sexta-feira, 22 de abril de 2016

Notas sobre uma revolução¹


Jacques Rivette

Há dois cinemas americanos: o de Hollywood e o de Hollywood. Mas provavelmente há duas Hollywoods, a das cifras e a dos indivíduos. Entre estes (deixemos aquelas aos economistas), excluamos desde já os cínicos, envelhecidos, desiludidos, prestes a tudo, cujos nomes são alardeados a cada semana por iniciativa das grandes companhias às quais eles venderam sua alma. Seu cinema não é mais americano do que é francês o daqueles que vocês conhecem.
Até recentemente, a regra ainda era tratar do cinema americano por gêneros; [cabe perguntar] aonde leva uma tal operação, quando vemos a maioria dos jovens cineastas passar com desenvoltura de um a outro, sem grande preocupação com as leis e convenções de cada um deles, para tratar neles de assuntos estranhamente análogos, os de sua escolha. Mais vale, ainda, confiar nos créditos [génériques] dos filmes para ver claro
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Depois da violenta investida [coup de force] existencial de Griffith, a primeira era do cinema americano foi a dos atores; depois veio a dos produtores. Se afirmo que eis chegada enfim a dos autores, bem sei que suscito sorrisos céticos. A eles, não vou contrapor teorias eruditas, mas quatro nomes. São os de cineastas, Nicholas Ray, Richard Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich, que a crítica não tinha, até aqui, levado muito em consideração, quando não os ignorou pura e simplesmente. Por que quatro nomes? Gostaria de lhes acrescentar outros (por exemplo, os de Edgar Ulmer, Joseph Losey, Richard Fleischer, Samuel Fuller e outros ainda que não passam de promessas, como Josh Logan, Gerd Oswald, Dan Tarradash), mas aqueles quatro são hoje incontestavelmente os principais.
É sempre ridículo querer reunir arbitrariamente sob uma mesma etiqueta criadores de perfis diversos. Ao menos não se pode negar-lhes este traço comum: a juventude (os quarenta anos para um cineasta), porque eles possuem suas virtudes.
A violência é sua primeira virtude. Não a brutalidade fácil que fez o sucesso de um Dmytryk ou de um Benedek, mas uma cólera viril, que vem do coração e reside menos no roteiro ou na escolha dos episódios do que no tom da narrativa e na própria técnica da mise-en-scène. A violência nunca é um fim, mas o meio de aproximação mais eficaz, e estes socos, estas armas, estas explosões de dinamite visam apenas suprimir os escombros acumulados dos hábitos, abrir uma brecha. Numa palavra, criar atalhos. E o recurso frequente a uma técnica descontínua, abrupta, que recusa as convenções da decupagem e do corte, é uma forma daquele “desajeito superior” de que fala Cocteau, nascido da necessidade de uma expressão imediata que traduza e compartilhe a expressão primeira do autor.
A violência é ainda uma arma, uma faca de dois gumes: tocar fisicamente um público insensível à novidade, se impor como indivíduo insubmisso, senão rebelde. Trata-se, antes de tudo, para todos eles, de recusar mais ou menos francamente a ditadura dos produtores e de tentar criar uma obra pessoal; e são todos cineastas liberais, alguns abertamente de esquerda. A recusa da retórica tradicional do roteiro e da mise-en-scène, desta massa mole² e anônima imposta pelos executivos desde os inícios do cinema falado como símbolo da submissão, tem primeiramente valor de manifesto.
Em suma, a violência é signo exterior de ruptura. Aqui, a verdade se impõe: eles são todos filhos de Orson Welles, o primeiro que ousou recolocar em evidência uma concepção egocêntrica do cineasta. Mal começamos a medir a amplitude das repercussões do golpe de estado wellesiano, que fissurou profundamente o edifício da produção hollywoodiana, e cujo exemplo já tinha suscitado uma primeira geração revolucionária, a dos Mankiewicz, dos Dassin, dos Preminger.
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A violência não pode subsistir sozinha sem se aniquilar: o outro polo da criação, para todos estes cineastas, é o da reflexão. Vale dizer, pulverizadas as ruínas das convenções, a violência só visa estabelecer um estado de graça, um vazio, em cujo seio os personagens, libertos de todo entrave arbitrário, estarão prontos para se interrogar e aprofundar seu destino. Assim nascem estas longas pausas, estes retornos que estão no centro dos filmes de Ray, como nos de Mann, Aldrich e Brooks. A violência se justifica então pela meditação, ambas tão sutilmente ligadas que seria impossível separá-las sem destruir a própria alma do filme. Essa dialética dos temas reaparece na mise-en-scène: a da eficácia e da contemplação.
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Como toda revolução, esta reúne homens mais ligados pelo inimigo comum do que por suas ambições profundas. Basta, para justificar seu combate, que todos os quatro estejam animados pela mesma vontade de fazer obra moderna: ainda que por vias divergentes, todos os quatro traçam paralelamente o quadro mais impressionante do mundo contemporâneo; eles nos tocam por sua atualidade, pelo sentimento físico da justeza de sua pintura.
De todos, Nicholas Ray é provavelmente o mais secreto e o maior; sem nenhuma dúvida, o mais espontaneamente poeta. Todos os seus filmes são atravessados pela mesma obsessão do crepúsculo, da solidão dos seres, da dificuldade das relações humanas (este não é seu único ponto em comum com Rossellini); inadaptados num mundo hostil, perturbados pelo refluxo da violência original, seus personagens são todos mais ou menos marcados por um novo “mal do século”, que teríamos dificuldade em negar.
Richard Brooks, ao contrário, se lembra de sua formação de repórter. Ele vive inteiramente no universo da civilização cotidiana. Todos os seus protagonistas travam o mesmo combate para salvar outros homens da covardia e do medo; para transformá-los, contra eles, se necessário, em verdadeiros homens. Assim também Anthony Mann, no contexto tradicional do western, renova o elogio da vontade e do esforço que fez a grandeza do antigo cinema americano; ambos são dignos descendentes de Hawks, sem herdar sua serenidade: a amargura e o desencanto modernos dissolvem o cimento clássico.
Robert Aldrich conclui o acordo por uma dissonância exata, a descrição lúcida e lírica de um mundo em decadência, asséptico, metálico, sem saída; a crônica dos últimos sobressaltos daquilo que resta de humano no homem, no meio de um universo puramente artificial, de onde a natureza, outrora cantada em O Último Bravo [Apache, 1954], foi quase sistematicamente excluída (só resta a presença purificadora da água), e da qual os universos artificiais do teatro ou do romance policial degenerado oferecem a imagem mais sufocante; a relação de uma asfixia moral, cuja única saída só pode ser uma destruição fabulosa. À tradicional moral da ação, exemplificada por Ray, Brooks e Mann, Aldrich opõe uma moral negativa que não a contradiz, mas a prova pelo absurdo: o verdadeiro assunto de A Grande Chantagem [The Big Knife, 1955] como o de A Morte num Beijo [Kiss Me Deadly, 1955], é justamente a destruição da moral, e suas consequências.
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Qual é enfim o sentido desta revolução? Para além do longo período de submissão ao produto manufaturado, reatar abertamente com a tradição de 1915, a de Griffith e da Triângulo³, que continuava de resto a nutrir secretamente com sua seiva a obra dos velhos hollywoodianos, a dos Walsh, Vidor, Dwan e, é claro, a de Howard Hawks; voltar ao lirismo, aos sentimentos fortes, ao melodrama (as salas do circuito comercial acolhendo com os mesmos risinhos os filmes de Ray e os de Allan Dwan), reencontrar uma certa largueza dos gestos, uma exteriorização mais rústica e mais espontânea dos sentimentos; numa palavra, reencontrar a ingenuidade.
Tal é provavelmente o futuro do cinema, no sentido em que a ingenuidade, sinônimo de clarividência, se opõe aos artifícios e às espertezas dos roteiristas profissionais. Ray, Brooks, Mann, Aldrich, por vias diferentes, são ingênuos: Ray, pela clareza infantil do olhar, a humildade provocativa das suas narrativas; Brooks e Mann, pela honestidade anacrônica de sua mise-en-scène; Aldrich, enfim, pela franqueza da atuação [du jeu] e o emprego juvenil dos efeitos.
O cinema, de uns anos para cá, padece de inteligência e de sutileza; Rossellini arromba a porta. Mas respirem também esta lufada de ar fresco que nos chega do além-mar.

Notas :
1 “Notes sur une révolution”, Cahiers du Cinéma, n. 54, Natal 1955, pp. 17-21. Traduzido do francês por Maria Chiaretti e Mateus Araújo, extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
2 No original, “de cette pâte molle”. [N.d.T.]
3 Fundada em 1915 na Califórnia por três produtores e três cineastas (Griffith, Sennett e Ince), a Triangle Film Corporation (ou Triangle Pictures ou Triangle Motion Picture Company) foi até 1919 uma Companhia americana muito importante e prolífica de produção e distribuição de filmes. [N.d.T.]

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