por Jacques Rivette
(Les
mauvaises rencontres). 1955. Les Films Marceau (84 minutos). Produção: Edmond Ténoudji (não
creditado). Roteiro: Alexandre Astruc e Roland Laudenbach, baseado na
novela Une sacrée salade, de Cécil Saint-Laurent. Fotografia:
Robert Le Febvre (P/B). Música: Maurice Le Roux. Cenografia: Max Douy.
Montagem: Maurice Serein. Elenco: Jean Claude Pascal (Blaise Walter), Anouk
Aimée (Catherine Racan), Gaby Sylvia (Hélène Ducouret), Philippe Lemaire (Alain
Bergère), Yves Robert (inspetor Forbin), Giani Esposito (Pierre Jaeger), Michel
Piccoli (um inspetor), Claude Dauphin (doutor Jacques Daniéli).
A frivolidade não é o seu forte: esta seria, naturalmente, a primeira frase de um Retrato de A.A.; e não seria deslocada, porque raramente filme assemelhou-se mais ao seu autor. O que faz a juventudade, e creio que não se trata somente da nossa geração, não são, de forma alguma, como supõem os tagarelas boulevardianos, a empolgação, a imprudência, a frivolidade, mas ao contrário a gravidade, o gosto pela discussão moral, o questionamento de tudo e de si mesmo. Enfim, eis um assunto e um metteur en scène que se complementam: “um filme jovem, por um jovem, para os jovens”, aí está, se estivesse encarregado da publicidade de Les mauvaises rencontres, o slogan que eu exibiria sem vergonha.
Claro, é justamente essa gravidade, a seriedade do tom que desagrada a alguns; como, diante de uma recepção condescendente de um grupo bem parisiense, não evocar as estréias de A Regra do Jogo e de As Damas do Bois de Boulogne? Tanto num caso como no outro, a mesma hostilidade irônica de um público perturbado em seu conforto e que se imagina secretamente visado. Por uma vez, os canalhas não estão na tela, mas entre os juízes: a elite reconhece com dificuldade uma tal inversão de elementos.
Se o público ama a observação do detalhe, ele foge da exatidão profunda; se aprecia a verossimilhança, tem horror à verdade, ainda que ela esteja em outro, pois contradiz a idéia que ele gostaria de fazer. Mas é justamente a exatidão que faz a força de Les mauvaises rencontres; Astruc, antes de provar qualquer coisa, irá primeiro descrever com justeza; é pela sua precisão que nos move e convence. O que me impressiona é que ele discute os heróis de seu filme no mesmo tom que buscamos entre amigos definir a personalidade de uma relação comum; vejo a evidência da honestidade do autor; em seu filme não há desvios nem subterfúgios; não sendo construído como a maior parte, para enganar ao público pelas maquinações da engrenagem dramática, não colocando um fim em sua ambição, uma vez que já sabemos onde todas essas abordagens nos levarão, não necessitando manipular as situações para obter um desfecho, ele deseja apenas ser a relação de uma experiência: “eis o que vi, o que acreditei compreender, o que me ocorreu”. Ele reconhece o tema romanesco fundamental de toda a literatura ocidental, dos “anos de aprendizagem” (pois todo grande romance é também profundamente didático); o romance do século XX, como sabemos, não conseguiu assumir a sucessão do XIX; sabemos também que esta sucessão, foi o cinema quem a assegurou. Como Hitchcock continua o romance inglês, ou Hawks a Stevenson, Astruc sucede aqui com o moderno “Educação Sentimental” que grande parte dos romancistas contemporâneos falham em escrever.
O que exigimos da arte? Que nos justifique; que fixando, ela substancie; que mostrando, ela demonstre. Les mauvaises rencontres abre nossos olhos: vemos Paris e sua fauna como nunca havíamos visto. Quem não se sentirá tocado no coração por esse discurso em que reconhecerá claramente o que não podia falar para si mesmo? Que esta descrição aumente e embeleze o que ela descreve, pode ser, não importa; sem perder a verdade, ela dá sentido a algo que talvez antes não o tivesse: a rigor, ela sublima sua matéria.
Qual a atitude de Astruc? É, dizem as más línguas, a de um formalista. Observo, ao contrário, que é a de quem deseja dizer alguma coisa cara ao seu coração, que quer ser ouvido e que se assegura acima de tudo que todos os elementos da obra se submetam à sua proposta. Seus esforços convergem todos numa única direção: ser claro, preciso, inequívoco. E é sem dúvida essa ausência de ambigüidade que incomoda justamente a crítica “impressionista”, sempre mais à vontade na ausência de ambições confessas. Quem fala nesse tom quer antes de tudo ser ouvido, e o merece. A beleza é exatidão; toda a ambição de Astruc, repito, era fazer um filme exato; as únicas repreensões verdadeiras só podem ser feitas nesse domínio; mas não são os colunistas e jornalistas que podem questionar a veracidade do que ignoram, a justeza da descrição de um mundo que não é os seus. O importante é, ao contrário, que a juventude se reconheça, e não só pelos fatos, as personagens, as intenções, mas pelo próprio tom, a elevação do ponto de vista, a preocupação profunda da história.
Como a do romancista, a arte de Astruc é didática: como toda descrição de Goethe ou de Balzac, a de Les mauvaises rencontres não é jamais fortuita, mas orientadas no decorrer de sua duração por uma idéia abstrata; cada episódio, cada frase, cada plano intervém somente quando exigido pelo próprio movimento do pensamento norteador. A exatidão do detalhe está ligada à precisão geométrica da figura sobre a qual todos as aparências se articulam. (E não é por acaso, já que Astruc foi o que melhor falou da necessidade de abstração em qualquer mise em scène.) Uma certa ostentação dessa arquitetura secreta é absolutamente parte dessa honestidade suplementar do autor, que informou de imediato ao público o plano do local onde se passa a história, que é o do essencial: onde todas as ações empreendidas e todas as palavras têm significado, e apenas um: ninguém mente para ninguém. Se esta franqueza desconcerta um público acostumado a viver na mentira, no equívoco, no compromisso, de quem é a culpa? Não há aqui o quê interpretar, supor ou imaginar de subentendidos e segundas intenções, mas a crer na palavra das pessoas; é isso o que nossos contemporâneos perderam como hábito, não crendo nem em Deus, nem no diabo, e rindo quando ouvem falar no pecado: é necessário crer, aliás, que tais verdades são muito duras para os ouvidos castos, já que não demoraram a cortá-los.
Mais uma vez, nada, nada está aqui feito para surpreender mas para convencer: a lógica de construção é tal que, se alguém entra no jogo do filme, é impossível ver quaisquer acrobacias, mas uma concatenação rigorosa em que o arbitrário não tem lugar. Eu desafio qualquer um a imaginar uma outra sucessão de planos e de episódios senão aquela sem distorcer imediatamente a verdade da história. O mundo da arte é o da necessidade; o acaso nada possui em comum com ele; ela toma parte em tudo; a emoção, a beleza estão vinculados a ela. E o sublime surge por fim de um acordo entre a justeza e a lógica, entre a verdade do traço e a precisão da arquitetura; eu mantenho que esse acordo é praticamente constante ao longo de Les mauvaises rencontres. A íntima conjugação de um gesto, de um movimento de câmera, de uma frase criam de peça em peça, in vitro, o sublime cinematográfico. E talvez vê-se às vezes até o movimento das mãos; que ao mesmo se reconheça o mérito do prestidigitamateur[1] de pôr-se à prova ao mais difícil.
Fala-se da abundância de efeitos; mas o efeito é justamente o nome técnico, no jargão do ofício, da vontade de sublime; vejam Hitchcock, Welles ou Lang. A abundância de efeitos, sinal de uma alma que naturalmente voltada para a grandeza, só é criticada caso falhe, e Shakespeare permite-se uma imagem por versos. Todos os movimentos de câmera se submetem aqui aos movimentos da alma; a mise en scène é toda fundada sobre a crença da correspondência, aos eflúvios secretos que emanam dos seres, ao poder, na forma própria do filme, de seus espíritos, dos quais as ondas atraem ou repelem a câmera. Essa mística do travelling-grua parecerá, eu suponho, bastante ridícula, mas este filme é sem dúvida incompreesível para quem não acredita na realidade quase corporal das idéias, nas suas lutas e nas suas afinidades misteriosas, no seu movimento perpétuo que é, estritamente falando, o lirismo. Pois tanta precisão, tanta exatidão são finalmente as de um apaixonado; não é no tremor das mãos que este se reconhece, mas numa certa tensão inquieta, num domínio tenso sobre os reflexos da carne, que são evidentes aqui até o desconforto.
Ainda uma palavra sobre os risos: quando Anouk Aimée diz: “o odor da floresta virgem me salta aos olhos”, é que ela verdadeiramente sente saltar sobre ela uma força desconhecida por ela.
Eles admitiriam prontamente em Dostoiévski ou Barbey d’Aurevilluy (Le rideau cramoisi é a prova) que o que os choca são seres humanos com a mesma aparência que eles mesmos, portando o mesmo traje; e sem dúvida exprimiriam em suas zombarias o medo dos sentimentos fortes em seus contemporâneos.
Nota:
[1] Palavra usada no sentido em que Cocteau emprega a de acrobata.
(Cahiers du Cinéma nº 52, novembro 1955, pp. 45-47. Traduzido por Marlon Krüger)
Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/FOCO4/rencontres.htm
A frivolidade não é o seu forte: esta seria, naturalmente, a primeira frase de um Retrato de A.A.; e não seria deslocada, porque raramente filme assemelhou-se mais ao seu autor. O que faz a juventudade, e creio que não se trata somente da nossa geração, não são, de forma alguma, como supõem os tagarelas boulevardianos, a empolgação, a imprudência, a frivolidade, mas ao contrário a gravidade, o gosto pela discussão moral, o questionamento de tudo e de si mesmo. Enfim, eis um assunto e um metteur en scène que se complementam: “um filme jovem, por um jovem, para os jovens”, aí está, se estivesse encarregado da publicidade de Les mauvaises rencontres, o slogan que eu exibiria sem vergonha.
Claro, é justamente essa gravidade, a seriedade do tom que desagrada a alguns; como, diante de uma recepção condescendente de um grupo bem parisiense, não evocar as estréias de A Regra do Jogo e de As Damas do Bois de Boulogne? Tanto num caso como no outro, a mesma hostilidade irônica de um público perturbado em seu conforto e que se imagina secretamente visado. Por uma vez, os canalhas não estão na tela, mas entre os juízes: a elite reconhece com dificuldade uma tal inversão de elementos.
Se o público ama a observação do detalhe, ele foge da exatidão profunda; se aprecia a verossimilhança, tem horror à verdade, ainda que ela esteja em outro, pois contradiz a idéia que ele gostaria de fazer. Mas é justamente a exatidão que faz a força de Les mauvaises rencontres; Astruc, antes de provar qualquer coisa, irá primeiro descrever com justeza; é pela sua precisão que nos move e convence. O que me impressiona é que ele discute os heróis de seu filme no mesmo tom que buscamos entre amigos definir a personalidade de uma relação comum; vejo a evidência da honestidade do autor; em seu filme não há desvios nem subterfúgios; não sendo construído como a maior parte, para enganar ao público pelas maquinações da engrenagem dramática, não colocando um fim em sua ambição, uma vez que já sabemos onde todas essas abordagens nos levarão, não necessitando manipular as situações para obter um desfecho, ele deseja apenas ser a relação de uma experiência: “eis o que vi, o que acreditei compreender, o que me ocorreu”. Ele reconhece o tema romanesco fundamental de toda a literatura ocidental, dos “anos de aprendizagem” (pois todo grande romance é também profundamente didático); o romance do século XX, como sabemos, não conseguiu assumir a sucessão do XIX; sabemos também que esta sucessão, foi o cinema quem a assegurou. Como Hitchcock continua o romance inglês, ou Hawks a Stevenson, Astruc sucede aqui com o moderno “Educação Sentimental” que grande parte dos romancistas contemporâneos falham em escrever.
O que exigimos da arte? Que nos justifique; que fixando, ela substancie; que mostrando, ela demonstre. Les mauvaises rencontres abre nossos olhos: vemos Paris e sua fauna como nunca havíamos visto. Quem não se sentirá tocado no coração por esse discurso em que reconhecerá claramente o que não podia falar para si mesmo? Que esta descrição aumente e embeleze o que ela descreve, pode ser, não importa; sem perder a verdade, ela dá sentido a algo que talvez antes não o tivesse: a rigor, ela sublima sua matéria.
Qual a atitude de Astruc? É, dizem as más línguas, a de um formalista. Observo, ao contrário, que é a de quem deseja dizer alguma coisa cara ao seu coração, que quer ser ouvido e que se assegura acima de tudo que todos os elementos da obra se submetam à sua proposta. Seus esforços convergem todos numa única direção: ser claro, preciso, inequívoco. E é sem dúvida essa ausência de ambigüidade que incomoda justamente a crítica “impressionista”, sempre mais à vontade na ausência de ambições confessas. Quem fala nesse tom quer antes de tudo ser ouvido, e o merece. A beleza é exatidão; toda a ambição de Astruc, repito, era fazer um filme exato; as únicas repreensões verdadeiras só podem ser feitas nesse domínio; mas não são os colunistas e jornalistas que podem questionar a veracidade do que ignoram, a justeza da descrição de um mundo que não é os seus. O importante é, ao contrário, que a juventude se reconheça, e não só pelos fatos, as personagens, as intenções, mas pelo próprio tom, a elevação do ponto de vista, a preocupação profunda da história.
Como a do romancista, a arte de Astruc é didática: como toda descrição de Goethe ou de Balzac, a de Les mauvaises rencontres não é jamais fortuita, mas orientadas no decorrer de sua duração por uma idéia abstrata; cada episódio, cada frase, cada plano intervém somente quando exigido pelo próprio movimento do pensamento norteador. A exatidão do detalhe está ligada à precisão geométrica da figura sobre a qual todos as aparências se articulam. (E não é por acaso, já que Astruc foi o que melhor falou da necessidade de abstração em qualquer mise em scène.) Uma certa ostentação dessa arquitetura secreta é absolutamente parte dessa honestidade suplementar do autor, que informou de imediato ao público o plano do local onde se passa a história, que é o do essencial: onde todas as ações empreendidas e todas as palavras têm significado, e apenas um: ninguém mente para ninguém. Se esta franqueza desconcerta um público acostumado a viver na mentira, no equívoco, no compromisso, de quem é a culpa? Não há aqui o quê interpretar, supor ou imaginar de subentendidos e segundas intenções, mas a crer na palavra das pessoas; é isso o que nossos contemporâneos perderam como hábito, não crendo nem em Deus, nem no diabo, e rindo quando ouvem falar no pecado: é necessário crer, aliás, que tais verdades são muito duras para os ouvidos castos, já que não demoraram a cortá-los.
Mais uma vez, nada, nada está aqui feito para surpreender mas para convencer: a lógica de construção é tal que, se alguém entra no jogo do filme, é impossível ver quaisquer acrobacias, mas uma concatenação rigorosa em que o arbitrário não tem lugar. Eu desafio qualquer um a imaginar uma outra sucessão de planos e de episódios senão aquela sem distorcer imediatamente a verdade da história. O mundo da arte é o da necessidade; o acaso nada possui em comum com ele; ela toma parte em tudo; a emoção, a beleza estão vinculados a ela. E o sublime surge por fim de um acordo entre a justeza e a lógica, entre a verdade do traço e a precisão da arquitetura; eu mantenho que esse acordo é praticamente constante ao longo de Les mauvaises rencontres. A íntima conjugação de um gesto, de um movimento de câmera, de uma frase criam de peça em peça, in vitro, o sublime cinematográfico. E talvez vê-se às vezes até o movimento das mãos; que ao mesmo se reconheça o mérito do prestidigitamateur[1] de pôr-se à prova ao mais difícil.
Fala-se da abundância de efeitos; mas o efeito é justamente o nome técnico, no jargão do ofício, da vontade de sublime; vejam Hitchcock, Welles ou Lang. A abundância de efeitos, sinal de uma alma que naturalmente voltada para a grandeza, só é criticada caso falhe, e Shakespeare permite-se uma imagem por versos. Todos os movimentos de câmera se submetem aqui aos movimentos da alma; a mise en scène é toda fundada sobre a crença da correspondência, aos eflúvios secretos que emanam dos seres, ao poder, na forma própria do filme, de seus espíritos, dos quais as ondas atraem ou repelem a câmera. Essa mística do travelling-grua parecerá, eu suponho, bastante ridícula, mas este filme é sem dúvida incompreesível para quem não acredita na realidade quase corporal das idéias, nas suas lutas e nas suas afinidades misteriosas, no seu movimento perpétuo que é, estritamente falando, o lirismo. Pois tanta precisão, tanta exatidão são finalmente as de um apaixonado; não é no tremor das mãos que este se reconhece, mas numa certa tensão inquieta, num domínio tenso sobre os reflexos da carne, que são evidentes aqui até o desconforto.
Ainda uma palavra sobre os risos: quando Anouk Aimée diz: “o odor da floresta virgem me salta aos olhos”, é que ela verdadeiramente sente saltar sobre ela uma força desconhecida por ela.
Eles admitiriam prontamente em Dostoiévski ou Barbey d’Aurevilluy (Le rideau cramoisi é a prova) que o que os choca são seres humanos com a mesma aparência que eles mesmos, portando o mesmo traje; e sem dúvida exprimiriam em suas zombarias o medo dos sentimentos fortes em seus contemporâneos.
Nota:
[1] Palavra usada no sentido em que Cocteau emprega a de acrobata.
(Cahiers du Cinéma nº 52, novembro 1955, pp. 45-47. Traduzido por Marlon Krüger)
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