Jacques Rivette
Os pivetes [Les mistons,
1957] era bom; Os incompreendidos [Les 400 coups, 1959] é melhor. De um filme
ao outro, nosso amigo François deu o salto decisivo: a grande distância da
maturidade. Como vemos, ele não perde tempo.
Com Os incompreendidos,
entramos na nossa infância como em uma casa abandonada desde a Guerra. [Na]
nossa infância, mesmo que se trate, antes de tudo, da de François Truffaut: as
consequências de uma mentira estúpida, a fuga abortada, a humilhação, a
revelação da injustiça; não, não há infância “preservada”. Falando de si,
parece que ele fala também de nós: é o sinal da verdade e a recompensa do
verdadeiro classicismo, que sabe se limitar a seu objeto, mas o vê abranger
bruscamente todo o campo dos possíveis.
A autobiografia não é, pelas
razões que se pode deduzir, um gênero muito praticado no cinematógrafo; não é
isso, porém, que deve nos surpreender, e sim a serenidade, a retenção e a
igualdade de vozes com as quais um passado tão análogo ao seu é evocado. O
François Truffaut que eu encontrava, junto com Jean-Luc Godard, no final de
1949, no Parnasse, na casa de Froeschel ou no Minotaure, já tinha aprendido
todas as façanhas²; minha palavra: nós falávamos mais de cinema, de filmes
americanos, de um Bogart que passava no “Moulin de la Chanson”³, do que de nós
mesmos; ou o fazíamos por alusões, e isto bastava. Ou então, bruscamente, uma
foto o desmascarava três anos antes, no tiro ao alvo no parque: arrebatado,
pálido, Hossein diminuído, com Robert Lachenay apoiado em seu ombro, realizado;
em outros termos, as três fileiras rituais de uma classe fossilizada.4
parecer com verdadeiras
lembranças, uma verdadeira memória. Agora tenho quase certeza disso; porque, na
tela, reconheci tudo, reencontrei tudo. A madeleine de Proust lhe restituía
apenas a sua infância. Mas com uma casca de banana, transformada em estrela do
mar no fundo do prato, François Truffaut faz muito melhor; e todos os tempos
são redescobertos de uma só vez, o meu, o teu, o vosso: um só tempo, na luz que
não encontro adjetivo para qualificar – [pois é] inqualificável –, da infância.
Vejamos bem: este filme é
pessoal, autobiográfico, mas nunca impudico. Não há nada que seja
exibicionista; Prisão [Fängelse, 1949, de Ingmar Bergman] é igualmente belo,
mas trata-se de uma outra beleza: ele é belo como Bombard segurando sua
Paillard com uma só mão para filmar, em meio ao Atlântico, seu rosto inchado e
tomado pela barba5. A força de François Truffaut é nunca falar de si
diretamente, mas se unir pacientemente a outro jovem rapaz – que se parece com
ele talvez como um irmão, mas um irmão objetivo –, se submeter a ele e
reconstruir humildemente, a partir de uma experiência pessoal, uma realidade
igualmente objetiva, que ele filma em seguida com o mais perfeito respeito. Tal
método, no cinema, carrega um belíssimo nome (e é uma pena se o próprio
François Truffaut o desconhece): ele se chama Flaherty. E a prova dos nove da
verdade desse método, e da verdade do filme, pura e simplesmente, é a admirável
cena da psicóloga – impossível, observemos de passagem, nas condições vetustas
de realização que queriam nos obrigar a manter a todo custo –, na qual a mais
completa improvisação corresponde à mais rigorosa reconstrução, na qual a
confissão confirma a invenção. Diálogo e mise-en-scène, ao termo de uma ascese
discreta, culminam, enfim, na verdade do registro ao vivo; o cinema reinventa
aí a televisão, e esta, por sua vez, o consagra cinema; não há mais lugar, doravante,
a partir de então para nada além dos três admiráveis planos finais, planos de
pura duração, de perfeita redenção.
O filme inteiro avança para
este instante, e se desfaz desfazendo-se do tempo, pouco a pouco, para
encontrar a duração: a ideia de extensão e de brevidade, que tanto inquieta
François Truffaut, parece, por fim, não ter sentido algum em seu cinema; ou, ao
contrário, talvez fosse necessário primeiro uma tal obsessão da extensão, do
tempo morto, uma tal abundância de cortes, de choques e de rupturas, para se
livrar enfim do antigo tempo dos cronômetros e encontrar o tempo verdadeiro, o
da jubilação mozartiana (que Bresson tanto buscou antes de poder atingir). Pois
aqui está um filme como poucos (mesmo que muitos tentem, mais ou menos habilmente
– e habilmente demais): [um filme] com um ponto de partida e um ponto de
chegada, e entre os dois, toda uma distância percorrida (tão vasta quanto a que
separa Irène Girard, em seu jantar de recepção, de Ingrid Bergman na janela da
cela de Europa 51 [1952, de Roberto Rossellini]). Um ponto de partida que pega
o tempo já andando: ainda construído e minutado, mas já secretamente ferido em
sua própria precipitação e em seu mecanismo. E um ponto de chegada que não é a
conclusão mais ou menos arbitrária de uma intriga mais ou menos amarrada, mas
um degrau onde se retoma o fôlego, a respiração humana, antes de mergulhar
novamente no tempo do real, cujo sentido foi reconquistado.
Basta deste tom – me culpo
por falar de forma tão pomposa de um filme tão desprovido de retórica –, pois
Os Incompreendidos é também o triunfo da simplicidade.
Não da pobreza ou da
ausência de invenção, muito pelo contrário; para quem se coloca de saída no
centro do círculo, não há necessidade alguma de buscar desesperadamente sua
quadratura. A coisa mais preciosa no cinema, e a mais frágil, é também aquilo
que mais desaparece a cada dia sob o reino dos competentes: uma certa pureza do
olhar e uma inocência da câmera, que se apresentam aqui como se nunca tivessem
sido perdidas. Talvez baste acreditar que as coisas são o que são, para
simplesmente vê-las existirem na tela do mesmo modo que em sua intimidade; e
teria essa crença se perdido em outros? O estado de graça do cineasta está
neste olho e neste pensamento que se abrem ao centro das coisas: estar em
primeiro lugar no interior do cinema, senhor do coração de uma área cujas
fronteiras poderão em seguida se estender ao infinito – e isto se chama Renoir
Poderíamos insistir ainda
quanto à extraordinária ternura com a qual François Truffaut fala da crueldade,
que só pode ser comparada com a extraordinária suavidade com a qual Franju fala
da loucura. Tanto aqui quanto lá, uma força quase insuportável nasce do emprego
perpétuo da litotes; e a recusa da eloquência, da violência e da explicação dá
a cada imagem um batimento e um tremor interno que se impõem bruscamente em
alguns breves lampejos, reluzentes como uma lâmina. Poderíamos falar, como se
deve, de Vigo ou de Rossellini, ou de forma ainda mais justa, de Os Pivetes ou
de Une Visite [1955]. Todas essas referências, por fim, não querem dizer muita
coisa, e é preciso se apressar para fazê-las enquanto ainda é tempo. Queria
apenas dizer, da forma mais simples possível, que há agora entre nós não mais
um iniciante talentoso e promissor, mas um verdadeiro cineasta francês,
equivalente aos maiores, e que se chama François Truffaut.
Notas:
1 Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma,
n. 95, maio de 1959, pp. 37-39. Tradução de Tatiana Monassa e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não
Somos Inocentes”. O título faz referência ao primeiro volume de Em busca
do tempo perdido, de Marcel Proust: Du côté de chez Swann (1913). Em português:
No caminho de Swann. (Em Busca do tempo perdido vol.1. No caminho de Swann.
Tradução de Mario Quintana. Rio de Janeiro: Globo, 2006) Uma vez que a versão
brasileira do título não dá o sentido exato da expressão, e para preservar a
referência, optamos por deixar no original. [N.d.T]2 Em francês: “avait déjà fait l’apprentissage des 400 coups”, referência ao título original de Os incompreendidos: Les 400 coups. A expressão “faire les 400 coups” significa “aprontar todas”, viver de forma rebelde. Além do jogo de palavras, o autor diz com isso que, além de já ter passado pela época mais conturbada de sua vida, Truffaut já tinha feito o aprendizado de estratégias básicas para “se sair bem”. [N.d.T.]
3 Cabaré artístico no bairro de Montmartre, em Paris, fundado no início do século XX e transformado em cinema em 1929. [N.d.E.]
4 Robert Lachenay foi um grande amigo e parceiro de Truffaut, desde os tempos de colégio, tendo sido assistente de direção em seu primeiro filme. Já Robert Hossein, ator e cineasta, não era muito apreciado por Truffaut, que escreveu majoritariamente críticas negativas sobre seus filmes. [N.d.E]
5 Alain Bombard, biólogo, é conhecido por sua travessia solitária do Oceano Atlântico a bordo de um bote pneumático e por suas teorias de sobrevida em alto mar. Paillard é o antigo nome da fabricante de câmeras Bolex, famosa por seus modelos câmera 16mm leves, muito utilizados em documentários e produções ágeis ou de baixo orçamento. [N.d.E.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário