Jacques Rivette
Há dois cinemas americanos:
o de Hollywood e o de Hollywood. Mas provavelmente há duas Hollywoods, a das
cifras e a dos indivíduos. Entre estes (deixemos aquelas aos economistas),
excluamos desde já os cínicos, envelhecidos, desiludidos, prestes a tudo, cujos
nomes são alardeados a cada semana por iniciativa das grandes companhias às
quais eles venderam sua alma. Seu cinema não é mais americano do que é francês
o daqueles que vocês conhecem.
Até recentemente, a regra
ainda era tratar do cinema americano por gêneros; [cabe perguntar] aonde leva
uma tal operação, quando vemos a maioria dos jovens cineastas passar com
desenvoltura de um a outro, sem grande preocupação com as leis e convenções de
cada um deles, para tratar neles de assuntos estranhamente análogos, os de sua
escolha. Mais vale, ainda, confiar nos créditos [génériques] dos filmes para
ver claro
***
Depois da violenta investida
[coup de force] existencial de Griffith, a primeira era do cinema americano foi
a dos atores; depois veio a dos produtores. Se afirmo que eis chegada enfim a
dos autores, bem sei que suscito sorrisos céticos. A eles, não vou contrapor
teorias eruditas, mas quatro nomes. São os de cineastas, Nicholas Ray, Richard
Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich, que a crítica não tinha, até aqui,
levado muito em consideração, quando não os ignorou pura e simplesmente. Por
que quatro nomes? Gostaria de lhes acrescentar outros (por exemplo, os de Edgar
Ulmer, Joseph Losey, Richard Fleischer, Samuel Fuller e outros ainda que não
passam de promessas, como Josh Logan, Gerd Oswald, Dan Tarradash), mas aqueles
quatro são hoje incontestavelmente os principais.
É sempre ridículo querer
reunir arbitrariamente sob uma mesma etiqueta criadores de perfis diversos. Ao
menos não se pode negar-lhes este traço comum: a juventude (os quarenta anos
para um cineasta), porque eles possuem suas virtudes.
A violência é sua primeira
virtude. Não a brutalidade fácil que fez o sucesso de um Dmytryk ou de um
Benedek, mas uma cólera viril, que vem do coração e reside menos no roteiro ou
na escolha dos episódios do que no tom da narrativa e na própria técnica da
mise-en-scène. A violência nunca é um fim, mas o meio de aproximação mais
eficaz, e estes socos, estas armas, estas explosões de dinamite visam apenas
suprimir os escombros acumulados dos hábitos, abrir uma brecha. Numa palavra,
criar atalhos. E o recurso frequente a uma técnica descontínua, abrupta, que
recusa as convenções da decupagem e do corte, é uma forma daquele “desajeito
superior” de que fala Cocteau, nascido da necessidade de uma expressão imediata
que traduza e compartilhe a expressão primeira do autor.
A violência é ainda uma
arma, uma faca de dois gumes: tocar fisicamente um público insensível à
novidade, se impor como indivíduo insubmisso, senão rebelde. Trata-se, antes de
tudo, para todos eles, de recusar mais ou menos francamente a ditadura dos
produtores e de tentar criar uma obra pessoal; e são todos cineastas liberais,
alguns abertamente de esquerda. A recusa da retórica tradicional do roteiro e
da mise-en-scène, desta massa mole² e anônima imposta pelos executivos desde os
inícios do cinema falado como símbolo da submissão, tem primeiramente valor de
manifesto.
Em suma, a violência é signo
exterior de ruptura. Aqui, a verdade se impõe: eles são todos filhos de Orson
Welles, o primeiro que ousou recolocar em evidência uma concepção egocêntrica
do cineasta. Mal começamos a medir a amplitude das repercussões do golpe de
estado wellesiano, que fissurou profundamente o edifício da produção
hollywoodiana, e cujo exemplo já tinha suscitado uma primeira geração
revolucionária, a dos Mankiewicz, dos Dassin, dos Preminger.
***
A violência não pode
subsistir sozinha sem se aniquilar: o outro polo da criação, para todos estes
cineastas, é o da reflexão. Vale dizer, pulverizadas as ruínas das convenções,
a violência só visa estabelecer um estado de graça, um vazio, em cujo seio os
personagens, libertos de todo entrave arbitrário, estarão prontos para se
interrogar e aprofundar seu destino. Assim nascem estas longas pausas, estes
retornos que estão no centro dos filmes de Ray, como nos de Mann, Aldrich e
Brooks. A violência se justifica então pela meditação, ambas tão sutilmente
ligadas que seria impossível separá-las sem destruir a própria alma do filme.
Essa dialética dos temas reaparece na mise-en-scène: a da eficácia e da
contemplação.
***
Como toda revolução, esta
reúne homens mais ligados pelo inimigo comum do que por suas ambições
profundas. Basta, para justificar seu combate, que todos os quatro estejam
animados pela mesma vontade de fazer obra moderna: ainda que por vias
divergentes, todos os quatro traçam paralelamente o quadro mais impressionante
do mundo contemporâneo; eles nos tocam por sua atualidade, pelo sentimento
físico da justeza de sua pintura.
De todos, Nicholas Ray é
provavelmente o mais secreto e o maior; sem nenhuma dúvida, o mais
espontaneamente poeta. Todos os seus filmes são atravessados pela mesma obsessão
do crepúsculo, da solidão dos seres, da dificuldade das relações humanas (este
não é seu único ponto em comum com Rossellini); inadaptados num mundo hostil,
perturbados pelo refluxo da violência original, seus personagens são todos mais
ou menos marcados por um novo “mal do século”, que teríamos dificuldade em
negar.
Richard Brooks, ao
contrário, se lembra de sua formação de repórter. Ele vive inteiramente no
universo da civilização cotidiana. Todos os seus protagonistas travam o mesmo
combate para salvar outros homens da covardia e do medo; para transformá-los,
contra eles, se necessário, em verdadeiros homens. Assim também Anthony Mann,
no contexto tradicional do western, renova o elogio da vontade e do esforço que
fez a grandeza do antigo cinema americano; ambos são dignos descendentes de
Hawks, sem herdar sua serenidade: a amargura e o desencanto modernos dissolvem
o cimento clássico.
Robert Aldrich conclui o
acordo por uma dissonância exata, a descrição lúcida e lírica de um mundo em
decadência, asséptico, metálico, sem saída; a crônica dos últimos sobressaltos
daquilo que resta de humano no homem, no meio de um universo puramente
artificial, de onde a natureza, outrora cantada em O Último Bravo [Apache,
1954], foi quase sistematicamente excluída (só resta a presença purificadora da
água), e da qual os universos artificiais do teatro ou do romance policial
degenerado oferecem a imagem mais sufocante; a relação de uma asfixia moral,
cuja única saída só pode ser uma destruição fabulosa. À tradicional moral da
ação, exemplificada por Ray, Brooks e Mann, Aldrich opõe uma moral negativa que
não a contradiz, mas a prova pelo absurdo: o verdadeiro assunto de A Grande
Chantagem [The Big Knife, 1955] como o de A Morte num Beijo [Kiss Me Deadly,
1955], é justamente a destruição da moral, e suas consequências.
***
Qual é enfim o sentido desta
revolução? Para além do longo período de submissão ao produto manufaturado,
reatar abertamente com a tradição de 1915, a de Griffith e da Triângulo³, que
continuava de resto a nutrir secretamente com sua seiva a obra dos velhos
hollywoodianos, a dos Walsh, Vidor, Dwan e, é claro, a de Howard Hawks; voltar
ao lirismo, aos sentimentos fortes, ao melodrama (as salas do circuito
comercial acolhendo com os mesmos risinhos os filmes de Ray e os de Allan
Dwan), reencontrar uma certa largueza dos gestos, uma exteriorização mais
rústica e mais espontânea dos sentimentos; numa palavra, reencontrar a
ingenuidade.
Tal é provavelmente o futuro
do cinema, no sentido em que a ingenuidade, sinônimo de clarividência, se opõe
aos artifícios e às espertezas dos roteiristas profissionais. Ray, Brooks,
Mann, Aldrich, por vias diferentes, são ingênuos: Ray, pela clareza infantil do
olhar, a humildade provocativa das suas narrativas; Brooks e Mann, pela
honestidade anacrônica de sua mise-en-scène; Aldrich, enfim, pela franqueza da
atuação [du jeu] e o emprego juvenil dos efeitos.
O cinema, de uns anos para
cá, padece de inteligência e de sutileza; Rossellini arromba a porta. Mas
respirem também esta lufada de ar fresco que nos chega do além-mar.
Notas :
1 “Notes sur une révolution”, Cahiers du Cinéma,
n. 54, Natal 1955, pp. 17-21. Traduzido do francês por Maria Chiaretti e
Mateus Araújo, extraído do catálogo
“Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.2 No original, “de cette pâte molle”. [N.d.T.]
3 Fundada em 1915 na Califórnia por três produtores e três cineastas (Griffith, Sennett e Ince), a Triangle Film Corporation (ou Triangle Pictures ou Triangle Motion Picture Company) foi até 1919 uma Companhia americana muito importante e prolífica de produção e distribuição de filmes. [N.d.T.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário