(1919-1920) e, acima de tudo, o seu díptico indiano Der Tiger von Eschnapur (O Tigre de Eschnapur, 1959) e Da indische Grabmal (O Túmulo Índio, 1959)], ligando-os, em certo sentido, a estilização dramática, o ritmo da acção e a découpage (planos longos, largos e uma exploração habilidosa, mas como sempre discreta em Fleischer, do “espaço negativo” do quadro).
Falei atrás das dificuldades de encontrar um ponto de fuga no cinema de Fleischer. Este double bill televisivo não nos dá grandes pistas para, aqui, isolarmos o átomo fleischeriano, mas eu arriscaria dizer, tal como o faz Jacques Lourcelles no texto «Un Grand Hollywoodien», que há nele qualquer coisa da “sociologia desoladora” que instrui parte ou a melhor parte do seu cinema. A personagem de Gedren, por exemplo, é o símbolo de um conflito – a tal sacramental “imagem da violência” – que está presente em 20000 Under the Sea (Vinte Mil Léguas Submarinas, 1954) e no seu muito escondido contraponto político-sociológico, a obra-prima fleischeriana – neste caso, escandalosamente subvalorizada – intitulada Mandingo. Nestes dois filmes, o que une essa reflexão crua e cruel sobre as relações de poder é a personagem interpretada por James Mason. O famoso mestre dos mares, Nemo, exerce um poder totalitário que lhe é conferido pela sua carapaça metálica, não tão diferente quanto isso da de Fantastic Voyage, uma espécie de jóia de Dagoth – citando Conan the Destroyer – que lhe dá o domínio absoluto sobre toda a actividade marítima. Diz Nemo: “Think of it. On the surface there is hunger and fear. Men still exercise unjust laws. They fight, tear one another to pieces. A mere few feet beneath the waves their reign ceases, their evil drowns. Here on the ocean floor is the only independence. Here I am free!”. Adivinha-se nestas palavras como a liberdade de Nemo será aquela que o irá consumir até à pouco gloriosa queda.
Um aparte: ai do leitor que enjeitar a oportunidade de ver os minutos finais deSnowpiercer (2013), filme de Bong Joon-ho em estreia este mês, que conta com uma espécie de “Nemo on tracks” interpretado por Ed Harris, naquela que será uma das máscaras do ano, e que é uma distopia ecológica na linha do clássico de Fleischer Soylent Green (À Beira do Fim, 1973). Voltemos à desolação – mas chegámos mesmo a sair dela? – ou ao programa utópico de Nemo, que tem como inimigo principal os mercenários do alto-mar que transformam mercadorias em homens e homens em mercadorias. Esta é, conclui-se no ending… desolador, apenas e só o reverso do que ela própria combate. “What you fail to understand is the power of hate. It can fill the heart as surely as love can”, diz Nemo como que sabotando o sinal – a sina… – do seu heroísmo. O seu discurso e acção dirigem-se, como um torpedo em direcção ao alvo, contra os de Gedren ou os de Tamaris e, ao mesmo tempo, parecem confundir-se com eles. O inspector deThe Boston Strangler incarnado por Henry Fonda também se confrontará com esta “imagem rachada” da sua consciência, que proporciona um imoral “gozo de identificação” com a mente do assassino.
No seu filme de mestre, Violent Saturday (Sábado Trágico, 1955), encontramos uma igualmente perturbante e violenta correspondência, em toda a sua mundanidade, entre os assaltantes e as pessoas da comunidade que eles atacam. Mas o contra-campo mais preci(o)so de Nemo pode ser encontrado em Mandingo, o pai dos mais recentes “filmes da moda” (= incomparavelmente inferiores ao de Fleischer) sobre a escravatura negra no século XIX, 12 Years a Slave (12 Anos Escravo, 2013) Django Unchained (Django Libertado, 2012). No “original” de Fleischer damos de caras com o anti-Capitão Nemo; James Mason incarnando um fazendeiro esclavagista que “cura” o reumatismo pondo os pés em cima de criancinhas negras. Ele é o emblema da mais inumana forma de capitalismo: o da mercantilização e domesticação do homem pelo homem. É contra ela que Red Sonja se revolta, provocando a série de acontecimentos conducente ao duelo final com Greden, que acaba devorada pelas chamas da sua ganância. Mas a violência, por muito justificada, também é insana. Mas a violência, por muito injustificada, também é sana. Entre imagens da violência, entre a grandeza e a decadência, como diz Lourcelles, o cinema de Fleischer vai ganhando músculo e atingindo, como a nave miniaturizada de Fantastic Voyage, um desses lugares difíceis de penetrar e que estrangulam o (ser) humano. Mesmo que tudo isto esteja diluído num anódino entretenimento familiar, Conan Sonja servem como miniaturas dos grandes e complexos problemas levantados nos melhores filmes de Fleischer. Pode ser que ocorra à nossa televisão passá-los.
(Agradeço o apoio de Luiz Soares Júnior na localização do texto de Jacques Lourcelles.)
PS: 20 chibatadas nas costas deste redactor. Escrevo sobre o grande Richard Fleischer e não cito duas das suas obras-primas mais marcantes na minha vida: The Girl in the Red Velvet Swing (A Rapariga do Baloiço Vermelho, 1955) e 10 Rillington Place (Violador de Rillington, 1971). Se o primeiro vi na Cinemateca Portuguesa e aprendi a gostar ainda mais depois de ler a folha de João Bénard da Costa – que, em torno desse filme que tanto amara, dedicou um essencial texto sobre Fleischer em 2006, ano da sua morte -, o segundo enregelou-me uma madrugada inteira quando o apanhei no canal TCM, que vai deixando, cada mês/crónica que passa, mais e mais saudades.

Texto original: http://www.apaladewalsh.com/2014/07/viagem-fantastica-pelo-cinema-de-richard-fleischer/

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Cine FAP: "Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas", de Chantal Akerman

Em paralelo à mostra de cinema japonês, o Cine FAP realiza nesta sexta-feira, dia 23, uma sessão especial em homenagem à cineasta belga Chantal Akerman, com seu episódio-filme para a série de TV francesa Tous les garçons et les filles de leur âge...Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas.


Em 1968, uma garota de 15 anos resolve mudar a vida. Abandona a escola e vai ao cinema. Lá conhece Paul, um desertor do exército, com quem, depois do filme, sai pelas ruas de Bruxelas. Conversam sobre suas vidas, literatura e amor. Filme que faz parte da série francesa Tous les Garçons et les Filles de Leur Âge – um famoso projeto televisivo francês em que nove diretores foram convidados a refletir sobre sua adolescência e as músicas que foram importantes para eles.

Serviço:
dia 23/10 (sexta)
às 19 hs
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)

ENTRADA FRANCA


Realização: Cine FAP

 Apoio: Coletivo Atalante 

Cineclube do Celin: "Gertrud" de Carl Th. Dreyer

Nesta sexta-feira, dia 23, o Cineclube do Celin retoma suas atividades com o filme "Gertrud" de Carl Th. Dreyer. Sempre com entrada franca!

Cineclube do Celin apresenta: "Gertrud" de Carl Th. Dreyer

Esta é a história de Gertrud, a cantora de ópera, aristocrata, que se decide divorciar do marido, Gustav Kanning, advogado e futuro ministro, para poder amar Jansson Erland, um jovem músico. No cerne da sua decisão de divórcio está a sua vontade de viver um amor mais intenso e profundo, considerando que o marido põe a sua carreira à frente dela.

Serviço:
dia 23/10 (sexta)
às 19h30
No Anfi 400 da UFPR
(Rua General Carneiro, 480 - Reitoria, Edifício Dom Pedro I, 4° andar)
ENTRADA FRANCA
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terça-feira, 20 de outubro de 2015

Cineclube Sesi: "O Homem que Odiava as Mulheres" de Richard Fleischer

Nesta quinta, dia 22, o Cineclube Sesi exibe "O Homem que Odiava as Mulheres" dando sequência ao ciclo Richard Fleischer, que contará ainda com "No Mundo de 2020" (29/10).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta: 
"O Homem que Odiava as Mulheres" de Richard Fleischer

Boston está sendo atacada por um serial-killer que já matou treze mulheres. Até que a polícia captura Albert DeSalvo (Tony Curtis), um encanador que por não lembrar dos acontencimentos, dificulta as investigações da polícia. Baseado em fatos reais.

Serviço:
dia 22/10 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi
Produção: Atalante

sábado, 17 de outubro de 2015

Entrevista com Roberto Rossellini

(Realizada por Fereydoun Hoveyda e Jacques Rivette)                                                               
Sabe-se que de sua viagem à Índia, Rossellini trouxe dois tipos de filmagens; uma em 16mm fornece hoje o suporte de um programa de televisão, “Fiz uma bela viagem”. A outra, em35 mm, estava reservada a um longa-metragem intitulado provisoriamente Índia 58. Nem a montagem nem a sonorização estão totalmente terminadas. Mas, cedendo à nossa impaciência, Rossellini convidou a equipe do Cahiers para assistir à projeção de uma cópia de trabalho.Foi o documentário para a TV que você rodou primeiro?
                Sim, para mim, esta foi a preparação do filme, a possibilidade de me aproximar da Índia. Procurei primeiro observar, fazer uma simples reportagem, sem tomar nenhum partido, sem mesmo a intenção de chegar a uma forma cinematográfica particular. No filme, pelo contrário, a matéria é dramaticamente elaborada. O que tentei exprimir aqui foi o sentimento que me proporcionou a Índia, o calor interior das pessoas de lá. Tentei, se posso dizer isso sem cair no ridículo, transmitir poeticamente minhas sensações de repórter.

A natureza na cidade
Foi por isto que você suprimiu no filme todo sketch que teria relação com as cidades?
               
Sim e não. Eu tinha concebido um número muito maior de episódios, e filmei o que pude. Eu tive de fazer uma escolha, me limitar aos aspectos mais particulares e que me permitissem ir mais a fundo no conhecimento da Índia. Os episódios que me pareciam um pouco mais explicativos ou técnicos foram abandonados.

 Por que os animais possuem no filme uma tamanha importância?
               
Porque de fato eles têm importância na Índia. O que me chocou ao voltar foi a total ausência da natureza em nosso mundo. Lá, o homem está sempre em contato com a natureza. É muito importante isto: mesmo um homem muito moderno, como é o indiano, vive em contato com a natureza precisamente todo o tempo. Esta presença da natureza você observa até mesmo nas cidades. Inútil ir até o campo; a natureza está na cidade. Aqui, a natureza não existe mais. Mesmo o campo não é mais a natureza. As árvores do Bois de Boulogne são árvores, é certo, mas não são a natureza.
Foi, portanto, uma coisa pensada você começar por uma sequência documentária sobre as cidades e acabar pela natureza?
               
Sim. Começo pelo documentário, porque é desta realidade que eu parto para penetrar no interior das coisas. Se tivesse filmado todos os episódios que tinha em mente, teria dado um filme muito longo. Felizmente, encontrei dificuldades de todo tipo: clima, além das dis tâncias. Um deslocamento levava quinze dias. O material estragava. Com o calor, a película grudava, e era preciso passarmos de uma câmara de ar-condicionado à outra.

A viúva, a reforma agrária e o silêncio
Que critérios usou na eliminação de certos sketches?
               
Comecei por aqueles que considerava mais urgentes, aqueles sobre os quais eu não podia ter dúvida, para ser liberado em seguida. E eliminei aqueles que poderiam ser considerados mais técnicos, mais explicativos, menos – não sei, me irrita usar esta palavra – poéticos. Há três episódios que pus deliberadamente de lado. Primeiro, uma história onde deviam se opor a Índia moderna e a antiga. Tratava-se da viúva de um homem que havia montado um vasto empreendimento industrial. Ela tinha sido infeliz a vida inteira, pois seu marido só se interessava pela fábrica. Mas quando ele morreu, o irmão dele quis vender a fábrica e “dar no pé”. A viúva se recusa. Era uma espécie de traição para com seu marido. Ela sacrifica suas jóias e tudo o que possui para comprar a parte do cunhado e continuar com a fábrica, mesmo sabendo que está tudo perdido de antemão, que vai à falência. Mesmo assim, ela o faz, porque é um signo, uma prova de fidelidade. Se suprimi este episódio é porque ele me pareceu menos puramente indiano que os outros. Poderia se passar em qualquer país – e no entanto, a importância da família é algo bem indiano.
                O segundo episódio mostrava “community projects”, estes projetos do Estado cujo fim era o desenvolvimento das cidades, a reforma da agricultura, etc. É uma das coisas mais curiosas da Índia: mandam para as cidades pessoas com conhecimento profundo da agricultura, mas não para darem uma lição aos outros, e sim como servidores, para estarem à disposição das cidades, caso elas precisem deles. Desta forma, obtiveram resultados extraordinários. É muito interessante, mas tive de renunciar a este episódio porque ele era mais importante politicamente do que poeticamente, e o sketch da barragem já exprimia suficientemente a mesma ideia.               
               
Quanto ao terceiro episódio, era uma espécie de fábula; ele se passava numa cidade de montanha, onde dois ou três ermitões tinham se retirado para viver uma vida de contemplação. Lá reinava, face às imensas montanhas, um silêncio extraordinário. E subitamente, vem um ruído. Caminhões passam a percorrer a estrada que atravessava a cidade. Cem quilômetros adiante começaram a construir uma barragem ou coisa assim. Os dois ou três ermitões querem partir. Mas a cidade, que tirava certos benefícios do progresso (estava repleta de pequenos artesãos, de tecelões que ganhavam mais vendendo coca-cola ou gasolina), para conservar os eremitas, decide construir um desvio... E aí era necessário reconstituir o silêncio, e quando perdemos o sentido do silêncio, sua reconstituição é uma coisa complicada. As portas, as janelas, as menores coisas, tudo isto fazia barulho. A reconquista do silêncio devia ser um processo longo e paciente. Era divertido – não é? –, mas um pouco “fabricado” demais. Tratava-se, em suma, de um apólogo, uma fábula. E em meu filme não me interessava fazer apólogos.

A contemporaneidade da História
Todos os seus sketches, no entanto, possuem uma dimensão de fábula.
               
Talvez, mas são, antes de tudo, fatos reais que filmei enquanto tais. Não é coisa pra se tirar uma moral. São fatos que estão lá, e que explicam o que são o homem, os homens, a natureza, etc. O sketch que contei agora comportava uma moral, e isso me incomodava.

A ideia do ruído se reencontra na história do tigre, onde a chegada de uma central elétrica rompe a harmonia da natureza.
               
Sim, mas o episódio do tigre possui a vantagem de ser extremamente mais simples. Aqui, temos realmente o homem e a natureza. O equilíbrio da natureza se rompe, portanto, alguma coisa está chegando. O outro sketch era um pouco mais elaborado: ele saía da linha geral de Índia 58.
               
Na Índia, saibam vocês, a natureza é uma força tão evidente, tão poderosamente evidente! Eu tentei desfazer a lenda e olhar as coisas em sua realidade. Por exemplo: o amestrador de macacos morre porque há uma tempestade de calor. É um fato meteorológico: ele é dotado de um tal poder que exerce uma influência sobre os homens, se torna dramático. Eu fui para lá com a firme intenção de evitar os lugares-comuns: dentre estes lugares-comuns, há os tigres, os elefantes, as cobras, etc. Mas estes lugares- comuns nascem sempre de uma realidade. Portanto, é melhor olhar para esta realidade tal e qual ela se mostra. E o que – como disse nos programas da televisão – é marcante da Índia é a contemporaneidade da História. Estamos mergulhados lá em uma humanidade totalmente primitiva e, ao mesmo tempo, nos tempos modernos. As etapas de todos os períodos históricos estão lá, sob nossos olhos, absolutamente no mesmo plano. Eis aí, me parece, o aspecto mais marcante da Índia.
Você não tinha em mente ainda um outro episódio: a história de uma mulher, chefe de um bando de salteadores?
               
Esta ideia eu abandonei em seguida, porque me veio à cabeça na Europa, lendo os jornais. Era um truque para um certo tipo de imprensa sensacionalista. Não havia nada a tirar daí.

E esta história de um homem muito rico que decide abandonar todos os seus bens e partir pela estrada como mendigo?
               
Não era um sketch propriamente; eu sabia que este tipo de coisa acontece com frequência na Índia, mas não passava de uma ideia geral: não construí nada em cima disso.

A Índia lhe pareceu muito diferente do que pensava?
               
Sim, a Índia é profundamente diferente. Quero dizer que, superficialmente, o seu aspecto se parece muito com o que vocês imaginavam; mas, profundamente, não. Por exemplo, fala-se muito do misticismo indiano, e é um fato que os indianos são místicos, ou seja, dão uma grande importância à vida metafísica. Mas é um fato também que eles são extremamente realistas, extremamente concretos. Eles possuem um espírito muito cartesiano e são ao mesmo tempo materialistas.

A impressão de um mundo
E por que as Índias? Pensava nisso há muito tempo?
               
Se pensei nas Índias, foi porque este país ganhou recentemente uma grande luta através de meios muito modestos. A não-violência, simples ponto de partida, se tornou, em seguida, um instrumento extremamente efetivo. Claro, a atitude dos trabalhistas ingleses conta muito nesta vitória, mas é um fato não menos certo que a luta lá foi conduzida segundo métodos totalmente não-usuais para nós. Nós, pelo contrário, sendo absolutamente intolerantes como somos, temos sempre de afirmar nossos desejos ou sonhos na porrada, porque não encontramos o tempo de deixar os outros serem persuadidos, aceitos, ou se aproximarem de forma racional, etc. Foi isto, antes de tudo, que me atraiu nas Índias.
Por que, neste caso, não construiu uma história única e se limitou a aspectos particulares?
               
Sim, estes aspectos são particulares, fragmentários, mas a Índia é algo de tão complexo que, se você não a tocar um pouco por aqui, um pouco ali – sob um conjunto de aparências que são, aliás, muito diferentes entre si –, você não vai conseguir tirar nada. Construir uma história única seria construir alguma coisa muito falsa. Não acham?
Em suma, você retoma o espírito de Paisá. Índia marcaria, portanto, uma ruptura com os filmes precedentes?      
               
Quando você prossegue numa determinada direção, você perde a curiosidade, o entusiasmo. Você se liga a outras coisas. No final das contas, nunca deixei de ir atrás do homem, do indivíduo. Depois, alguns de meus últimos filmes eram muito autobiográficos. Eram apólogos para mim mesmo – se não compreendi isso no momento em que os fiz, hoje ao menos penso compreendê-lo. Depois, senti necessidade de buscar novas fontes, me renovar, já que senti que tinha perdido o ponto. Encontrei estas fontes na Índia. O que eu queria saber era se, ao ver o filme – com abstração das anedotas –, as pessoas teriam a sensação de ver um mundo ou não. Tentei antes de tudo dar esta impressão. Pouco importa o método com o qual tentei atingir este fim. Este fim é a única coisa que conta, e cabe a vocês, ao público julgar se era algo urgente a necessidade de mostrar este mundo ou não. Em Viagem à Itália, era necessário jogar com uma certa atmosfera. O importante não era tanto a descoberta de um país, mas sua influência dramática sobre dois personagens. Era o terceiro elemento: de um lado um casal, do outro a Itália. Em Índia, o dado básico não está em um conflito. É importante que o espectador saia do filme com a impressão semelhante à minha.

Porque colocou o episódio do macaco por último? É o mais dramático?
                É difícil de dizer, porque tudo se funda sobre os sentimentos. Creio que neste momento os sentimentos se tornaram não apenas mais sutis como também mais vívi
dos, mais ardentes. Não coloquei este episódio no final do filme porque era o mais dramático, mas porque figura a perfeita regra da natureza. Os abutres esperam, mas eles não vão comer o homem, porque ele não está morto. É preciso esperar pelo decreto da morte. É preciso que seja, de qualquer maneira, legalizada a morte do homem para que os abutres – que são parte da natureza – se mexam e venham cumprir sua função de natureza. Isto já é algo extraordinário. Então, com seu mestre morto, o pobre macaco – que não é mais um macaco, mas também não é um homem – experimenta a necessidade de ir em busca ao mesmo tempo dos homens e dos macacos, de voltar para trás e ir adiante. Eis aí o drama que é o de todos nós. É a luta na qual estamos empenhados.
Sentimos durante a projeção do filme a intenção de reduzir a história e a interpretação ao essencial. Trata-se de uma tomada de posição (parti pris)?
               
Sim, e até mesmo mais que uma tomada de posição. Um esforço contínuo. Em seu artigo sobre Viagem a Itália, Rivette me comparou a Matisse. Isto me marcou muito, e posso dizer hoje que sou consciente deste despojamento. Despojamento que representa para mim um novo esforço, mas, quando consigo atingi-lo, é uma alegria sem limites.

A montagem me incomoda
Em sua entrevista com Renoir e Bazin, publicada pela France Observateur, você falou mal da montagem.
               
Sim, a montagem não é mais essencial. As coisas estão aí – e sobretudo neste filme –, por que manipulá-las? As pessoas que fazem cinema acreditam que ele é sempre um pouco como um milagre. Vai-se a uma projeção e vê-se alguma coisa numa tela, é espantoso. E aí compreendemos um texto dito por atores. É ainda mais espantoso. O procedimento técnico sempre suscita admiração: a mim não, mas a muita gente. Bem, a mesma coisa com a montagem. A montagem é um pouco como o chapéu do mágico. Coloca-se lá dentro todas estas técnicas, aí se tira um pombo, um buquê de flores, uma garrafa d’água... mexe-se um pouco, retira-se de novo um pombo, uma garrafa d’água, etc... A montagem, pelo menos entendida desta forma, é algo que me incomoda e acredito que não seja mais necessária. Quero dizer a montagem em seu sentido clássico, aquela que se aprende como uma arte na IDHEC. Ela era provavelmente essencial no cinema mudo. Um filme de Stroheim não existiria sem a montagem. Stroheim experimentava dez soluções para ver qual delas era a mais eficaz. Era uma questão de reconstituir uma linguagem própria para o cinema, uma linguagem no sentido do veículo, não uma linguagem poética.
               
Hoje, isto não é mais necessário. É claro que há no meu filme um quê de “montagem”; trata-se de uma questão de boa utilização dos elementos, mas não de linguagem.
Nos tempos do cinema mudo, o que se filmava tinha pouca realidade em si. Reencontrava-se a realidade por intermédio da interpretação da montagem.
               
E depois tem também este fator importante, que a câmera se tornou hoje absolutamente móvel. Nos tempos do cinema mudo, ela era completamente imóvel. Fazer travellings era, no começo, considerado um empreendimento insensato.
Sua montagem não obedece, portanto, a nenhuma ideia preconcebida?
               
Nenhuma. Não premedito nada. O que eu devo dispor em particular é de uma certa rapidez de observação, e eu me fundo sobre as coisas que vejo. Sei sempre que se o olho é levado a ver certas coisas, são estas coisas que são válidas. Não filosofo “em cima”... Não, realmente não aspiro a uma montagem tradicional.
                Pego as coisas sempre em movimento. E estou me lixando completamente de chegar ou não ao fim do movimento para “raccordar” ( juntar, estabelecer uma ligação entre planos) com o plano seguinte. Quando já mostrei o essencial, eu corto: basta isto. É muito mais importante “raccordar” o que está na imagem. Se olharem minha montagem com olhos de cineasta, compreendo bem que ela possa incomodar, mas creio que não é nada necessário olhá-la com olhos de cineasta.

A imagem e a ideia
André Bazin desconfiava dos truques que repousavam sobre a montagem. Seria preciso, dizia ele, mostrar o homem e o tigre no mesmo plano. O seu filme os mostra separadamente.
               
Se quisermos tornar a história mais crível, logicamente é melhor mostrá-los no mesmo plano. Mas se ela é crível por outros meios, eu não vejo o porquê da necessidade de se usar uma técnica particular. Tudo depende do que se quer fazer. Não quero dar um espetáculo. Bazin, de seu ponto de vista, tinha razão. Se o objetivo é criar uma sensação, a sensação, é claro, é bem mais forte se mostramos o tigre e o homem ao mesmo tempo. Mas minha história não tem necessidade de suscitar fortes sensações. Vocês se lembram como o episódio começa: um longo travelling na floresta, durante o qual ouvimos o canto de amor dos tigres. Talvez não fosse necessário sequer mostrar os tigres. Eu os mostro pra sublinhar um pouco a coisa.
               
Eu não calculo. Eu sei o que quero dizer e encontro o meio mais direto para dizê-lo. Isso é tudo, eu não quebro muito a cabeça. Se está dito, pouco me importa a forma como foi dito. Vocês me dizem que meu filme dá a impressão de escolhas feitas de antemão. Não, as coisas não são “escolhidas”, mas as ideias são seguras. Uma certa escolha, sem dúvida, já foi feita, mas sobre a ideia. O importante são as ideias, não as imagens. Basta termos ideias bem claras e encontramos a imagem mais direta para exprimir uma ideia.
Este é mesmo o seu credo de cineasta.      
               
Sim, as ideias. Há mil outras formas de exprimi-las que não pelo cinema; escrevendo, por exemplo, se eu fosse escritor. A única coisa que um filme possui a mais é a possibilidade de colocar em um único fotograma dez coisas ao mesmo tempo. Não é necessário ser analítico no cinema – sendo, ao mesmo tempo, analítico.

Os verdadeiros problemas
Você pode colocar a questão de forma inversa à abordada há pouco? Por que não um simples documentário, como em Robert Flaherty?
               
O que me importava era o homem. Eu tentei exprimir a alma, a luz que brilha no interior destes homens, sua realidade que é absolutamente íntima, única, referente a um indivíduo que se relaciona com o sentido de todas as coisas ao seu redor. Pois as coisas ao redor possuem um sentido, já que há alguém que as contempla – ou, ao menos, este sentido se torna único pelo fato de haver alguém que o contemple: o herói de cada episódio, que é ao mesmo tempo o narrador. Se eu tivesse feito um documentário estrito, eu teria abandonado o que se passava no interior destes homens, em seu coração. Até porque, para levar o documentário a um nível mais profundo, creio que seria preciso olhar para o interior destes homens.
É, enfim, uma retomada dos primórdios do neorrealismo?
               
Sim, é isso.

Mas podemos perguntar uma segunda vez: por que a Índia? O que você fez na Índia poderia ter feito da mesma forma no Brasil, França ou na Itália?
               
Sim. Devo dizer a vocês que toda minha experiência na Índia foi para mim uma espécie de estudo para um projeto mais vasto que já comecei a empreender. Creio que todos os meios de difusão da cultura se tornaram estéreis pelo fato de que se abandonou inteiramente a busca pelo homem, tal como ele é. Começaram a nos dar estereótipos de homens, ersatz (substitutos) de sentimentos, do amor, da morte, do sexo, da moral. Trata-se de falsos problemas, já que vivemos mergulhados numa civilização adornada com a bandeira do otimismo. Tudo vai muito bem... com exceção de pequenas coisas. Em cima disto, se construíram falsos problemas. É o caso – e este é um dos lugares-comuns mais irritantes para mim – da juventude. A juventude sempre foi e será um problema. Não é um problema específico deste século. Ele pode revestir-se de um aspecto exterior: por exemplo, dar pontapés na barriga de uma velha (hoje, aliás, lhe cuspiriam na cara). A revolta dos filhos para com os pais, desde os tempos mais antigos, sempre existiu. Cada vez que uma nova geração chega, até mesmo para cumprir sua função, ela deve se revoltar: sem isto, ela não serve para nada.
               
Hoje, portanto, visa-se colocar falsos problemas e nos esquecermos dos verdadeiros problemas dos homens. E os verdadeiros problemas, o que são? Antes de tudo, é preciso conhecer os homens como eles são, começar por assumir um ato de humildade profunda e tentar se aproximar dos homens, vê-los como eles são com objetividade, sem ideia preconcebida, sem debates morais, ao menos no começo. Eu tenho um respeito profundo pelos homens. O homem mais horroroso é mesmo assim respeitável. O importante está em descobrir as razões pelas quais ele é horrível. Eu não me permito condenar ninguém.
               
Agora que o mundo se tornou tão minúsculo, continuamos a não nos conhecer. Não conhecemos nossos vizinhos, as pessoas do outro lado da rua, não conhecemos os suíços! Hoje, em que vivemos em grandes aglomerações, é extremamente importante começar a se conhecer, porque apenas partindo de um conhecimento profundo dos homens, e ao fazer deles uma análise muito realista, sem tomadas de posição (partis pris), sem querer demonstrar nada, a respeito desta ternura, desta afetividade, que pode nascer em relação ao outro indivíduo; talvez aí encontraremos a solução para os problemas que se colocam no mundo atual e que, mesmo tecnicamente, são diferentes daqueles que se colocavam antes de nós.

Uma nova escravidão
               
Talvez este tema nos distancie de nossa discussão, mas quero dizer que são minhas preocupações de ordem moral. A arte abstrata se tornou arte oficial. Posso compreender um artista abstrato, mas não posso entender que a arte abstrata se torne oficial, porque se trata realmente do tipo de arte menos inteligível. Estes fenômenos não se produzem sem uma razão. Qual a razão? É que se busca esquecer o homem o quanto for possível. O homem, na sociedade moderna e no mundo inteiro, com exceção provavelmente da Ásia, se tornou a engrenagem de uma máquina imensa, gigantesca.
                Ele se tornou um escravo. E toda a história do homem é feita de passagens da escravidão à liberdade. Há sempre um momento em que a escravidão domina, e então a liberdade toma as rédeas: mas esta domina muito raramente, ou por períodos muito breves; porque, mal atingimos a liberdade, imediatamente reconstitui-se a escravidão. No mundo moderno se criou uma nova escravidão. E esta escravidão, em que consiste? É a escravidão das ideias. E isto através de todos os meios, do romance policial ao rádio, ao cinema, etc. Graças também ao fato de que a técnica se desenvolveu extremamente, e que os conhecimentos que podemos ter de forma mais aprofundada, em um domínio restrito, para serem eficazes do ponto de vista social, impedem o homem de ter acesso a outros conhecimentos. Não lembro mais quem dizia: “Vivemos no século da invasão vertical dos bárbaros”. Ou seja, um aprofundamento imenso do conhecimento numa certa direção e uma extrema ignorância em outra.
                Desde que faço cinema, ouço dizer que é preciso fazer filmes para um público com a mentalidade mediana de um garoto de doze anos de idade. É um fato que o cinema – falo do cinema em geral –, como o rádio, a televisão, ou todos os espetáculos dedicados às massas, realizam uma espécie de cretinização dos adultos e, em sentido contrário, aceleram enormemente o desenvolvimento das crianças. É daí que vem esta ausência de equilíbrio que constatamos no mundo moderno: da impossibilidade em que estamos de nos compreender.

Não creio neste otimismo
               
Eis aí, acredito eu, um problema que deve ser colocado hoje de uma forma muito séria e até dramática: buscar fazer conhecer as coisas, disseminar as ideias, levar as pessoas a suspeitarem que há outras coisas neste mundo. Não creio de forma alguma neste otimismo sorridente que faz com que peguem um chefe de Estado doente, com úlcera, câncer etc., e que o vistam como uma vedete para apresentar na televisão, para que ele se faça de saudável, a explosão da vida, quando se sabe que lá dentro está tudo em pedaços! Este tipo de otimismo pode nos conduzir a horríveis infelicidades. O que pensar de um mundo que se quer acreditar absolutamente feliz e que, para ser feliz, deve beber, ou ir ao psicanalista, ou cheirar cocaína, ou tomar “tranquilizantes”. Estes “tranquilizantes” se tornaram populares de forma incrível; mal o homem experimenta uma pequena angústia, toma uma pílula, e a angústia se acaba! Acaba também a razão, o sentido da vida. A razão da vida inteligente, no sentido etimológico da palavra: “compreender” as coisas “por dentro”.
                Compreender, é isso que é preciso fazer hoje em dia. Porque diante de nós está prestes a nascer um mundo novo, no qual as descobertas técnicas extraordinárias foram feitas. Há claro sempre alguém aqui e ali que sabe o sentido do que faz, mas de forma muito vaga. Os outros se divertem como se lessem um romance. Eles não fazem ideia de tudo o que vai se passar no mundo. É por isso que a mentira circula de uma forma extraordinária. Creio que ela nunca foi tão disseminada quanto no presente.
                Querem um exemplo do poder da publicidade? Li no livro Hidden Pearsuasers. Trata-se do chocolate. Há dez ou quinze anos o vendiam sempre em grandes tabletes. Os chocolates pequenos eram difíceis de encontrar. Depois veio a publicidade dos dentifrícios (“o chocolate provoca cáries”), e ao mesmo tempo estão na moda as pessoas magras –eu sou gordo e sou a favor dos gordos. Subitamente, o consumo do chocolate diminuiu no mundo. Os pobres cultivadores de cacau morrem de fome, as crianças ficaram hidrópicas, foi trágico. O chocolate era uma coisa que saía de moda: era preciso retomá-la. Estudou-se o chocolate de forma muito séria e científica. Pensou-se que, para resolver o problema, era necessário apresentar o chocolate de uma tal forma que ele satisfizesse o sentimento de culpa do consumidor. E foi assim que se começou a fabricar chocolatinhos. Os negócios continuaram a prosperar, as crianças pararam de ficar hidrópicas, etc. É assustador, não? Vocês não acham?

Começar por se conhecer uns aos outros
                Hoje, o indivíduo é invadido a todo momento por coisas exteriores, e elas são sempre coisas ameaçadoras. Ao fim das contas, tudo é ameaçador. “Beba Coca-cola”, isto já é uma ameaça. Vocês acham que devemos estar satisfeitos com o mundo no qual vivemos hoje?

Não acredita que o mundo da Índia pode se tornar parecido com o nosso?
                Não me preocupo em olhar as coisas a esta distância. O que me preocupa é como os homens se comportam agora em relação a problemas imensos, porque toda nossa civilização é posta em causa hoje. Me interessa saber como pensamos em nos mover para salvar coisas que não sabemos exatamente se é preciso que sejam salvas ou não. Já seria um excelente ponto de partida se os homens começassem por se conhecer. Aconteceu na Itália, por exemplo, um momento extraordinário, durante a guerra, quando o invasor (os americanos) chegou. Estávamos sob o domínio dos alemães, dos fascistas, sob perseguições, etc, e então, num belo dia, os outros chegaram. Como inimigos. Três dias depois, eles perceberam que nós não éramos inimigos, porque éramos homens também, seus iguais. Me lembro de uma frase que estava em todas as bocas em Roma: “Este coitado tem uma mãe também”. Nasceu durante a guerra uma fraternidade extraordinária que conseguiram matar em três anos. Uma fraternidade admirável.
                Então, por qual razão não se faz o esforço de procurar o homem em todos os recantos, de começar a contar suas histórias aos outros homens, de mostrar que o mundo está cheio de amigos – e não repleto de inimigos, mesmo que existam inimigos. O tigre, de súbito, por um acidente qualquer, se torna devorador de homens. Mas, por natureza, ele não é isso. Os automóveis também são devoradores de homens, porque quinze pessoas morrem todos os dias nas estradas da França. No entanto, não podemos odiar os automóveis porque ocorrem acidentes.
                E, bem! E o cinema? Que função pode ter? A função de colocar os homens diante das coisas, da realidade tal como ela é, e assim fazer conhecer outros homens, outros problemas.

Mas ele então estaria prestes a perder seu público!!
                Sim, mas estas reduções de público são mínimas. E depois, não se pode pensar tudo em função do cinema. É preciso pensar em função do mundo. É uma realidade hoje a televisão. Há também o rádio. Há também os livros, que custam dez francos. Há também os jornais, que custam vinte e cinco francos – custam um pouco mais caro que os livros e são mais deletérios!

As coisas tais como elas são
               
Este empreendimento de que falo, é preciso levá-lo adiante por todos os meios. Minha tentativa pode ser ridícula, inútil, não dar em nada, mas, enfim, já comecei a fazer programas para a televisão. Ali eu posso não apenas fornecer a imagem, mas dizer e explicar certas coisas também. Eu me coloquei como tarefa contribuir para o conhecimento de um mundo muito próximo de nós. E que, mesmo assim, contém quatrocentos milhões de homens. Quatrocentos milhões de homens, isso não é pouco. É um sexto do gênero humano. É preciso conhecê-lo.
                Talvez meu programa de televisão possa ajudar na compreensão de meu filme. O filme é menos técnico, menos documentário, menos explicativo, menos didático, mas, como ele nos dá a perceber um país mais através da emoção que da estatística, ele nos permite penetrá-lo ainda melhor. Eis o que me parece importante e que eu tenho a intenção de fazer no futuro. Foi assim que tentei colocar de pé com amigos na França um projeto parecido.

Você mesmo quer rodar estes filmes?
               
Levá-los à realização, sobretudo. Começar pela pesquisa, pela documentação e passar em seguida aos motivos dramáticos, mas para representar as coisas tais como elas são, para ficar no caminho da autenticidade. Sim, é preciso que o cinema ensine os homens a se conhecer, a reconhecer uns aos outros, ao invés de continuar a contar sempre a mesma história. Só se fazem variações sobre o mesmo tema. Tudo o que podemos saber sobre o furto, sabemos; tudo sobre o que podemos saber sobre o assalto, sabemos. Tudo o que podemos saber sobre o sexo, não como ele realmente é, mas seus preparativos, seu processo, nós conhecemos. A morte, o que significa ainda? A vida, o que significa ainda? A dor, o que significa? Tudo perdeu sua significação real. É preciso tentar, repito, conhecer as coisas tais como elas são, não em termos plásticos, mas em sua matéria real. Aí, sem dúvida, reside a solução. Então, talvez só assim poderemos começar a nos orientar.

(Entrevista retirada do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes” e originalmente publicada na revista Cahiers du Cinéma, n. 94, abril de 1959.)