Jacques Rivette
Assistir hoje a um filme de Mauritz
Stiller, F. W.Murnau ou D. W. Griffith é tocante, e também revelador da excepcional
importância que todo e qualquer gesto humano (na verdade, que o funcionamento
de todo o universo sensível) assume em seus filmes: um ato tão corriqueiro quanto
beber, caminhar ou morrer adquire densidade – a plenitude de significado e a
evidência confusa do símbolo que sempre transcendem interpretações e
limitações, e que gostaríamos de ver nos filmes de hoje. Jean Vigo eJean Renoir
são, talvez, os únicos que ainda sugerem uma incessante improvisação do
universo, uma perene, calma e convicta criação do mundo. O silêncio nada
explica. Os problemas começam com os seguidores dos “pioneiros” com as
reflexões sobre o milagre. Toda reflexão implica análise, e a análise
evidentemente deve começar pelas bases: nós fazemos filmes sintéticos, ainda
desajeitados e ingênuos, dos quais escaparam toda vida e todo vigor.A estranha
sistematização da linguagem e da sintaxe que Griffith teve de elaborar, de
forma mais ou menos confusa,para poder se expressar, e que foi apenas uma
consequência superficial de seu universo específico, introduziu o verme na
fruta que, a partir de então, não parou de, literalmente,desvitalizar o cinema.
Trata-se da lenta criação de uma retórica, sempre mais refinada e mais cheia de
nuances,mas também sempre mais impiedosamente analítica.
Cada descoberta, começando pela tomada
única ou pelo primeiro “tableau”, quase invariavelmente significa sempre
outro passo direcionado à análise e, mais especificamente, direcionado a uma
elipse espaço-temporal(um close-up é uma elipse do contexto espacial);em
nome da superioridade eminente da sugestão, a recusa,que logo será
sistematicamente adotada, de mostrar qualquer coisa além do inofensivo e sem
derramamento de sangue, a fuga inquieta do gesto vivo, colocado, com sua
tranquila falta de vergonha, em um espaço concreto,comandado por uma fatal e
obstinada dissecação do real.O espaço fílmico “decupado”, fragmentado,
rapidamente desorientado na acumulação de ângulos e movimentos de câmera
divergentes e fora do comum perde toda a realidade e mesmo toda a existência.
Nós chegamos ao único cinema do tempo, no qual não existe nada além da pura duração
de sucessivos atos sem densidade ou realidade: é o nascimento da perigosa, e
inteiramente gratuita, noção de ritmo e velocidade, que tenta nos pôr para fora
dos trilhos substituindo a existência e a presença pela acumulação,com a
esperança de enredar uma presa a partir da frenética multiplicação de sombras
fugidias.
Um cinema de discurso retórico, no qual tudo tem que entrar em conformidade com as fórmulas, ordinárias,polivalentes e estereotipadas para todos os tipos de uso: o universo é capturado e destruído pela armadilha das convenções formais.
Um cinema de discurso retórico, no qual tudo tem que entrar em conformidade com as fórmulas, ordinárias,polivalentes e estereotipadas para todos os tipos de uso: o universo é capturado e destruído pela armadilha das convenções formais.
Cinematograficamente, isso corresponde
às convenções da razão e, portanto, às convenções da existência:um universo
fustigado pela superficialidade, irrealidade,debilidade, ineficiência, insignificância,
do tipo que nada mais pode do que gerar a mais completa desconfiança, devido às
convenções formais através das quais ele aparece; muito mais do que antes, não
existe aqui uma separação entre forma e conteúdo: o objeto como um todo é ato
de aparição; a premeditação e a rotina o denunciam,de modo automático e
irrevogável. O grande erro, então,parece ser o erro da linguagem cotidiana,
indiferente ao seu objeto; este de ter uma “gramática” válida para toda e qualquer
narrativa, ao invés de um estilo necessário, um estilo de que a narrativa
necessita – na verdade, um estilo gradualmente criado por ela no curso de sua
expressão.O realismo não pode ser uma solução se entendermos o termo apenas
como sinônimo, com a substituição – com estruturas preexistentes,
intercambiáveis e imutáveis– por símbolos convencionais (totalmente adaptados
às suas funções e a seus contextos); com a substituição por outros símbolos que
derivam todo seu valor da própria referência a outros mundos, mundos que não
compartilham nenhuma medida em comum com o mundo da tela.O verdadeiro realista
se recusa a analisar e dissecar a própria visão a priori, seguindo os
esquemas comuns e empregando os bisturis de sempre; ao invés disso, ele transcreve
sua visão, do jeito que ela é e sem intermediários,em celuloide, ao colocar a
câmera em direto contato com a realidade da visão dele.
O “conteúdo”, em seu esforço natural
de se expressar,torna-se forma e linguagem: o organismo vivo não é sem forma
(apenas o artificialmente animado o é). É necessário um ato de fé: no poder natural,
na força vital do interior do universo, algo precisa nascer do mundo sensível e
se expressar, com ingenuidade: a passagem para a existência, para a aparência, dá
forma a esse nascimento automaticamente – mas isso apenas se nenhuma lamentação,
nenhum preconceito, nenhuma complexidade e nenhum (paralisante) mau cheiro da
velha retórica perturbar o jogo, o campo magnético do milagre natural,e se
nenhuma apreensão, impaciência ou falta de fé fizerem com que a mão que segura
a câmera trema. Estamos sofrendo de um sufocamento, de uma intoxicação
retórica:temos de voltar a outro cinema – transcrição em celuloide,pura
“escrita”, estabelecimento de um universo e suas realidades concretas, sem
interrupções pessoais na maquinaria (...). Simplesmente inscrever no filme as manifestações,
os modos de vida e de existência, o pequeno cosmos individual; filmar de forma
calma, documental;deixar o universo viver, enquanto a câmera é reduzida ao papel
de testemunha, de olho. Jean Cocteau estava certo quando introduziu a noção de indiscrição:
isso não poderia ter sido dito de melhor maneira. É preciso tornar-se voyeur.
Quando paramos de procurar por elas (“Você não teria me achado se tivesse
procurado por mim”), as descobertas visuais se dão uma após a outra sem interrupção,na
ligação que fenômenos observados sucessivamente têm entre si, na relação deles
com um olhar do qual sequer suspeitam: eles não estão operando por meio desse
olhar.Eles estão em seu estado natural.
A personalidade do criador se
manifesta, é claro, por sua “escolha” de ângulos e pela forma como ele joga
com a retórica convencional, desde que o que ele queira mostrar seja diferente
de um espetáculo anônimo e exija, se não um aparecimento completo, um olhar
novo, mais curioso e despido de preconceitos, que possa por si só ser
totalmente comensurável com o espetáculo. O universo comanda esse olhar, e o
próprio olhar, ele mesmo impõe e cria esse universo;o universo do criador nada
mais é do que a manifestação,a completa eflorescência desse olhar e modo de
aparecer– olhar que nada mais é do que a aparição de um universo.
Isso é digno de ser retomado ao final
de uma análise cujas necessidades internas nos levaram a uma divisão artificial
do real, cuja existência mesma, absurda e contraditória,não pode ser tratada
diretamente como objeto, mas precisa se materializar ao fim de nosso exame,
como aquela que naturalmente honra nosso exame – como sua prova.Universo e
olhar são uma mesma e única realidade: realidade que só existe por meio do
olhar que dirigimos a ela, e esse olhar, em contrapartida, depende totalmente
de sua relação com a realidade. Realidade indissociável, na qual aparência e
aparição se confundem, onde a visão pode parecer criar questões (os travellings
de Renoir), e as questões parecem estar implicadas na visão – sem
antecedentes ou relação causal. Uma única e mesma realidade com duas fases,
confusae fundida no trabalho criado.Todo o resto é espetáculo.
Post-scriptum:
lugares comuns e verdades básicas.
O filme certamente é uma linguagem, e
uma verdade profundamente significativa. Mas é uma linguagem composta,
precisamente, de símbolos concretos, que resistem a serem reduzidos a fórmulas.
Parece desnecessário relembrar a unidade do quadro, do plano: gravação
irremediável do instante. Aí jaz o erro de toda aproximação literal
(gramáticas, sintaxes, morfologias), não importa que diabos sejam suas
intenções. Invariavelmente, a sistematização negligencia, a priori, a
complexidade da realidade sensível, enquanto monta seu edifício teórico.Neste tipo
de mídia não pode haver gramáticas, ou sintaxes baseadas em regras, mas apenas
rotinas empíricas, generalizações apressadas. Nenhum plano pode ser encaixado em
uma fórmula que não abranja sua rica complexidade– a virtualidade e o poder
que, em sua extrema confusão,constituem a realidade da existência do plano. Se
atentarmos a isso, poderemos discernir algumas das linhas de força que se
orientam como resultado do seguimento de uma direção tomada por
particularidades sensíveis (que permanecem imponderáveis) ao “campo” magnético.
Não existe nada como as palavras, enquanto símbolos abstratos e convencionais,
organizados de acordo com regras estáveis. Uma tomada cinematográfica sempre
permanece no time do acidental, do sucesso momentâneo que não pode se repetir.
Uma frase, por outro lado, pode sempre ser reescrita arbitrariamente.
Convenções sintáticas e retóricas são consubstanciais à palavra, e sua
participação deve ser regida segundo a mesma convicção social, se elas se
permitirem o entendimento mútuo: a cruzada de Jean Paulhan* contra o “terror”
literal encontra sua justificativa nesses fatos. Mas a sintaxe e a retórica, no
filme,são um revestimento artificial lançado sobre o que é vivo,que escapa a
elas, ou sobre aquilo que elas paralisam, congelam e matam: nada de Paulhan é
concebível aqui, quando o terror por si só é a lei. A expressão natural que, em
uma linguagem convencional e artificial, precisa se conformar a suas convenções
e artifícios, demanda uma linguagem sem leis, sempre improvisada, criada, cautelosamente
aventureira:uma improvisação contínua, uma criação perpétua.
*Jean Paulhan (1884-1968) é um famoso
escritor, crítico literário e editor francês. Rivette parece estar se referindo
à sua notável obra de crítica literária As Flores de Tarbes, ou Terror
na Literatura, publicada em 1941.
Texto extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes
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