quinta-feira, 21 de abril de 2016

A era dos metteurs en scène¹


Jacques Rivette

Como é possível ser persa?² Ou ainda, como aceitar o Cinemascope? Esse sentimento não me causa nem recusa, nem qualquer ressalva. A lente hypergonar terá,pelo menos, essa primeira vantagem: haver traçado enfim uma fronteira precisa entre duas escolas e, mais, duas ideias de cinema, dois modos fundamentalmente opostos e irredutíveis de amá-lo e compreendê-lo. Vejo somente uma diferença, porém de grande importância: não se trata mais de geografia e sim de história. Quantas moratórias serão rapidamente descartadas, antes de se juntarem às nostalgias do silêncio, às saudades do branco e preto – e,com elas, seus autores, se não ficarem atentos.

Sejamos francos: dentro do campo da estética,entende-se que a aparição do Cinemascope é um fato cuja ordem de importância difere da do surgimento do cinema falado. Porque o cinema falado apenas confirmava um fato consumado, era um paliativo para uma doença,provava a verdade de Griffith, Murnau, Stroheim, contra,digamos, Chaplin ou Eisenstein. É preciso ser muito surdo para não ter a memória obcecada pelo timbre vivo e limpo de Lillian Gish, pelas entonações eruditas com as quais Lil Dagover dava nuance a suas esquivas em face de Tartufo, pelos gritos estrangulados de Fay Wray. Aos brilhantes conversadores de Lady Windermere de Lubitsch,só faltava a palavra; não, nem isso, faltava apenas a voz.

Muito mais do que no golpe de estado do cinema falado, parece-me que a história do cinema encontrou seu ponto de inflexão na infiltração irresistível da cor. Dentro dessa longa progressão, o Cinemascope é, antes de mais nada, seu coroamento e sua consagração; a partir de agora,os dois ficam de mãos dadas, eles têm o mesmo objetivo.Não pretendo enunciar tal processo em algumas poucas palavras; mas não é mais do fantasma das coisas que o cineasta deve tirar sua matéria, e sim das mais vivas e chocantes aparências. O cineasta deve compor com o que há de mais concreto nas aparências, de maior gravidade.Se ele quiser conduzi-las em direção ao abstrato, mantendo-as sempre únicas, isso não se fará em detrimento do que é individual ou singular, mas de toda veleidade da álgebra sintática ou romanesca. Sem querer ofender os pedantes, o cinema decididamente não é uma linguagem.

E, sem querer ofender muita gente, diante da telado Cinemascope, não consigo sentir qualquer saudade da tela antiga, nem mesmo pensar minimamente nela. Já sinto,porém, nostalgia do Cinemascope durante o espetáculo habitual. Revendo, há alguns dias, O Preço de um Homem na primeira fila de uma sala (cujas proporções da tela eram, porém, bem aceitáveis), não cessei de sentir o tempo todo uma estreiteza opressiva, um intolerável confisco das margens por onde o ar circula, os limites mais artificiais que se possa impor aos olhos e ao espírito. O que justifica,antes de mais nada, o Cinemascope é o desejo por ele, quenão se limita apenas ao papel do espectador.

Não há dúvida de que a amargura dos críticos é justificada: eles gostam de rever o que já conhecem, admitem apenas a beleza já reconhecida, acreditam então que se trata de uma beleza clássica, e passam a maior parte de seu tempo a lamentar o que deixará de existir. Que agonia para o pensamento não mais poder satisfazer-se novamente com esses tediosos closes, esses enquadramentos docilmente submetidos às leis da proporção áurea, e com tudo o que, por hábito, acredita-se ilusoriamente ser insubstituível. Mas como não sentir a imaginação se inflamar diante da ideia do que ainda não existe, mas que nos é prometido, diante do pressentimento de tudo o que está por vir? Com o close, de que nós conhecíamos o menor detalhe, prevíamos cada inflexão, o que pode acontecer de bom nesses novos espaços? A arte não vive obrigatoriamente do novo, mas da descoberta; o mais relutante se vê agora obrigado a aceitá-lo, e o mais tímido, a ser audaz.

Não quero tomar meu gosto pessoal como argumento, dizer que, por exemplo, essas novas proporções me impõem, em primeiro lugar, a ideia de elegância, e que elas satisfazem tanto a inteligência quanto os olhos – nem me alongar na descrição da nova atitude oferecida ao espectador. Não observo, porém, que se fale do essencial.Ou seja, não é em detrimento da proximidade que o aumento da extensão do olhar se dá: a lente hypergonar é de fato o triunfo da grande angular, a tinta dos cineastas de raça. Mas, posto que o Cinemascope é antes de qualquer coisa uma questão de mise-en-scène, como se costuma dizer, então bem, falemos de mise-en-scène.

Admito que O Manto Sagrado não seja um bom filme (ainda que seja melhor que o filme de Alan Crossland de 1927). Se é permitido preferir certas imagens de documentários às dele, é porque ele se insere dentro de uma lógica em que a genialidade do instrumento se destaca antes do que a dos criadores: Lumière terá sempre mais charme do que Méliès, assim como o emprego bruto da descoberta será mais interessante que seu uso engenhoso demais por parte dos que se valem de efeitos especiais; penso aqui sobretudo em alguns planos de Negulesco que tínhamos visto no Rex, e que pareciam acumular precauções retóricas para justificar um processo em que o primeiro trunfo é a evidência: precauções de onde nascem, para um, a desconfiança e, para outro, o pleonasmo. Desse ponto de vista da demonstração,creio, sim, ainda preferir a ausência total de pesquisa e de ideias de alguém como Koster, que parece não ter se constrangido com o Cinemascope, e provar, assim, talvez involuntariamente, que tudo nele é efetivamente possível.O que quero dizer com possível? Quero dizer que aqui se vê como uma mise-en-scène convencional até o ponto do pastiche; às vezes estúpida, adquire, apenas pelo uso da lente hypergonar, uma dimensão suplementar, que não é apenas a largura; no fim das contas, adquire certo estilo,ainda que ambíguo e confuso, mas indiscutível. Como será quando se acrescentar o simples ingrediente do talento?Em qualquer domínio que se possa imaginar, não consigo ver o que deveria ser sacrificado em nome do novo objetivo. Visualizo melhor, me parece, o que cada uma das virtualidades da mise-en-scène ganhará em eficiência,beleza e tamanho, tanto espiritual quanto visível.

Essa é a querela: nossos críticos aceitam reconhecer o procedimento, mas querem agora limitar os danos,ou então restringi-lo ao nível da curiosidade ou da atração,sem que invada o campo da arte (a arte sendo um direito divino silencioso, estreito e negro), limitando-o acertos gêneros definidos. Ouso dizer que querem confina-lo aos exteriores (mas como não rever o Festim Diabólico sem reconhecer logo de início a mais genial clarividência do cinema de amanhã?).  Esses discursos não são novidade,mas, dois anos depois, todos os filmes falavam, e em relação à cor, foi apenas uma questão de meses. Pois são os diretores que decidem. Só eles sabem distinguir aquilo que aumenta seus poderes daquilo que os limita – e os críticos os seguem. Vê-se que logo descobrirão – e reconhecerão– algo que a nova técnica já reclamava. A Paixão de Joana D’Arc de nossa época é múltipla. Não demoraremos a constatar que nossos melhores filmes recentes – e,sem dúvida, todos os grandes filmes da história do cinema– contêm um apelo ou uma nostalgia do Cinemascope, eque diversas panorâmicas, travellings laterais, a disposição cautelosa dos personagens sobre a superfície da tela(A Carruagem de Ouro) tinham talvez um sentido, pelo menos aquele da amplitude.

Não, eu não quero tentar descrever esse cinema,nem mesmo o de amanhã, mas o da próxima hora.Constato um fato: Cinemascope, a tela tripla de Abel Gance, cinerama, pouco importa. Há sempre o mesmo desejo de explosão do quadro antiquado e, ainda mais que isso, o desejo de um súbito desabrochar da tela, como o desabrochar de uma flor de papel japonesa mergulhada em água corrente. A busca da profundidade está fora de moda: é isso que “condena” o relevo, certamente mais do que todas as outras imperfeições técnicas. Quais novos problemas poderiam ser apresentados com orgulho aos diretores de hoje? Depois de tantos anos de mise-en-scène em profundidade, qual renovação, qual desafio? O dinheiro oferece a cor e o cinema falado, mas quem lhes impõe senão o próprio cineasta – que quer identificar o desafio que eles representam a sua imaginação –, e que se deixa levar pelo jogo, descobrindo, às vezes sem querer,as novas dimensões de sua arte? O critério do desafio é um critério fraco? Mas o que era a técnica do afresco para Michelangelo, a da fuga para Bach, senão, em primeiro lugar, uma questão provocante que impõe uma resposta e uma invenção (e me calo sobre os múltiplos desafios da profissão ou da arquitetura, frequentemente tão sutis que chegam a parecer pueris, que todo artista se impõe asi próprio no sigilo de seu trabalho, e que deverão sempre ser ignorados pelo público). Sim, esse é o elemento fundamental da arte: “o estudo do belo é um duelo...”³

Parece-me que a história da mise-en-scène se confunde com a exploração fanática desse estreito corredor de espaço que, até agora, se fechava sobre o olho do cineasta assim que ele se debruçava sobre o visor (o que era a mais larga grande angular frente à impaciência do seu olhar, alcançando, com um piscar de olhos, a amplitude da cena e do espaço?). Confunde-se também com a obsessão que percorre secretamente a obra dos maiores cineastas,na disposição dessa mise-en-scène, com o desejo de se ter um ângulo perpendicular perfeito em relação ao olhar do espectador: de O Nascimento de uma Nação a Carruagem de Ouro, do Murnau de Tabu ao Fritz Lang de Diabo Feito Mulher, essa utilização extrema da largura da tela, da distância entre os personagens, dos vazios alimentados pelo medo ou pelo desejo, dos movimentos laterais; me parece ser a língua dos verdadeiros diretores, muito mais do que a profundidade; me parece ser a marca da maturidade e da maestria. Vejam como Renoir passa de Madame Bovary ou A Regra do Jogo para O Diário de uma Camareira e O Rio Sagrado. Se o cinema, seguindo as palavras de Bresson,é a arte das relações, é portanto, em primeiro lugar, a arte dos enfrentamentos, dos olhares, das distâncias e de suas variações, difíceis de determinar com precisão na profundidade, porque nela isso se torna mais confuso. A utilização da profundidade de campo, em que um olhar deformador impõe aos protagonistas um “mais” e um “menos” frequentemente arbitrários, em que a desproporção,as desmesuras e a derrisão dominam, não estaria,portanto, ligada ao sentimento de absurdo – enquanto ouso da amplitude estaria ligado ao equilíbrio, à lucidez e,pela franqueza das relações, à moral? Estaríamos, então,diante de um aspecto do eterno conflito entre o Barroco e o Classicismo? E a grande mise-en-scène, assim como a grande pintura, seria plana, empregando a profundidade apenas por entalhes e não por buracos.

O futuro abre essas questões, além de outras mais ligadas ao exercício cotidiano da profissão: é preciso esperar do teatro as lições de um jogo dramático finalmente estendido ao universo? De fato, mas o cinema não saberia, sem correr o risco de se perder, renunciará procura por uma escrita precisa e muito articulada, à obsessão de uma figura abstrata – que o trabalho teatral ignora, submetido que é à lógica dramática, à explicação das situações, à demonstração da cena. O que esperar da grande pintura, igualmente comandada pela suntuosidade e o teatro, senão um exemplo de audácia? Liberto do enquadramento (e das escravidões plásticas), destruído em favor do ângulo; libertado da montagem, condenado à simples sucessão de tomadas, fragmentos-de-cinema, eao jogo das rupturas; assim, enfim, nosso cinema estaria restrito à procura de suas verdadeiras questões.

Estou exagerando um pouco. O Manto Sagrado mostra bem como o Cinemascope autoriza tudo, ainda que não se esteja preocupado com ele. Henry Koster muda de plano, regula os movimentos do aparelho segundo sua rotina, sem grandes desapontamentos, e encontra até alguns acasos felizes, sucessos inesperados. Mil detalhes,mil artifícios que, embora devam cansar rápido, provam que não poderíamos ficar por muito tempo onde estamos.Seria preciso abordar enfim francamente a busca por uma nova amplitude do gesto e da atitude: amplitude sobretudo do gesto contemporâneo, que o relevo assumirá sobre o fundo plano. O diretor aprenderá a reivindicar às vezes toda a superfície da tela, a mobilizá-la com sua verve, a jogar ali um jogo múltiplo e apertado – ou, ao contrário,a espaçar os polos do drama e a criar zonas de silêncio,superfícies de repouso ou hiatos provocantes, rupturas eruditas. Rapidamente cansado dos candelabros e dos vasos introduzidos nas extremidades da imagem para o “equilíbrio” dos planos aproximados, o diretor descobrirá a beleza dos vazios, dos espaços abertos e livres por onde o vento passa, sabendo então desanuviar a imagem,sem temer buracos e desequilíbrios, multiplicando os erros plásticos para obedecer às verdades do cinema.

Isso não tardará a acontecer: a genialidade se distingue do talento primeiramente pela avidez em empregar o novo, em descobrir com ele e em ultrapassar seu tempo,inventando a partir dele. A história do Technicolor é, para nós, a história de alguns filmes de Jean Renoir, Alfred Hitchcock, Howard Hawks ou Fritz Lang. Não devemos reclamar: já conhecemos uma primeira utilização genial do Cinemascope, esse curta-metragem de Hawks sobre uma canção de Marilyn, três minutos de cinema total.

Faz quarenta anos que os mestres mostram o caminho;nós não saberíamos recusar seu exemplo, mas, enfim,realizá-lo. Sim, nossa geração será a do Cinemascope, a dos metteurs em scène finalmente dignos desse título:movimentando as criaturas de nosso espírito pelo palco ilimitado do universo.

¹“L’age des metteurs en scène”, Cahiers du Cinéma, n. 31, janeiro de 1954, pp. 45-48. Traduzido do francês por Lúcia Monteiro.
² No original: “Comment peut-on être Persan?”, do livro Cartas Persas, de Montesquieu.
³ Entre aspas no original. Citação de Charles Baudelaire: “L’étude du beau est um duel ou l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu”, ou seja, “O estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido”.


Texto extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”

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