(sobre
Suplício de uma alma)
Jacques Rivette
O primeiro ponto que
impressiona o espectador desprevenido, após alguns minutos de projeção, é o
aspecto de diagrama, ou quase de exposição, instantaneamente assumido pelo
desenrolar das imagens: como se o que assistíssemos fosse menos a mise en scène
de um roteiro e mais a simples leitura deste roteiro, apresentada a nós como
tal, sem ornamento. Sem, tampouco, qualquer comentário pessoal por parte do
narrador. Assim, ficaríamos tentados a falar de uma mise en scène puramente
objetiva, se tal mise en scène fosse possível: mais prudente, entretanto, é
acreditar que se trata de algum estratagema, e aguardar o que se segue.
O segundo ponto, em
princípio, parece confirmar a primeira impressão: é a proliferação de recusas
que sustentam a própria concepção do filme, e que possivelmente a constituem. A
recusa, flagrante, da verossimilhança, tanto na trama quanto nesta outra
verossimilhança, mais artificial, da construção das situações, da preparação,
da atmosfera, que usualmente permite aos roteiristas do mundo inteiro incluir,
sem dificuldade alguma, peripécias dez vezes mais gratuitas do que as daqui.
Nenhuma concessão é feita aqui ao cotidiano, nem ao detalhe: nenhum comentário
sobre o clima, sobre o corte de um vestido, sobre a graciosidade de um gesto;
se tomamos consciência de uma marca de maquiagem, é pelo propósito da trama.
Estamos mergulhados num universo da necessidade, ainda mais sensível porque ela
coexiste harmoniosamente com a arbitrariedade da premissa. Lang, como se sabe,
sempre busca a verdade além do verossímil, e aqui ele a busca desde o início no
inverossímil.1 Outra recusa, a par com a primeira: a do pitoresco; os amadores
não encontrarão aqui nenhuma destas silhuetas prazerosamente desenhadas, destes
diálogos penetrantes ou destes traços nos quais a surpresa toma o lugar da
invenção, que atualmente fazem a reputação de diretores como Lumet ou Kubrick.
Todas essas recusas, aliás, são acompanhadas por um certo desdém que alguns
sentem tentados a ver como o desprezo do diretor por sua tarefa; mas por que
não um desprezo por este tipo de espectador?
Depois, à medida que o filme
prossegue, essas primeiras impressões encontram sua justificativa. O tom
expositivo prova ser o correto, já que se trata de um problema, que nos é
apresentado com todos seus elementos, e mesmo um duplo problema: o primeiro deriva
do roteiro, e, estando bem claro, não precisa ser tratado no momento; o outro,
mais secreto, pode ser formulado assim: sob dadas condições de temperatura e
pressão (aqui, de uma ordem transcendental da experiência), o que pode
subsistir de humano nesta atmosfera? Ou, mais modestamente, qual parte da vida,
mesmo desumana, pode subsistir num universo quasi-abstrato que está, todavia,
dentro de uma extensão de universos possíveis? Em outras palavras, um problema
de ficção científica. (A qualquer um que duvide dessa suposição, sugiro uma
comparação deste filme com A mulher na lua [Frau im Mond, 1929], no qual a
trama era para Lang, sobretudo, o pretexto para sua primeira tentativa de um
universo totalmente fechado.)
É então que a reviravolta
intervém: cinco minutos antes do desenlace, os dados do problema são
bruscamente invertidos, para o escândalo dos espíritos cartesianos, que
dificilmente admitem a técnica da inversão dialética. Ora, se as soluções
parecem igualmente modificadas, é apenas na aparência: as proporções permanecem
as mesmas e, todas as condições sendo atendidas, a poesia faz sua aparição.
Como queríamos demonstrar.
O termo poesia surpreende
aqui; certamente não é aquele que se esperaria. Eu o deixo provisoriamente,
entretanto, já que não conheço outro que exprima melhor esta brusca fusão numa
única vibração de todos os elementos até então mantidos separados pela vontade
abstrata e discursiva; passemos então às consequências mais imediatas.
A uma delas já fiz alusão:
as reações do público. Um filme como este é evidentemente a antítese absoluta
da ideia de uma “noite agradável”; e, por comparação, Um condenado à morte
escapou (Un condamné à mort s’est echappé, 1956) e O homem errado (The Wrong
Man, 1956) são divertimentos de sábado à noite. Aqui se respira, se eu ouso
dizer, o ar rarefeito dos cumes, mas correndo o risco da asfixia; não se
poderia esperar menos da superação última de um dos espíritos mais
intransigentes de hoje, cujos filmes recentes já nos tinham preparado para este
“golpe de estado” do saber absoluto.
Uma outra objeção eu levo
mais a sério: este filme seria puramente negativo e tão eficaz em seus aspectos
destrutivos que acabaria no fim das contas destruindo a si mesmo. Isso não é
inverossímil: eu falava agora há pouco de recusa; fui muito tímido. É de
destruição que é preciso falar. Destruição da cena: não sendo qualquer cena
tratada em si mesma, subsiste apenas um encadeamento de momentos puros, dos
quais se retém somente seu aspecto mediador; tudo o que poderia determiná-los
ou atualizá-los mais concretamente não é nem abstraído, nem suprimido — Lang
não é Bresson —, mas desvalorizado e reduzido à condição de pura marcação
espaço-temporal, desprovida de encarnação. Destruição até mesmo dos
personagens: aqui, cada um deles não é nada além do que dizem ou do que fazem:
quem são Dana Andrews, Joan Fontaine, seu pai? Essas questões não têm mais
sentido algum, pois os personagens perderam todas as suas qualidades
individuais, não são mais do que conceitos humanos. Mas, consequentemente, eles
são ainda mais humanos porque menos individuais. Aqui encontramos uma primeira
resposta: o que resta do humano? Há apenas o puramente humano, ao passo que os
exibicionistas fellinianos estão prontos a reduzi-lo, comprometendo-o com suas
mentiras e palhaçadas (mentiras obrigatórias já que se quer reconstituir alguma
situação extraordinária, palhaçadas ainda mais chocantes na medida em que se
pretendem “realistas” e não simplesmente caretas). Quem não sai mais abalado
deste filme do que por tais apelos à cumplicidade ignora tudo, não apenas do
cinema, mas do homem.
Estranho destruidor, este
que nos conduz a uma tal conclusão enquanto nos obriga a retomar a objeção pelo
avesso: se este filme é negativo, ele só pode sê-lo no modelo de negativo puro,
que é também a definição hegeliana de inteligência.²
É difícil encontrar uma
fórmula precisa para definir a personalidade de Fritz Lang (não falemos da
ideia que um Clouzot poderia ter): um cineasta expressionista, meticuloso com
os cenários e com a iluminação? Muito sumário. Arquiteto supremo? Isso parece
cada vez menos verdade. Brilhante diretor de atores? Claro, mas o que mais? O
que proponho é isto: Lang é o cineasta do conceito, o que sugere que, para não
cair em equívoco, deve-se falar a seu respeito não de abstração ou de
estilização, mas de necessidade (necessidade que deve poder contradizer a si
mesma sem perder sua realidade): além do mais, não é uma necessidade exterior —
a do diretor, por exemplo —, mas aquela que nasce do próprio movimento do
conceito. Cabe ao espectador assumir responsabilidade não só pelos pensamentos
dos personagens, suas “motivações”, mas por este movimento do Interior,
unicamente a partir das aparências do fenômeno; cabe a ele saber como
transformar esses momentos contraditórios num conceito. O que é, afinal, este
filme? Fábula, parábola, equação, esquema? Nenhuma dessas coisas, mas a simples
descrição de uma experiência.
Percebo que ainda não
mencionei o objeto da experiência; e ele também não é sem interesse.
Inicialmente, trata-se apenas de uma nova variação, bastante sutil, aliás, do
requisitório habitual contra a pena de morte: uma série de circunstâncias
incriminadoras arriscam levar um homem inocente à cadeira elétrica; melhor:
embora este seja de fato provado como culpado, ele o será apenas por sua
própria confissão justo no momento em que sua inocência havia sido reconhecida:
daí, a futilidade da justiça humana, “não julgue”, e por aí vai… Mas logo isso
começa a parecer muito fácil; o desfecho resiste a essa simples redução e
imediatamente leva a um segundo movimento: não pode haver um “falso culpado”;
todos os homens são culpados a priori; e aquele que acaba de ser libertado
erroneamente não pode evitar incriminar a si mesmo. Nós entramos, nesse mesmo
movimento, num mundo impiedoso, onde tudo recusa a graça, onde pecado e
penalidade estão irremediavelmente ligados, e onde a única atitude possível do
criador é aquela do desprezo absoluto. Mas uma atitude como essa é difícil de
sustentar; enquanto a generosidade se expõe à inevitável perda de suas ilusões,
ao rancor e à amargura, o desprezo por sua vez pode en - contrar apenas
surpresas agradáveis e perceber, eventualmente, não que o homem não seja
desprezível (ele continua sendo), mas que ele talvez não seja tanto quanto se supôs.
Tudo isso nos obriga a
ultrapassar também este segundo estágio, e a tentar alcançar enfim, para além,
aquele da verdade. Mas de qual ordem ela pode ser?
Entrevejo uma solução: que
talvez seja inútil querer opor este último filme de Fritz Lang a seus primeiros
trabalhos, como Fúria (Fury, 1936) e Vive-se uma só vez (You Only Live Once,
1937); o que de fato enxergamos em cada um dos casos? Nos primeiros filmes,
inocência com a aparência de culpa; aqui, culpa com a aparência de inocência.
Pode alguém não enxergar que eles são sobre a mesma coisa, ou pelo menos sobre
a mesma questão? Para além das aparências, o que são a culpa e a inocência?
Alguém é, de fato, culpado ou inocente? Se há, em absoluto, uma resposta, ela
só pode ser negativa; cabe a cada um, então, criar para si mesmo sua própria
verdade, por mais inverossímil que seja. No último plano, o herói finalmente se
concebe como inocente ou culpado. Certo ou errado, o que importa para ele?
Conhecemos as últimas falas
de Les Voix du silence : 3 “Huma - nismo não significa dizer: o que foi que eu
fiz etc…” Saudemos, então, no penúltimo plano, esta mão levemente enrugada,
inelutavelmente em repouso perto da graça, e que não causa nem mesmo um tremor
nesta forma mais secreta da força e da honra de ser um homem.
Publicado originalmente sob o título “La main” em Cahiers
du Cinéma no 76, novembro de 1957. Traduzido por Bernardo Versiani. Revisado
por Calac Nogueira. (N.E.) e extraído do catálogo “Fritz Lang – O horror está
no horizonte”.
Notas:
1
Em
francês, o filme foi intitulado L’Invraisemblable vérité, o que explica o
recorrente uso da expressão verossimilhança (e suas derivações) pelo autor.
(N.T.)
2
Sei
qual objeção indubitavelmente será levantada: que a dita “reviravolta” é apenas
de um mero recurso clássico de histórias de detetive, particularmente de
segunda categoria, caracterizado por uma súbita inversão ou alteração dos
dados. Mas o fato de encontrarmos esta noção de “reviravolta” [coup de théâtre]
recorrentemente nos roteiros de todos os filmes recentes importantes pode
significar que o que a princípio parece ser da ordem da arbitrariedade
dramática é, em fato, uma necessidade, e que todos esses filmes, apesar de sua
diversidade nos temas, sem dúvida assumem precisamente o mesmo processo interno
que Lang torna sua matéria imediata. Assim como o pacto que liga Von Stratten a
Arkadin (em Grilhões do passado [Mr. Arkadin, 1955]) só alcança sua realidade
plena quando tem sua primeira forma é negada, o mesmo ocorrendo medo da
chantagem de Irene (em O medo [Non credo più all’amore, 1954]), quando sabemos
sê-la tramada por seu marido, então a necessidade do movimento dialético,
sozinha, torna crível a ressurreição em A palavra (Ordet, 1955), a rendição em
A carroça de ouro (Le carrosse d’or, 1952), a conversão em Stromboli (1950),
Rossellini, Renoir, Dreyer tendo abertamente desdenhado qualquer justificativa
externa para essa última reversão. Por outro lado, é a clara ausência deste
movimento a deficiência mais séria no roteiro de filmes como Olho por olho (Oeil
pour oeil, 1957) ou Os espiões (Les Espions, 1957); e o sentimento de
insatisfação deixado por filmes em outros aspectos tão bem-sucedidos, como Um
condenado à morte escapou ou O homem errado, provavelmente não tem outro
motivo. Não que um movimento como esse, cujo processo abrange o elemento de
contradição, seja estranho a Hitchcock ou a Bresson (basta lembrar, por
exemplo, de Suspeita [Suspicion, 1941] ou de As damas do Bois de Boulogne [Les
Dames du Bois de Boulogne, 1945]), nem que esteja totalmente ausente de seus
filmes mais recentes, mas está lá sobretudo em estado implícito e sem jamais se
desprender do rigor do conceito: há um elemento de aposta na fuga de Fontaine,
mas sobretudo a consequência lógica de sua obstinação; seu sucesso não parece
nada mais do que a igualdade atingida pela prova de um teorema (um erro nunca
cometido pelo maior cineasta do esforço humano: cf. os finais de Scarface
[1932], Uma aventura na Martinica [To Have and Have Not, 1944], Rio Vermelho
[Red River, 1948] etc.). Ou então basta comparar o milagre de O homem errado
com aquele de Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) para ver o embate entre
duas ideias diametralmente antitéticas, não só da Graça (no primeiro filme, uma
recompensa pelo zelo na oração; no último, pura luz liberadora, inserida no
próprio momento de desespero, sob uma fé bruta que não percebe a si própria),
mas também da liberdade; e que tal preocupação com a necessidade — ou com a
lógica, para usar um dos termos preferidos de Rossellini — seja levada a pontos
tão extremos por esses cineastas, é somente para afirmar a liberdade dos
personagens, simplesmente tornando-a possível; uma liberdade, por outro lado,
quase impossível no universo arbitrário de um Cayette ou de um Clouzot, onde
somente marionetes podem existir. — O que digo sobre os cineastas recentes é
também verdade, me parece, para o cinema como um todo, começando pela obra de
F. W. Murnau; e Aurora (Sunrise, 1927) se mantém o perfeito exemplo de uma
construção rigorosamente dialética. Por fim, não reivindico estar sendo
inovador aqui (cf., entre outros, o artigo de Alexandre Astruc, “Cinema et
dialectique”). (N.O.)
3
Ensaio de André Malraux publicado em 1951. (N . E.)
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