[sobre A Tortura do Silêncio(1953), de
Alfred Hitchcock]
Jacques Rivette
Jacques Rivette
“Aqueles
que querem fazer nossos heróis estacarem sob a égide de uma medíocre bondade,
onde alguns intérpretes de Aristóteles limitam o espectro de suas virtudes, não
encontrarão aqui o quefazer, pois a virtude de Polyeucte aspira à
santidade e não possui nenhum traço de fraqueza”.
(Corneille, Análise
de Polyeucte)
Os filmes de
Hitchcock são frutos de um segredo profissional; sem dúvida, não estão à altura
do jugo da crítica, que sempre se mostrou fundamentalmente incapaz de dar conta
destas obras. Apenas o metteur em scène– e entendo por esta expressão
designar aquele que se colocou os verdadeiros problemas de sua arte – pode lhes
pressentir a beleza. Da mesma forma nos apareceram as comédias de Howard Hawks,
a obra americana de Renoir,a de Rossellini, os primeiros testemunhos deste
cinema moderno cujo conhecimento será reservado aos cineastas– assim como os
pintores há cem anos tomaram para si deforma ciumenta o império da pintura.
Se a mais nobre
reflexão de nossa época escolhe exprimir-se por intermédio do cinema, não é,
portanto,para aceitar ser traduzida em alguma língua estrangeira,mas para
permanecer invisível a quem só é sensível às aparências desta arte. É pelo
exercício cotidiano de seu poder que o cineasta afirma da forma mais rigorosa o
seu pensamento; e o mais profundo destes pensamentos se confunde com a
confecção dos elementos mais aparentemente exteriores, mais formais. E não é
esta a marca de uma arte que atingiu o mesmo ponto de realização que encontrou
a música na época de Bach?
Eu poderia, sem
dúvida, oferecer aqui alguma temática hitchcockiana, demonstrar a permanência e
a profundidade de seus temas; mas, além do fato de que este tipo de exegese
deixa sempre no autor um sentimento de insatisfação um tanto culpado,
satisfaria de forma demasiadamente justa àqueles a quem gostaria menos de
esgotar a curiosidade do que irritar através de minhas esquivas – e assim incitá-los
a olhar para a tela de cinema, ao invés de só buscarem os pretextos para sua
escapada diante daquilo que é fundamentalmente o cinema: este meio de ligação entre
alguma coisa de exterior e de muito secreta, relação que um gesto imprevisto
desvela sem explicar.
Se me fosse
necessário definir com uma palavra a arte de Hitchcock, escolheria exigência;
não conheço cineasta que se tenha proposto de forma tão constante tão perigosa
empresa. A dificuldade só ignora a beleza na visão dos amadores; mas esta busca
obstinada de um equilíbrio sempre ameaçado a atinge de forma mais segura que os
confortos da tragédia. O que deseja Hitchcock senão nos manter neste ponto de
instabilidade almejada, onde o futuro é a cada segundo ameaçado, tensão que
expia o crime, a loucura, o abandono às trevas: fronteira extrema onde lutam os
últimos redutos do indivíduo, mas de onde unicamente poderia surgir a
verdadeira vitória? Não há um único plano neste filme que não nos imponha o
pressentimento do perigo, um único instante onde não seja perseguida a ideia
mais perigosa da vida espiritual: qual destas vias, a estética ou a moral,
poderia, sem trair sua essência, recusar-se a ser o veículo deste desconforto?
Vejo que criticam
Hitchcock pela escolha de seus temas; mas onde outros veem preocupações
comerciais,eu preferiria reconhecer a ambição de não deixar nada se exprimir
com equívoco; onde poderiam ver o abandono às facilidades da intriga, vejo o
desejo de recusar ao herói toda saída, toda escapada, e assim perfazer a armadilha
onde o indivíduo, concernido pelos périplos da trama,deve confessar e afirmar
ao mesmo tempo, num ponto extremo de aprisionamento, sua extrema liberdade.E se
Hitchcock não pode levar à perfeição uma bela maquinação sem um tanto de
complacência, eu a vejo como admirável, já que esta coloca, acima da
preocupação com a verossimilhança, a plenitude do propósito mais rigoroso
imaginável, além da perseguição até as últimas consequências de seu pensamento
fundamental.
Talvez apercebamo-nos
aqui em filigrana o próprio tema deste filme, inexplicável se não reconhecermos
a ideia mais elevada e exigente da confissão – em que o culpado, pela remissão
do pecado, compreende-se como totalmente liberado da culpa, e mesmo obrigado,
se necessário, a levar o seu confessor a assumi-la e expiá-la em seu lugar
(recordo rapidamente como Vigny, em suas notas a Cinc-Mars, ligava igualmente o
confessor às figuras do amigo e do cúmplice). Esta preocupação não é nova em
nosso autor; reencontramos, é claro, o tema do crime permutado em Pacto
Sinistro; mas qual de seus filmes – e mesmo estas histórias de espionagem
diante das quais alguns se ruborizam – não postula, como condição de sua inteligibilidade,
a crença na alma e na reversibilidade?Reencontramos em Hitchcock, sobretudo, o
gosto de suscitar entre os seres as relações mais estreitas possíveis.Unir os
destinos com o melhor laço que o espírito possa conceber: esta ambição é comum
a tudo que o cinema,nestes últimos anos, nos tem dado de mais novo – masquem
poderia se gabar de tê-la levado a um tal grau absoluto?Estes casais, obcecados
pela culpabilidade (coração de todos os filmes de Hitchcock), perseguem sob
tantos rostos a mesma aventura: conseguir fazer hesitar entre duas almas a
culpa, até aboli-la por intermédio da irremediável confusão de seus destinos.
Se há um mecanismo
nesta arte, muitos interrogatórios no-lo ensinam: o metteur em scène não
desempenha sempre o papel de Karl Malden neste filme, mecânica “inumana” que
embosca as criaturas de carne e de sangue e as obriga à confissão pelo
sofrimento? Qual é, aliás, o sentido desta reprovação de insensibilidade? O
cineasta é livre para tentar menos comover que desestabilizar o pensamento, e
renová-lo pelos choques descontínuos de efeitos cuja beleza não advém do sentido;
é o sentido que advém da beleza. De surpreender e de afirmar, ao invés de tentar
provar algo através da infelicidade humana.
Eu proporia,
portanto, algumas observações sem objeto: que a emoção não consiste no fim da
arte, e que podemos reconhecer em Hitchcock o mesmo cuidado que guia
ultimamente os filmes de Renoir e Rossellini – abstrair do coração aquilo que
não vem da alma; que o artista moderno impõe, a princípio, à sua obra esta
catarse a que os antigos submetiam o espectador, substituindo a piedade e o
terror pelo amor e a fascinação – e conhecemos hoje filmes muito cômicos feitos
para fazer rir, muito trágicos com o fito de emocionar, em que a emoção se
engendra e age por meio da opressão e da asfixia. Hitchcock não se preocupa com
as paixões, mas com o que as esmaga, efunda nisto a sua grandeza: o instante em
que o homem sacrifica seus sentimentos a seu destino, em que, por intermédio da
aceitação, ele transmuta esta fatalidade em providência e, substituindo os
deuses por um Deus de justiça, se abandona a este confronto solitário. A ambição
deste cineasta não consiste em apaziguar, mas em inquietar, de ser aquele pelo
qual o escândalo chega,e de fazer com que seus heróis atinjam, graças à clara visão
daquilo que os relaciona aos outros seres, uma consciência insuportável da
existência – e isto sobretudo se eles se recusarem a empreender esta marcha.
Mas ele o faz afirmando o perigo contido em cada segundo, ao assinalar aquilo
que lhes ameaça a salvação e ao impor enfim a ideia mais exigente da aventura
individual, da predestinação e, finalmente, da santidade. Saudemos aqui um
cinema do inumano, que finalmente desafia as seduções sensíveis do coração, só
se debruça sobre aparte mais secreta do homem para imolá-la, e se interessa menos
pelo homem do que por aquilo que o transborda: o Deus voraz, cuja Graça vela
pelo homem a cada passo, e para quem a danação ou a salvação constituem uma
única e mesma armadilha, cujo fito é precipitar a criatura nos abismos de seu
implacável amor.
A mise-en-scène não
será jamais para Hitchcock uma “linguagem”, mas, incansavelmente, uma arma no encalço
do segredo dos corpos, deslizando nas brechas do gesto e do pensamento a lâmina
mais penetrante, o ferro melhor curtido que qualquer arte já colocou nas mãos
de um autor – dentre todos o mais lúcido, sondando os rins e os corações de
suas vítimas para enfim desmascarar sua verdade mais ignorada, antes de tudo
por eles mesmos.
Acompanhem, na pista
dos perigos da mise-en-scène, seus gestos desajeitados, deserdados;
como,espionados pelas contra-plongées que elidem o solo sob seus pés,
sufocados pela obsessão das verticais, acossados nas cavidades destes
enquadramentos exíguos, cujos limites assaltam sem cessar a carne pulsante da
realidade;estes personagens não ousam aventurar-se a outros movimentos senão os
reflexos amedrontados e contidos de quem marcha à beira do abismo. O vidro
diante da fronte do procurador, a bicicleta abandonada no corredor, as flores
nos braços do sacristão, tudo delineia as arestas de um cinema do provisório,
do descontínuo, da ordem do acidental – elementos que, no entanto, devem compor
a fatalidade. Apenas os rostos, unicamente os olhos– fixos, subitamente
desviados – ousam ainda desvelar as cumplicidades,interrogar de forma vã o
cúmplice e submeter o corte do plano ao breve brilho de um olhar.
Fora do perigo, todos
aspiram ao destino, à sua consumação: eles estão mergulhados na questão moral
até o pescoço, e já não tentam dela se desgarrar; que espécie de paródia da
liberdade poderia melhor salvá-los senão a conclusão de seus destinos? Para
além do julgamento dos homens, não lhes resta esperar outra coisa – com o
mínimopossível de gestos, uma grande obstinação: enrijecer-se,temperar-se como
a bala e a espada, para assim atravessar seu destino, com o gosto das cinzas já
irisando a boca, até a consumação. A chama negra na qual Montgomery Clift visivelmente
se transforma sob nossos incrédulos olhares arrasa, como o contágio de um
incêndio tenebroso, a carne de todos os que dele se aproximam; apenas a crosta
do visível continua a nos enganar. Jamais uma trama tão bem urdida de almas,
uma tão absoluta dependência espiritual tinha se confundido de forma íntima com
a experiência da solidão, que sufoca o ser no exato momento em que ele sente os
laços que o unem ao mundo. Seria um acaso que o tema do sacrifício, que já
atravessava a trama de Sob o Signo de Capricórnio, surgisse aqui
novamente para reunir-se em nosso espírito aos temas da renúncia e do abandono
a Deus (Renoir e Rossellini)?
Enfim, desejo me
desculpar por um artigo onde o superlativo reina de forma tão imprudente; mas
talvez tenha sido este o único meio de honestamente dar conta de um gênio que
faz das experiências extremas sua regra de conduta e que ignora a arte de
decepcionar e de embotara sensibilidade, dons estes que satisfazem a tantos belos
espíritos.
“L’art de la fugue”, Cahiers du Cinéma,
n. 26, agosto-setembro de 1953. Tradução de Luiz Soares Júnior.
Texto retirado do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
Texto retirado do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
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