terça-feira, 26 de abril de 2016

Du côté de chez Antoine ¹


[sobre Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut]

Jacques Rivette

Os pivetes [Les mistons, 1957] era bom; Os incompreendidos [Les 400 coups, 1959] é melhor. De um filme ao outro, nosso amigo François deu o salto decisivo: a grande distância da maturidade. Como vemos, ele não perde tempo.
Com Os incompreendidos, entramos na nossa infância como em uma casa abandonada desde a Guerra. [Na] nossa infância, mesmo que se trate, antes de tudo, da de François Truffaut: as consequências de uma mentira estúpida, a fuga abortada, a humilhação, a revelação da injustiça; não, não há infância “preservada”. Falando de si, parece que ele fala também de nós: é o sinal da verdade e a recompensa do verdadeiro classicismo, que sabe se limitar a seu objeto, mas o vê abranger bruscamente todo o campo dos possíveis.
A autobiografia não é, pelas razões que se pode deduzir, um gênero muito praticado no cinematógrafo; não é isso, porém, que deve nos surpreender, e sim a serenidade, a retenção e a igualdade de vozes com as quais um passado tão análogo ao seu é evocado. O François Truffaut que eu encontrava, junto com Jean-Luc Godard, no final de 1949, no Parnasse, na casa de Froeschel ou no Minotaure, já tinha aprendido todas as façanhas²; minha palavra: nós falávamos mais de cinema, de filmes americanos, de um Bogart que passava no “Moulin de la Chanson”³, do que de nós mesmos; ou o fazíamos por alusões, e isto bastava. Ou então, bruscamente, uma foto o desmascarava três anos antes, no tiro ao alvo no parque: arrebatado, pálido, Hossein diminuído, com Robert Lachenay apoiado em seu ombro, realizado; em outros termos, as três fileiras rituais de uma classe fossilizada.4
parecer com verdadeiras lembranças, uma verdadeira memória. Agora tenho quase certeza disso; porque, na tela, reconheci tudo, reencontrei tudo. A madeleine de Proust lhe restituía apenas a sua infância. Mas com uma casca de banana, transformada em estrela do mar no fundo do prato, François Truffaut faz muito melhor; e todos os tempos são redescobertos de uma só vez, o meu, o teu, o vosso: um só tempo, na luz que não encontro adjetivo para qualificar – [pois é] inqualificável –, da infância.
Vejamos bem: este filme é pessoal, autobiográfico, mas nunca impudico. Não há nada que seja exibicionista; Prisão [Fängelse, 1949, de Ingmar Bergman] é igualmente belo, mas trata-se de uma outra beleza: ele é belo como Bombard segurando sua Paillard com uma só mão para filmar, em meio ao Atlântico, seu rosto inchado e tomado pela barba5. A força de François Truffaut é nunca falar de si diretamente, mas se unir pacientemente a outro jovem rapaz – que se parece com ele talvez como um irmão, mas um irmão objetivo –, se submeter a ele e reconstruir humildemente, a partir de uma experiência pessoal, uma realidade igualmente objetiva, que ele filma em seguida com o mais perfeito respeito. Tal método, no cinema, carrega um belíssimo nome (e é uma pena se o próprio François Truffaut o desconhece): ele se chama Flaherty. E a prova dos nove da verdade desse método, e da verdade do filme, pura e simplesmente, é a admirável cena da psicóloga – impossível, observemos de passagem, nas condições vetustas de realização que queriam nos obrigar a manter a todo custo –, na qual a mais completa improvisação corresponde à mais rigorosa reconstrução, na qual a confissão confirma a invenção. Diálogo e mise-en-scène, ao termo de uma ascese discreta, culminam, enfim, na verdade do registro ao vivo; o cinema reinventa aí a televisão, e esta, por sua vez, o consagra cinema; não há mais lugar, doravante, a partir de então para nada além dos três admiráveis planos finais, planos de pura duração, de perfeita redenção.
O filme inteiro avança para este instante, e se desfaz desfazendo-se do tempo, pouco a pouco, para encontrar a duração: a ideia de extensão e de brevidade, que tanto inquieta François Truffaut, parece, por fim, não ter sentido algum em seu cinema; ou, ao contrário, talvez fosse necessário primeiro uma tal obsessão da extensão, do tempo morto, uma tal abundância de cortes, de choques e de rupturas, para se livrar enfim do antigo tempo dos cronômetros e encontrar o tempo verdadeiro, o da jubilação mozartiana (que Bresson tanto buscou antes de poder atingir). Pois aqui está um filme como poucos (mesmo que muitos tentem, mais ou menos habilmente – e habilmente demais): [um filme] com um ponto de partida e um ponto de chegada, e entre os dois, toda uma distância percorrida (tão vasta quanto a que separa Irène Girard, em seu jantar de recepção, de Ingrid Bergman na janela da cela de Europa 51 [1952, de Roberto Rossellini]). Um ponto de partida que pega o tempo já andando: ainda construído e minutado, mas já secretamente ferido em sua própria precipitação e em seu mecanismo. E um ponto de chegada que não é a conclusão mais ou menos arbitrária de uma intriga mais ou menos amarrada, mas um degrau onde se retoma o fôlego, a respiração humana, antes de mergulhar novamente no tempo do real, cujo sentido foi reconquistado.
Basta deste tom – me culpo por falar de forma tão pomposa de um filme tão desprovido de retórica –, pois Os Incompreendidos é também o triunfo da simplicidade.
Não da pobreza ou da ausência de invenção, muito pelo contrário; para quem se coloca de saída no centro do círculo, não há necessidade alguma de buscar desesperadamente sua quadratura. A coisa mais preciosa no cinema, e a mais frágil, é também aquilo que mais desaparece a cada dia sob o reino dos competentes: uma certa pureza do olhar e uma inocência da câmera, que se apresentam aqui como se nunca tivessem sido perdidas. Talvez baste acreditar que as coisas são o que são, para simplesmente vê-las existirem na tela do mesmo modo que em sua intimidade; e teria essa crença se perdido em outros? O estado de graça do cineasta está neste olho e neste pensamento que se abrem ao centro das coisas: estar em primeiro lugar no interior do cinema, senhor do coração de uma área cujas fronteiras poderão em seguida se estender ao infinito – e isto se chama Renoir
Poderíamos insistir ainda quanto à extraordinária ternura com a qual François Truffaut fala da crueldade, que só pode ser comparada com a extraordinária suavidade com a qual Franju fala da loucura. Tanto aqui quanto lá, uma força quase insuportável nasce do emprego perpétuo da litotes; e a recusa da eloquência, da violência e da explicação dá a cada imagem um batimento e um tremor interno que se impõem bruscamente em alguns breves lampejos, reluzentes como uma lâmina. Poderíamos falar, como se deve, de Vigo ou de Rossellini, ou de forma ainda mais justa, de Os Pivetes ou de Une Visite [1955]. Todas essas referências, por fim, não querem dizer muita coisa, e é preciso se apressar para fazê-las enquanto ainda é tempo. Queria apenas dizer, da forma mais simples possível, que há agora entre nós não mais um iniciante talentoso e promissor, mas um verdadeiro cineasta francês, equivalente aos maiores, e que se chama François Truffaut.

Notas:
1 Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, n. 95, maio de 1959, pp. 37-39. Tradução de Tatiana Monassa e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”. O título faz referência ao primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust: Du côté de chez Swann (1913). Em português: No caminho de Swann. (Em Busca do tempo perdido vol.1. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. Rio de Janeiro: Globo, 2006) Uma vez que a versão brasileira do título não dá o sentido exato da expressão, e para preservar a referência, optamos por deixar no original. [N.d.T]
2 Em francês: “avait déjà fait l’apprentissage des 400 coups”, referência ao título original de Os incompreendidos: Les 400 coups. A expressão “faire les 400 coups” significa “aprontar todas”, viver de forma rebelde. Além do jogo de palavras, o autor diz com isso que, além de já ter passado pela época mais conturbada de sua vida, Truffaut já tinha feito o aprendizado de estratégias básicas para “se sair bem”. [N.d.T.]
3 Cabaré artístico no bairro de Montmartre, em Paris, fundado no início do século XX e transformado em cinema em 1929. [N.d.E.]
 4 Robert Lachenay foi um grande amigo e parceiro de Truffaut, desde os tempos de colégio, tendo sido assistente de direção em seu primeiro filme. Já Robert Hossein, ator e cineasta, não era muito apreciado por Truffaut, que escreveu majoritariamente críticas negativas sobre seus filmes. [N.d.E]
5 Alain Bombard, biólogo, é conhecido por sua travessia solitária do Oceano Atlântico a bordo de um bote pneumático e por suas teorias de sobrevida em alto mar. Paillard é o antigo nome da fabricante de câmeras Bolex, famosa por seus modelos câmera 16mm leves, muito utilizados em documentários e produções ágeis ou de baixo orçamento. [N.d.E.]

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