[sobre
Bonjour Tristesse (1958), de Otto Preminger]
Jacques Rivette
Otto Preminger, autor de
filmes, se é que isto existe, viu-se há uma dúzia de anos numa situação
paradoxal e provavelmente única: a de ter feito, em seus inícios, um filme tão
perfeito que, de certo modo, jamais poderia esperar fazer melhor. Laura [1944]
não tem nada do zigue-zague relampejante de um Cidadão Kane, desde o qual
longas trovoadas não cessam de reverberar ao longe; ele parece mais uma bola de
cristal, tão pura que poderíamos recear estarmos diante da mais imaterial das
bolhas de sabão: mas há muito nos tranquilizamos. Não sei se Preminger é dotado
da inteligência discursiva dos feirantes que recorrem a mil truques em seu
palavrório para disfarçar o pífio conteúdo de sua barraca; no mínimo ele possui
uma de outra espécie, e mais útil nesse ofício: uma inteligência artesanal, que
faz dele o mais hábil de nossos mestres de obra, sabendo avaliar seus materiais
e nem sempre recusando, segundo o célebre conselho, os medíocres, mas
utilizando-os no pleno conhecimento da sua mediocridade.
Talvez seja esse um lado do
segredo que lhe permitiu sobreviver ao primeiro sucesso: fugir da perfeição;
porque ele precisa também, à sua maneira, perseguir uma certa “qualidade da
imperfeição”. Matéria ingrata, apesar das aparências, a desse fraco romance de
pensionista, ao qual faltava tudo, tanto a alma quanto o estilo, quero dizer,
afora os de segunda mão; para dar um corpo a essa obra-prima do pastiche, era
preciso primeiro saber reinventar tudo, com a obrigação suplementar de não
romper o primeiro fio narrativo: numa palavra, devolver o tom da novidade e da
descoberta, ou mesmo da juventude, àquilo que deles mais carecia. Esta é a arte
de Preminger.
Sejamos francos: quase todos
os seus filmes se fundem no desafio, ou mais simplesmente, na trapaça comercial,
ou nos dois ao mesmo tempo; o teste e o escândalo têm, para ele, atrativos
irmãos. Mas não deve ele também sistematicamente se obrigar a procurar a
dificuldade, não deve se proteger de uma facilidade tão inquietante que o deixa
às vezes, ainda aqui, a dois dedos de lhe sucumbir?
Não creiam que advogo contra
mim: esses dois dedos de distância são ainda o bastante para deixar passar
facilmente a mãozinha de nossa musa, e a décima da família, se necessário, só
precisa de um décimo de segundo, ou de um vigésimo quarto, para transformar o
gesto mais banal, mais comum, num milagre da graça. A arte da mise-en-scène é,
em primeiro lugar, uma arte de instaurar o espaço e o tempo desejados²:
proporções perfeitas do quadro, arabescos das atitudes e o papel inteiro de
Jean Seberg, tudo nos conduz a retomar em tom menor a afirmação final de
Bernanos: “Tudo é graça”. Essa graça é justamente daquelas que são eficazes, e
ela acaba por tocar até os fantoches mais rebeldes ao seu encanto: nossos
Juvenais encontrarão aqui o exemplo de uma sátira sem agressividade nem feiura,
de uma crítica sem ilusões mas sem maldade, e ainda mais acirrada por deixar
sempre as chances à vítima e, muito desejosa de vê-la com seus próprios olhos,
ainda por cima lhe entregar o que ela chama de beleza – e que é, com efeito,
sua beleza.
A censura mais engraçada é
provavelmente aquela que, apesar de reconhecer a fidelidade da adaptação, acusa
nosso caro Otto de mostrar diretamente demais e sem pudor aquilo que o romance
encobria com suas pequenas frases de inseto roedor: é como censurar Preminger
por ter substituído as mentiras da má literatura pela verdade do grande cinema,
sendo este a arte da linha reta, ou da curva mais firme, a mais regular³. A
invenção que explode em cada plano desse filme é primeiramente um certo gênio
do atalho: a arte do desenhista (e a passagem de Angel Face [1952] a Bonjour
Tristesse é a de um esboço ao afresco) é saber quais traços são essenciais, quais
devem ser acentuados ou eliminados, quais devem ser às vezes inteiramente
inventados para completarem um rendilhado confuso; a arte do cineasta é a de
saber quais são os elementos, de um espetáculo ou de um fato, indispensáveis ao
equilíbrio da figura, isto é, da cena tal como inscrita em seu lugar definitivo
no filme. Se essa noção de invenção, na qual se resume toda a grande arte, lhes
parece confusa, digamos que ela é precisamente o que separa um Preminger do
autor, por exemplo, de Kanal4, trabalho de escola em que o cuidado é sempre
discernível, e em que o assunto mais alto vira um desenrolar retórico; se é bom
aplicar um método, que seja sem ostentar a aplicação.
A facilidade passa
facilmente por superficial; é o que faz sua força, pois não se desconfia dela;
ela toca o peito antes que ele apareça fendido. Se Preminger, que talvez jamais
tenha escrito uma só linha de seus scripts, é porém plenamente digno do belo
título de autor de filmes, é pelo gênio singular que lhe permite encarnar o
espírito nas criaturas mais teóricas, sejam elas as medíocres marionetes de uma
pequena comédia licenciosa ou de um romance policial qualquer, sejam os
espectros altivos de Bernard Shaw. Carne fraternal, animada por uma mesma
paixão, por um mesmo gosto do absoluto, seja o da infelicidade, o da queda ou o
da revolta; heróis irmãos de seu Pigmaleão, todos seduzidos igualmente pela
aposta, a mesma vontade de negar o impossível, prestes a pagar o preço do
desafio: donde sua tristeza, outro nome da lucidez.
Os nomes reunidos de Ophuls,
Mizoguchi, Astruc, Preminger (ophulsiana é a abertura; astruciana, a farândola
– ou o inverso –; mizoguchiano, o último plano) definem uma nova noção do
cinema “puro”, jogo de espelhos em que o objeto, longe de ser destruído, revela
e superpõe todos os seus rostos. Levando nossa arte ao ponto a que Picasso
conduziu a pintura, essa ideia do cinema moderno é também um absoluto, ao qual
tudo pode ser sacrificado. Eis, aliás, o perigo: eis por que, por maiores que
sejam estes cineastas, o único que permanece exemplar é Rossellini, que,
possuindo também este segredo, ousa sacrificá-lo a outra coisa, para servir
àquilo que redireciona5 seu poder de tudo submeter às suas metamorfoses.
Notas:
1
“Sainte Cécile”, Cahiers du Cinéma, n.82, abril de 1958, pp. 52-54. Traduzido
do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
2 No original, “l’art de la mise-en-scène est d’abord un art de mise en place, ou en temps, voulus”. [N.d.T.]
3 No original, “... la mieux soumise aux flancs du vase”. [N.d.T.]
4 Kanal (1957) era o segundo longa-metragem de Andrzej Wajda. [N.d.T.]
5 No original, “tire ailleurs”. [N.d.T.]
2 No original, “l’art de la mise-en-scène est d’abord un art de mise en place, ou en temps, voulus”. [N.d.T.]
3 No original, “... la mieux soumise aux flancs du vase”. [N.d.T.]
4 Kanal (1957) era o segundo longa-metragem de Andrzej Wajda. [N.d.T.]
5 No original, “tire ailleurs”. [N.d.T.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário