sábado, 19 de dezembro de 2015

O homem eastwoodiano


Luiz Carlos Oliveira Jr.

Clint Eastwood, na melhor tradição do cinema americano (talvez devêssemos dizer: do cinema republicano), filma a ação e o conflito. Ele chega direto ao ponto, não disfarça as questões essenciais dos filmes em pegadinhas de roteiro ou construções rebuscadas. Sua miseenscène segue a frontalidade e a retidão dos grandes homens de ação da história de Hollywood (Hawks, Dwan, Walsh, Huston, Siegel). Clint faz um cinema calcado no confronto dramático e na ação física, com um conflito moral como ponto culminante. O que dá a força de Menina de ouro (MillionDollar Baby, 2004), por exemplo, não é apenas a maneira frontal com que ele aborda um tema tão delicado como a eutanásia, mas principalmente o fato de que tudo recai sobre a consciência de um indivíduo apanhado entre duas ações possíveis e contraditórias. Um homem deve decidir que atitude tomar: eis a situação dramática central do cinema de Eastwood. Como os personagens de John Ford e Howard Hawks, o homem eastwoodiano age segundo uma moral que não lhe é imposta de fora, mas que ele descobre trilhando o caminho da vida.
Isso destoa do mundo atual. Em tempos de politicamente correto, o homem é afastado das escolhas morais: os valores vêm pré-fabricados, não se tem a menor responsabilidade sobre eles. Face à normatização dos discursos e das práticas, nossa sociedade se engessa espiritualmente—só há a norma e o desrespeito à norma; a consciência não trabalha, aceitando o conforto que o establishment oferece em troca de passividade; as coisas são reduzidas a um vocabulário jurídico, técnico, frio; não sobra espaço para o amadurecimento moral, que obrigaria os homens a pensar sobre a natureza e o valor de seus atos e decisões. Algo da complexidade do homem se perdeu. Há uma tendência hoje, que se verifica em muitos filmes de jovens autores, a excluir do mundo a dimensão do conflito. O grande sonho conservador de um mundo sem contradições se realiza pouco a pouco.
Mas em Clint Eastwood não se vê nada disso. Seu mundo é tão conflituoso e repleto de contradições quanto o de Fritz Lang. Seus heróis não são incorruptíveis: bebem, têm ideias controversas e, ao agirem com teimosia e violência, colocam em risco a vida dos outros. Eastwood filma a zona de confusão e dubiedade de onde emerge a consciência moral, essa zona desconfortável em que se entrecruzam todas as dúvidas existenciais. Ele sabe que a natureza do homem é ambígua, e enxerga de frente essa ambiguidade, ou seja, ele não foge ao problema.
Em Coração de caçador (White Hunter Black Heart, 1990), filme em memória a John Huston, Clint Eastwood assume o papel do cineasta, do diretor, daquele que comanda o show, com toda a dose de responsabilidade que isso implica. Seu personagem, John Wilson, está na África para as filmagens de uma aventura hollywoodiana, mas insiste em atrasar a produção, pois está obcecado com a ideia de caçar um elefante. A caçada precisa acontecer, segundo ele, antes das filmagens, não pode ficar para depois. O roteirista, irritado e preocupado com o desejo insano de Wilson, discute com ele, dizendo que o filme está indo para o buraco por conta de sua obstinação em cometer um crime. Wilson, mantendo seu olhar sempre na mesma direção, como quem contempla uma ideia fixa, rebate o argumento do roteirista: não, matar um elefante não é um crime, é um pecado, é muito pior. Cometer um crime é estar disposto a responder perante um conjunto de leis forjado pelos homens. Cometer um pecado é estar disposto a prestar contas com o Criador, é rivalizar com as leis da Natureza. Wilson quer testar o limite do livre arbítrio humano, quer experimentar o último estágio de um sentimento que começa na infância, quando, ao jogar uma pedra no rio, vemos os círculos concêntricos que se formam na água e nos encantamos com a possibilidade de intervir no mundo exterior. Ao maravilhamento da infância, aconsciência adulta adiciona o perigo contido nessa ação. Esse perigo é o que move John Wilson.
Na caçada, por imprudência sua, morre o rapaz africano que trabalhava para ele como guia. Wilson volta para o set de filmagem, assiste ao choro dos africanos, senta em silêncio em sua cadeira de diretor, ergue o rosto e diz: “ação”. Sua consci- ência agora pesa uma tonelada—o filme pode então começar a ser rodado, não para expurgar essa culpa, mas para dialogar com ela de alguma forma. A responsabilidade sobre o ocorrido não pode ser transferida para nenhuma estrutura social, cultural ou psíquica que estaria sobredeterminando as atitudes do personagem. O homem, no universo eastwoodiano, é consciente de seus atos, e os assume.
Eastwood não filma heróis, anti-heróis ou vilões; ele filma homens. Seus personagens não são exemplos de virtude; eles agem como homens e às vezes falham. São comuns os personagens de Eastwood que vivem solitários, remoendo um trauma, uma perda ou mesmo um erro do passado. A solidão é a condição do homem eastwoodiano. Mas não é a solidão dos heróis de história em quadrinho, isolados por seus superpoderes, sua disciplina, sua missão de salvar o planeta; é a solidão do homem que se choca com o mundo e se isola em suas convicções, sua moral de caçador. Essa solidão implica o monólogo interno da consciência; é uma solidão para os fortes (diferente da “solidão povoada” da era das redes sociais—a solidão dos fracos).
Em Gran Torino (2008), Walt Kowalski, interpretado pelo próprio Eastwood, é um veterano da Guerra da Coreia que acaba de ficar viúvo e vive num bairro decadente rodeado de imigrantes. Na garagem, conserva um Gran Torino 1972, que o adolescente Thao, seu vizinho, tenta roubar pressionado pelos membros de uma gangue local. Walt se vê um estrangeiro em seu antigo bairro, agora predominado por (outros) estrangeiros.A periferia de Detroit em que o filme se passa é um pouco como o Velho Oeste atravessado por JoseyWales no filme de 1976, o quinto dirigido por Eastwood (quarto em que atuou/dirigiu): cenário de barbárie habitado por desenraizados de diversas raças e origens. Lá esse cenário estava relacionado ao limbo pós-guerra civil; aqui, às consequências últimas do modelo de nação triunfante nessa mesma guerra. Lá era o início do ciclo, aqui é o fim. A decadência econômica, portanto, faz uma cidade que já foi signo do progresso industrial remontar às origens caóticas de um contrato social que não se impõe senão às custas da violência. O pacto de convivência nasce da eliminação ou assimilação (quase nunca pacífica) dos outsiders, outlaws ou quaisquer outros agentes de contradições fundadoras. Mas tem um detalhe dessa história que Gran Torino explicita: todos são outsiders. A começar pelo polaco Kowalski. Não há um só personagem que seja um trueamerican, ou melhor, todos são trueamericans na medida em que revelam uma origem fora do território americano e, deste modo, reintegram o devir de um país de imigrantes.
Na cena mais pesada do filme, a adolescente Sue, que Walt em outra ocasião salvara do assédio de jovens delinquentes, chega em casa completamente arrebentada. O que indiretamente desencadeou tal agressão extrema foi uma atitude de Walt: ele “mandara recado” ao primo de Sue, líder da gangue Hmong que perturba a vizinhança, ordenando que a gangue parasse de importunar Thao (agora seu amigo e quase filho adotivo). Os gângsteres se vingaram estuprando e violentando Sue, irmã de Thao. A chegada dela após o ocorrido é um choque. Walt, que está lá e presencia esse momento, vai para casa, se tranca em um desesperador sentimento de culpa. Ele soca a porta de vidro de um armário, se autoflagela, sente sua existência como um erro da natureza. O espaço ao redor dele seafunda na mais densa escuridão do filme. O cenário se converte em espaço mental; o drama se relocaliza nessa espécie de câmara obscura da consciência. A sombra no rosto de Eastwood sempre existiu para que se pudesse olhar além dele, buscando algo que seu rosto esconde e, no entanto, quer confessar. Nessa cena de Gran Torino, Walt se entrega à escuridão porque ela nada mais é que a substância mesma de sua alma, a matéria de que é feita.

Autorretratos na sombra

Gran Torino é o último capítulo de uma série de autorretratos que Eastwood realizou no decorrer de sua carreira. Para marcar o fim dessa longa série, que começou nos anos 1970, ele se filma dentro de um caixão, depois que seu personagem morre. A imagem é decerto inquietante. Os autorretratos de Eastwood não costumam ser nada indulgentes; são, antes, cenas nas quais ele confessa, mais que uma virtude ou um vigor, uma reentrância sinistra da consciência e, sob a forma física do envelhecimento, uma transformação irreversível do corpo.
Em Impacto fulminante (SuddenImpact, 1983), há aquela cena, ainda no início, quando “Dirty” Harry Callahan invade a festa de um magnata e lhe faz graves acusações diante de toda sua família, acabando por provocar o infarto do velho corrupto. Antes do ataque cardíaco, porém, com ar debochado, o adversário havia dito uma frase extraordinária: “Callahan é a única constante num universo em incessante mudança”. A frase do adversário de Callahan constata um modo de comportamento muito próprio da persona de Clint Eastwood; basta observar e perceber que uma mesma imagem perpassa seus filmes: de JoseyWales a Walt Kowalski, é possível encontrar o mesmo olhar e o mesmo semblante—ainda que não o mesmo rosto.
A cada filme, a cada reimpressão de sua persona, Clint se mostra o suporte de sua própria aparição, o corpo que receberáo fantasma de si mesmo (num verdadeiro curto-circuito da luz). Toda vez que se filma como ator, a tarefa de Clint é fazer retornar uma figura do passado; seu rosto é a superfície que hospeda desde sempre a mesma imagem. Essa superfície, no entanto, vem mudando de textura, ganhando rugas, criando vincos, salientando cicatrizes. A mudança não está na imagem projetada, portanto, mas antes no seu local de projeção. A partir disso, Clint desnuda seu rosto, transforma sua pele numa tela com memória, superfície que conserva traços, vestígios de outras viagens—ao contrário da tela de cinema que precisa começar uma nova sessão sem nenhuma reminiscência da sessão anterior; que precisa esquecer cada imagem que passa para dar lugar à imagem seguinte. Na pele do rosto de Clint, o cinema encontra uma tela viva, com as artérias pulsando na testa—um muro que se descasca enquanto assistimos à impassibilidade da imagem que a ele se lança. Rosto e imagem, aqui, começam descolados um do outro apenas para, no fim das contas, se reunirem numa só coisa, o rosto se vendo iluminado por sua própria imagem. A melhor forma de perceber a mudança é colocando-a ao lado de algo imutável—ou, no caso, sobrepor ambos. A dialética entre aquilo que se mantém—a imagem, o ícone—e aquilo que se modifica—a pele, o ator—é o modelo em cima do qual Clint redescobre seu rosto ao filmar-se envelhecendo.
A cena de Poder absoluto (Absolute Power, 1997) em que Eastwood se esconde atrás do espelho, imagem por si mesma evocativa—mais do que isso, um dispositivo realmente complexo—, preenche a dupla equação de sua miseenscène. Seu personagem vai parar naquela situação quando é surpreendido, enquanto praticava mais um de seus roubos artesanais, pela chegada do casal formado pelo presidente da república e sua amante, que mora naquela mansão. Ao ficar escondido na penumbra, vendo a cena sem ser visto (o vidro é transparentepara ele e reflexivo para quem está do outro lado), Clint soma à ação de alguém que pratica uma arte com as mãos—o roubo, mas também os desenhos que seu personagem gosta de fazer entre um “trabalho” e outro—aquela do observador imóvel, do voyeur que se recolhe ao anonimato para testemunhar uma cena (e não uma qualquer, mas sim uma de sexo e assassinato, os combustíveis-padrão do voyeurismo). Ele perfaz também uma tripla via de diretor-ator-espectador. Ao se esquivar à visão de quem está no filme, Clint se entrega exclusivamente à nossa visão: essa cena é uma confissão íntima, ele se esgueira ao silêncio e ao escuro daquele compartimento para nos sussurrar que ainda é o mesmo, embora tenha mudado. O mais impressionante da cena está no que ela revela sobre o rosto de Eastwood se esgarçando da escuridão, com melancolia, mas também com o vigor do ator/cineasta gigante que ele já se tornara naquele momento. Ele refaz ali, como já havia sido em Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992), seu autorretrato crepuscular. Uma máscara pétrea brota das trevas, quase em alto relevo, mais uma escultura do que uma imagem bidimensional. Ou uma gravura, como as que ele rabisca no início do filme.
Clint afronta e atualiza a assombração do perecimento do corpo: ele rejeita as inscrições simbólicas da passagem do tempo, aquilo que o homem, nos seus ritos e nas suas artes, no mais das vezes preferiu representar somente para manter à distância. Para muitos, o cinema é menos a escrita luminosa da vida do que a morte em marcha, o universo em procissão fúnebre. Ao se filmar no escuro, reduzido ao estado de espectro, Clint sugere a realidade fantasmática de um lugar de trabalho que pertence ao passado (o métier do artesão).
Na cena do principal confronto em Impacto fulminante, o rosto de Clint aparece em radical contraluz, suprimindo sua face. Ele esvazia sua imagem, tornando-se a própria escuridãopersonificada, o próprio nada de onde seu herói emerge para socorrer a sociedade de que ele mesmo se vê à margem. Cabe à nossa consciência e nossa memória restituir a face oculta—ou encarar o vazio como sua manifestação legítima. A tradição prescreve o oposto, isto é, que o fundo da imagem seja apagado para fazer ressair o mito em primeiro plano. Mas Clint prossegue em contraluz (autoiconoclasta?). Antes de uma reticência a ser recoberta por uma imagem, trata-se de uma reflexão no vácuo, pois quando imagem e suporte se dão as costas um para o outro, o resultado é o sumiço de ambos. Permanece a silhueta inconfundível. De onde vem essa dispersão súbita dos raios, essa antirreflexão ocorrida entre a imagem de Clint e seu rosto- -tela? Simplesmente da posição que Impacto fulminante ocupa em sua obra, a meio-caminho entre um crepúsculo e outro, entre o cowboy fantasma dos westerns e o velho rabugento dos anos 2000. Em 1983, é meia-noite no jardim de Clint Eastwood.

Uma arte do presente

Uma das primeiras pérolas do cineasta, o singelo e belíssimo Interlúdio de amor (Breezy, 1973), conta o romance de uma jovem hippie com um homem mais velho. Os anos 1970 aparecem lá de maneira bem interessante—década colorida, mas triste; libertária, mas conservadora. O filme é romântico sem ser piegas, emotivo sem ser over. Há uma grande maturidade do diretor na maneira como filma tanto os hábitos da juventude quanto os preconceitos da geração anterior. Vemos a amizade e o amor nascendo entre dois opostos.
Era o prenúncio de um cineasta que, como poucos, teria grande habilidade para filmar os bons sentimentos, os laços que se criam em meio às trevas, como se nota claramente em seus últimos filmes, Gran Torino, Invictus (2009) e Além da vida (Hereafter, 2010). Este terceiro possui uma importânciaparticular em sua obra, pois revela uma vontade de retratar o mundo de hoje num escopo abrangente, reunindo muitos de seus aspectos de uma só vez. Do alto de sua experiência, Eastwood se abre à realidade contemporânea com grande receptividade e generosidade e tenta compreender alguns de seus relatos marcantes. Lembra um pouco os afrescos coletivos de Otto Preminger nos anos 1960. Eastwood é um desses poucos artistas aptos a narrar as epopeias políticas e espirituais do nosso tempo.
Os “planos de solidão”, uma especialidade de Eastwood, estão mais pungentes do que nunca. Matt Damon comendo sozinho na cozinha de seu apartamento, o menino que perdeu o irmão gêmeo indo dormir sozinho no quarto, sempre com a escuridão dominando o ambiente… Duas almas miseráveis que depois se encontram para, da escuridão, tocar a luz. Nesse filme espiritualista e místico, a morte tem, todavia, um impacto material, uma presença concreta. O choque físico nas cenas dos acidentes é crucial, e nos ensina algo sobre o estar vivo, sobre as forças que agem à nossa volta o tempo todo.
Há algo de anônimo em Além da vida, Eastwood funcionando como um receptáculo das coisas ambientes. Qual foi a última vez que vimos um retrato tão variegado e palpável da realidade contemporânea? Um cineasta octogenário conseguiu fazer esse painel coletivo do mundo atual de uma forma que nenhum cineasta nascido dos anos 1960 para cá tem sido capaz de fazer. A caracterização dos personagens e de todo um conjunto de “cenas da vida moderna”—um curso de culinária, uma patricinha sem noção, um estivador vidente, uma âncora que escreve um livro de autoajuda, um acidente de carro, uma catástrofe natural—impressiona pela exatidão. São algumas das pessoas e dos fatos que constituem o mundo em que estamos vivendo neste momento. O filme demonstra que o cinema ainda pode ser um reflexo direto do mundo presente, pode dar formaao estofo sensível da realidade e fornecer um documento histó- rico de um dado momento de uma civilização.
O sentimento plástico contemporâneo casa melhor com ambiências virtuais e afecções subjetivas do que com a pura atenção à realidade circundante. Eastwood, no entanto, nos convida a refletir sobre o mundo que reencontraremos ao sair da sala. Ele não propõe um cinema de museu, de galeria, de ambientação em espaços deslocados da experiência cotidiana, vedados do mundo exterior. Além da vida é um olhar crítico sobre o mundo que conhecemos (como Lang e Premingersouberam fazer um dia). Eastwood se mantém na esteira de uma arte dedicada a registrar as angústias universais, sendo o meio privilegiado de comunicação com o presente. Ele leva adiante o cinema como possibilidade de capturar um momento da história coletiva dos homens. Por isso há algo de anônimo no filme: não interessa se é um filme de Clint Eastwood, interessa que é um filme que emociona qualquer pessoa que esteja vivendo no início do século xxi. O cineasta que não cansou de se filmar como homem anacrônico, como cowboy deslocado do presente (cf. Bronco Billy, 1980), mostra-se totalmente apto a registrar o espírito que atravessa o nosso tempo. Típica sabedoria de um cavaleiro solitário.

Luiz Carlos Oliveira Jr. é crítico e pesquisador, doutorando em cinema pela Universidade de São Paulo.


Texto publicado em MONASSA, Tatiana (org.). Clint Eastwood. São Paulo: CCBB, 2011 (pp. 98-108).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Exemplo de João Bénard da Costa


De À pala de Walsh · Em Junho 22, 2014

Salvo engano, tive meus primeiros contatos com os textos de João Bénard da Costa em 2006 ou 2007. Isto quer dizer que apenas muito tardiamente (e, ao mesmo tempo, apenas muito recentemente) em relação ao que constitui o bojo de sua produção crítica. O que de imediato chamou minha atenção e contribuiu para o meu interesse foi a imensa flexibilidade do seu pensamento e do seu campo de referências. Qualidade ao mesmo tempo menosprezada e incompreendida, confundida muitas vezes com um ecletismo de fachada, mal formado e sem fundamento, essa flexibilidade diz respeito sobretudo à extensão coberta por um olhar bastante preciso – ou, em outras palavras, verdadeiramente generoso, porquê ao mesmo tempo suficientemente específico e suficientemente amplo. Um ponto de vista, sim, mas perfeitamente heteróclito.
Acredito que a segurança e a consistência das eleições e predileções de Bénard vinham do seu profundo enraizamento (que nada teria, nem teria por que ter, a ver com qualquer estagnação ou engessamento), característica fundamental que o dotava da capacidade de abordar com conhecimento erudito e fôlego sempre renovado as tradições mais longevas e duradouras de todas as artes, no teatro como na pintura, na música como nas pesquisas poéticas e literárias, ou aquilo que determinada cultura teria de menos evidente e, portanto, de mais interiorizado e entranhado (seus textos sobre Mizoguchi, todos notáveis). Capaz, também, e também por causa desse enraizamento, de conjugar a efervescência analítica do campo ensaístico, por onde comumente trafegam os (bons) teóricos quando abordam o cinema, ao assentamento de um estilo literário distinto e requintado, comum aos grandes críticos de arte (é o crítico que mais me faz pensar na empreitada de ÉlieFaure com a sua história da arte, mais até do que Godard com as suasHistoire(s) ducinéma). É a esse enraizamento, e não às oscilações de uma vontade vã e suscetível às mudanças ditadas pelas flutuações de valores e pelos ditames dos gostos e das modas, que devemos justamente a aptidão para a antevisão, pela qual Bénard da Costa veio a detectar inúmeras vezes aquilo que já não era ou que rapidamente deixaria de ser permanente, aquilo que não apenas acompanha as mudanças e as transformações decorrentes delas como também as determina, dá-lhes uma direção. Nesse sentido sua menção a Wenders na Folha da Cinemateca que escreveu sobre The MostDangerous Man Alive (O Mais Perigoso Homem Vivo, 1961), de Allan Dwan, é nada menos que premonitória e definitiva.
Se Bénard foi, junto com Jean-Claude Biette, o mais astuto espectador e cronista da modernidade tardia que seguiu a efervescência dos cinemas novos, isto se deve a uma capacidade de assimilação vigorosa, somada a uma penetrante e ao mesmo tempo vigilante faculdade de descoberta e de renovação. Pioneiro nas valorizações, quando não responsável direto pelas descobertas, de Werner Schroeter, Raoul Ruíz, John Carpenter, Paul Newman, Alain Cuny, do próprio Biette (isto sem falar em Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António Reis & Margarida Cordeiro, João César Monteiro, Pedro Costa, Jorge Silva Melo, Alberto Seixas Santos, Manuel Mozos, António da Cunha Telles, Rita Azevedo Gomes, João Botelho e tantos outros a quem lhe devemos o simples alcance), nas redescobertas ou revalorizações de Gerd Oswald, Richard Fleischer, Leo McCarey, Jacques Tourneur, Henry King, Frank Borzage, Manuel MurOti, Sacha Guitry, Boris Barnet, sempre atento em suma – sempre disponível -, Bénard possuía o atributo fundamental dos grandes prospectores, dos grandes homens de cinema, tal qual Henri Langlois, tal qual Pierre Rissient, tal qual Peter vonBagh, Adriano Aprà, Miguel Marías e outros (não mais que um punhado): ele ia aos filmes, subsequentemente perseverando por eles, lutando para que fossem vistos, jamais esperando que eles chegassem a ele como que por desvio de rota ou por distração (como parece ser o caso com parte considerável dos atuais críticos e dos que sondam, ou pretendem sondar, a atualidade do cinema). Essa ação, que determinou e condicionou a dimensão e, por isso mesmo, a importância do trabalho de Bénard, não tem como ser desvinculada da sua produção crítica nem tem como ser reduzida unicamente aos caprichos de um curador insaciável: ela própria é eminentemente crítica.
Se o seu caso permanece exemplar, é justamente pelo que nele há de dedicação e anulação.
Bruno Andrade
* Qualquer pretendente a crítico tem como obrigação ler o texto dedicado a Richard Fleischer na ocasião da morte do grande cineasta norte-americano (O Realizador do Balouço Vermelho), exemplo de como se escrever sobre um realizador do passado e filmes de longa data com nada “de saudosismo ou de retrocesso”, atento ao “progresso e modernismo que a evidência, a filigrana e garra da posta em cena deste verdadeiro realizador afirma”, como bem escreveu José Oliveira no seu excelente texto sobre ViolentSaturday (Sábado Trágico, 1955), bem como a crônica que Bénard escreveu sobre como veio a conhecer pessoalmente Jon Whiteley, o jovem John MohunedeMoonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955) (De John Mohune a Jon Whiteley ou de Fritz Lang a Jean-Auguste-Dominique Ingres): não há melhor escola.
** Dedico este texto a Riccardo Freda e ao seu melhor filme, I miserabili (Os Miseráveis, 1948), que Bénard certamente teria amado. A Bénard da Costa dedico site com o qual eu e uns amigos nos ocupamos nas horas vagas: “theexercisewas beneficial”.

[Bruno Andrade mantém uma revista de cinema online, a Foco, cujo primeiro número é dedicado a João Bénard da Costa, compilando diversos dos seus textos e uma homenagem de Miguel Marías
(Texto original: http://www.apaladewalsh.com/2014/06/exemplo-de-joao-benard-da-costa/)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

COMO UM NADADOR SOLITÁRIO...


Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 391, janeiro de 1987.
A escola do super-8

Cahiers du Cinéma: Como você foi levado a fazer cinema? Qual foi sua formação?

Nanni Moretti: Durante meus últimos anos no colegial, eu era um espectador apaixonado sem, no entanto, ser alguém doente. Eu via tudo, inclusive os filmes ruins, pois é muito importante vê-los. Fazer cinema? Não se pensa isso, é algo instintivo. O cinema, para mim, era, e é sempre, um meio adequado para comunicar aos outros e a mim mesmo aquilo que tenho dentro de mim. Na época, eu não conhecia ninguém no meio do cinema e os meus pais não tinham nada a ver com ele – eles são professores. Fazer cinema era um risco. Não era “Eu vou fazer cinema e eu farei”, mas mais um ponto de interrogação. Eu tinha que escolher entre duas vias diferentes, ou entrar numa escola de cinema ou me tornar assistente. Felizmente, não fiz nem um nem outro. O Centro Experimental de Cinema em Roma era reservado unicamente àqueles que tinham obtido um diploma de mestrado. Não tendo feito universidade após o colegial – eu não tinha muita vontade de entrar numa outra escola -, era impossível, para mim, me inscrever nesta escola de cinema. Por outro lado, a Academia de Arte Dramática, que é uma escola reservada aos atores (onde se ensina um tipo de atuação um pouco fria, árida), não me convinha. Então, eu tentei me tornar assistente, mas não funcionou. Cada vez que eu pedia diretamente a um diretor, a resposta era não. Ser assistente de um diretor é um trabalho diferente de querer se tornar diretor. Não há transmissão de uma expressão artística entre o diretor e seu assistente. Há somente histeria: berra-se, grita-se, e isto é tudo o que é dito entre os dois. O diretor tem o filme todo na cabeça e nem sempre quer comunicar, mostrar a outros seu processo, do roteiro à filmagem. Ser assistente é útil, talvez, uma vez ou duas, para compreender como é a organização, o plano de filmagem, mas de maneira alguma para saber o que é o cinema num plano artístico, pela proximidade com o processo do diretor. Ser assistente permite igualmente apreender um set de filmagem do ponto de vista psicológico: as relações entre o diretor e os atores, o diretor de fotografia, os técnicos. As pessoas têm o seu caráter, suas suscetibilidades, não é fácil. Para além do trabalho de assistente, há o risco de se tornar um cineasta profissional. Na Itália – não sei como é nos outros países -, dizer que um cineasta é um expert, que é um bom profissional, é o pior elogio que se pode oferecer a ele. É um defeito, não uma qualidade. É realmente muito negativo. Na Itália, quando um cineasta não é bom, dizemos que ele é bem preparado tecnicamente, bem instruído. O que nos leva a falar de uma não-mise en scène, uma mise en scèneestandardizada, impessoal: é ele, mas poderia ser qualquer outro. 

Então, eu comecei a fazer cinema absolutamente sozinho, filmando pequenos filmes em super-8. La Sconfitta e Pâté de bourgeois (a história de um garoto que coloca secretamente sua câmera em banheiros públicos), que eu filmei em 1973, são filmes em que eu fiz tudo: a escritura do roteiro, a direção, a fotografia, a montagem, o ator. Foi assim que eu aprendi. O super-8 é uma escolha por falta de meios, mas é também um meio de expressão simples, longe de todo profissionalismo pesado. Na minha opinião, não há verdadeiro cinema sem um aporte pessoal, e com o super-8 há isso obrigatoriamente. Então, eu não poderia ter começado melhor. Amo quando a técnica é simples, não visível. O resto é a expressão, a linguagem, o estilo. 

O super-8 me pôs na via de um cinema simples. É este que eu amo, e não um cinema simplista ou banal. É muito mais difícil fazer um filme com uma câmera imóvel do que movendo-a sem razão aparente. É mais difícil fazer um cinema simples do que um videoclipe. Um cinema simples pressupõe um grande trabalho de escrita previamente. É um cinema que confia no espectador, pois, no caso de um filme cômico, ele não o obriga a rir em tal momento, com um enorme piscar de olhos ou uma careta, ou a chorar em tal outro. Fazer um filme simples não constitui um ponto de partida, somente um pouco de chegada. 


Carta de um cineasta

CC: O fato de ter filmado em super-8 (condições de trabalho, leveza do suporte) permitiu a você abrir espaço à improvisação na filmagem?

NM: Enquanto ator, sou incapaz de improvisar. Não quero tentar e não acredito de maneira alguma na improvisação. Alguém como Begnini pode improvisar – ele tem a experiência do teatro, da cena -, eu não. Como cineasta, também não improviso. Passo muito tempo escrevendo um roteiro. Durante a preparação, posso modificar certas coisas de acordo com os atores e as locações, mas eu não improviso. Alguns diretores de filmes cômicos dizem: “Ah, como nos divertimos na filmagem, improvisamos bastante.” Isso não quer dizer que o público achará isso divertido. Quando começo a filmar, tenho o roteiro mas não a decupagem em planos, com os movimentos de câmera. Faço a decupagem  durante a filmagem ou pela manhã, no carro a caminho do set, como um garoto que faz seus deveres de casa atrasado, no último momento, depois de ter passado a noite jogando futebol ou vendo televisão.

CC: No início, sua vontade de fazer cinema era ser, ao mesmo tempo, ator e diretor ou somente ator?

NM: Os dois ao mesmo tempo, desde o início. Me parecia natural para o tipo de filmes, muito pessoais, que eu queria fazer. Truffaut disse um dia, ao ser perguntado por que tinha sido ator em filmes como L’Enfant Sauvage e A noite americana: “Há cartas que escrevemos à máquina; esses dois filmes são cartas escritas à mão.” Quanto a mim, eu jamais escrevi uma carta à maquina em toda a minha existência. Eu sempre atuei em meus filmes e sempre pensei, sem me colocar muitas questões, que a minha maneira de atuar ou de não atuar era, com os seus ritmos, suas pausas, seus silêncios, aquela que convinha a meus filmes.

CC: Você não considera dirigir um filme sem atuar nele, ou ser ator de um outro cineasta?

NM: Dirigir sem atuar? Até o momento, não. Ser ator em filmes de outros, eu não digo não, mas, para isso, há muitos fatores que entram em jogo e que tornam a coisa muito difícil. Seria preciso que eu amasse o tema, que amasse o personagem, que tivesse vontade de atuar, que eu amasse o cineasta com o qual iria trabalhar e, sobretudo, que eu tivesse tempo de fazê-lo.


Autorretrato de um personagem

CC: Quando concebe o personagem que você interpretará, você parte primeiro da sua profissão (professor, padre), da função que ele exerce na vida social?

NM: Não. Para A missa acabou, me divertia vestir uma batina, me ver assim, muito antes de pensar no papel do padre, sua significação, mesmo que  seja um personagem que tem a ver com aqueles que já interpretei. Quando escrevo um roteiro, me apoio em fatos precisos. Não começo escrevendo uma história. É preciso primeiro que eu identifique a psicologia do meu personagem, seus sentimentos. O resto, a história, deriva daí.

CC: Em que seus personagens se revelam autobiográficos?

NM: Eles o são pelo caráter, por certos dados psicológicos, mas não realmente pelos episódios contados pelo filme. Se quisermos ser minuciosos, o mais autobiográfico seriaEcce Bombo, em que eu faço o papel de um cineasta que vive com sua mãe, que é um pouco colérico (ele agride todo mundo) e que faz um filme sobre um velho senhor que vive com sua mãe e se toma por Freud [a descrição, no entanto, corresponde a Sogni d’oro, e não Ecce Bombo. N.T.]. Nos meus sonhos, eu me vejo um professor apaixonado por uma de suas alunas. Em Io sono un autarchico, faço o papel de um pai que acaba de deixar sua esposa e que vive com seu filho de cinco anos. É um ator de teatro que participa de uma trupe de vanguarda, a “Escola Romana”, o que estritamente não tem nada a ver com a minha vida: eu não tenho filhos e jamais fiz teatro.  Meus personagens são autobiográficos na medida em que eles representam um estado de espírito meu em um dado momento e em que eles exprimem sentimentos. 

Os personagens dos meus dois últimos filmes (Bianca e A missa acabou) são próximos. Eles se realizam nos outros e sua felicidade se dá através daquela do outro. No fim, eles percebem que a realidade, felizmente ou infelizmente, é mais complicada do que eles esperavam. Quando personagem de Bianca percebe que a realidade não é tal como ele quer, ele a destrói: ele mata seus amigos que se traíam uns aos outros e que, por esta mesma razão, traíam a ele. Em A missa acabou, o personagem começa a aceitar a ideia de que a realidade é mais complicada do que ele imaginara. Então, ele não insiste. É ao mesmo tempo uma vitória e uma derrota. Uma derrota com relação aos outros, porque ele não conseguiu fazer algo por seus amigos. Uma vitória sobre ele mesmo, em relação ao personagem de Bianca, porque ele assume sozinho esta derrota.

Autobiografia, certo, mas autoterapia não. Não faço filmes para resolver meus problemas – eles não mudam nada, não me sinto melhor uma vez que o filme foi realizado e não creio de maneira alguma nesta função do cinema -, mas somente porque eu gosto de comunicar pelo viés do cinema. 


Atores em família

CC: De onde vêm os atores de seus filmes? Aqueles de A missa acabou são formidáveis. 

NM: Eles não são atores de cinema (risos). Os atores de cinema, na Itália, são uma farsa, por causa da dublagem. Claro, há aqueles da comédia italiana, Gassman, Sordi, mas é uma outra geração. Os atores dos meus filmes vêm de dois horizontes: os não profissionais, pessoas da minha família (em Sogni d’oro, meu pai faz um produtor, emBianca, o psiquiatra, em A missa acabou, o juiz do tribunal), amigos, críticos de cinema (Giovanni Buttafava, Tatti Sanguinetti), e os profissionais, que são pessoas do teatro. Em geral, prefiro discutir com eles uma meia-hora, tomar uma cerveja, mais do que  passar três horas vendo-os no teatro. O que eu procuro num ator são as qualidades humanas. Na filmagem, amo a mistura entre atores profissionais e não profissionais. Do ator profissional eu tento eliminar seus defeitos mais profissionais, eu o trato como um amigo. Contrariamente, com um ator que não é da profissão, eu tento criar uma relação muito profissional, eu lhe insuflo o profissionalismo. Eu escolho eu mesmo todos os atores dos meus filmes, incluindo os figurantes e aqueles que têm apenas uma única fala a dizer. Eu tenho um enorme dossiê sobre eles, com muitas fotos.

CC: Enquanto ator e cineasta, como você procede com os outros atores?

NM: Quando há um problema na filmagem entre o ator e seu personagem, eu prefiro ir do personagem em direção ao ator, mais do que obrigar o ator a entrar em seu personagem. O ideal é terminar a escrita do roteiro no momento em que escolho os atores. Eu começo a preparação, defino as locações e escolho os atores no meu escritório. A partir dos atores, eu sei que posso fazê-los dizer certos diálogos e não outros. Isto dito, durante a filmagem, é preciso saber detectar a tempo aquilo que o ator pode ou não pode dizer. Todos os diálogos são escritos previamente, nada é improvisado. Me acontece de mudá-los quando percebo que eles não se adaptam ao ator. Uma frase de um diálogo, tão bonita quanto for, se mal dita, se torna ridícula. Na decupagem das sequências há poucos planos, mas faço muitas repetições para o trabalho dos atores, o som. Nos meus filmes, durante os takes, o técnico de som, se acreditar que existe um problema em particular, pode fazer parar tudo. Ele tem esse direito, enquanto que normalmente, na Itália, ele não vale nada. Sou muito perfeccionista no que concerne ao trabalho dos atores. Em geral, filmo planos que duram muito e que não admitem pontos de corte. É preciso, então, que eles estejam bem do início ao fim. Daí as múltiplas repetições.


O som vale ouro

CC: Seus filmes são dublados ou você usa o som direto?

NM: Utilizo som direto, 100%. Na França, é algo quase normal, na Itália é totalmente incongruente. Os diretores não estão habituados, os atores muito menos, os técnicos de som, os diretores de fotografia – pois eles devem posicionar os microfones de maneira que não vejamos sua sombra na imagem -, a produção (a organização do plano de filmagem), ninguém. Eu escolho os pequenos papeis em função da captação do som direto. Não mitifico a espontaneidade, o natural, mas sei que é quase impossível recuperar na dublagem o sentimento que tinha o ator em um dado momento durante a filmagem, suas emoções, as nuances na voz, seus altos e baixos. Na Itália, a dublagem vai de mal a pior: os filmes são dublados como os folhetins americanos: há vozes, alguns passos e mais nada. Tudo é uniformizado.

CC: O fato de você ser ator e diretor lhe coloca problemas particulares na filmagem?

NM: No início, vou para trás da câmera, decido a composição do plano colocando alguém no meu lugar. É muito rápido. Em seguida, começo a atuar e faço todas as repetições com os atores. Fico mais diante da câmera do que atrás dela. Filmo muitos takes, para ter o máximo de material na montagem. Nunca sei na filmagem se a melhor é a primeira, a quinta ou a nona tomada, e consequentemente mando revelar praticamente todas as tomadas no laboratório e escolho depois. Não utilizo monitor de vídeo durante a filmagem [já em Palombella Rossa, no entanto, sabe-se que Moretti admitiu o uso de vídeo-assist. N.T.]. Detesto equipamento eletrônico. É um paradoxo, pois sei que a maioria dos diretores-atores utilizam o vídeo durante a filmagem. Ao meu ver, no lugar de me fazer ganhar tempo, ele me faz perdê-lo. Pode-se ficar obcecado, em busca de um resultado que gostaríamos que fosse perfeito, e em seguida o operador de câmera dá sua opinião, o diretor de fotografia a sua, o maquiador, o assistente também... Alguém tão obcecado como eu jamais estaria satisfeito. Arriscaria jamais terminar o filme. Eu prefiro, então, ter a surpresa dois dias depois, ao assistir ao material filmado. 


A comédia italiana

CC: Você se define como um realizador de filmes cômicos?

NM: (risos, silêncio) É um pouco ridículo querer censurar as gargalhadas, impor o riso aqui mas não ali, porém tenho a impressão, enquanto espectador de meus filmes, de que alguns espectadores riem um pouco demais. (risos) Há um lado cômico, mas também um lado doloroso, um pouco dramático e, eu espero, não muito angustiante. Um bom filme não nos angustia jamais.

Você me falava agora há pouco da profissão exercida pelos meus personagens. Em Bianca, sou um professor. Em Sogni d’oro, há uma cena em que sou professor, e emA missa acabou, eu ensino catequismo e dou cursos pré-nupciais. Só hoje me dou conta de que, nos três casos, eu fico enxotando os outros. Em A missa acabou, eu enxoto aqueles que riem demais, aquele que zomba do casal com a mulher grávida. É um pouco como o mau espectador dos meus filmes e como se eu mesmo o enxotasse da sala de cinema. Isto dito, esse quiproquó sobre o fato de que eu faço filmes cômicos me dá um enorme prazer. Na Itália, meus filmes não tiveram um sucesso enorme, mas de qualquer forma foi razoável e, graças a isso, eu pude fazer outros. O espectador está habituado. Se ele ri cinco vezes em um filme, ele vai querer rir 50 vezes no próximo. O espectador não está acostumado a um filme que mistura o cômico e o dramático e, no que me concerne, eu gosto não de sucedê-los um ao outro, mas de juntá-los em um mesmo momento, fazer de forma que a cena seja a um só tempo engraçada e dramática. Isso obriga a um cômico diferente, pois é preciso não acrescentar, mas retirar. É um cômico um pouco avarento, que me convém porque não me interessa pegar o espectador pela mão, como no maternal, e lhe dizer onde deve-se rir.

CC: Como você se situa com relação à tradição ou à herança da comédia italiana?

NM: Quando comecei, nós estávamos nos últimos filmes da comédia italiana. Ela rendeu bons filmes, ainda que tenhamos sido um pouco generosos demais com ela. Hoje, são filmes para a Páscoa e o Natal, filmes de produtores e atores, como Adriano Celentano, que são ruins. Quando comecei, eu queria fazer um cômico diferente da comédia italiana, enquanto que os outros falavam a meu respeito de uma renovação do gênero. Eu tinha mais a impressão de fazer um contrapé. Todos os cineastas da comédia italiana falaram de meios que estavam longe deles: um operário, um pequeno burguês etc. Eles zombaram de personagens de meios que lhe eram estrangeiros. Pessoalmente, eu zombo de personagens e meios que me são muito próximos, que eu conheço muito bem. É um pouco a autobiografia como crueldade para consigo mesmo. Não temos o direito de sermos perversos com os outros se não o somos conosco mesmos. A auto-ironia é obrigatória, sob pena de tornar-se ridículo. 

Entrevista realizada por Charles Tesson. Traduzido do francês por Calac Nogueira.


Agosto de 2012
(Texto extraído: 
http://www.contracampo.com.br/99/artentrevistamoretti.htm)


LEFFest 2014: retalhos da vida de um gajo que vê filmes, parte II (fragmento)

De Carlos Natálio · Em Novembro 11, 2014
(...)
Lisboa, 10 de Novembro de 2014 – Dia 4
Hoje foi dia F. F de Ferrara.
Não quebrei o regime do filme-diário (vou guardar esse trunfo lá mais para a frente) só vi Pasolini(2014) mas recupero aqui o que tinha escrito no vento das redes sociais sobre o outro filme do nova-iorquino Welcome to New York (2014), sobre a persona de Dominique Strauss-Khan, que também foi exibido hoje. Escrevia que:
O corpo de Gerard Dépardieu – que era suposto ser o símbolo da encenação minuciosa da alta finança, do jogo/negócio da pobreza – nas suas opulentas carnes, ora projectadas, ora ofuscadas pelas luzes dos quartos de hotel, é antes sinal de grotesco. Esse grotesco, em que se vê mais do que era suposto quando conduzido pelo “fazer ver” representativo, mostra duas coisas. Uma, que a carne não se encena. Duas, que a pulsão sexual predatória parece almejar um estatuto qualquer de dignidade muito primária quando colocada lado a lado com a racionalidade insuperável do livro de cheques.
Posto isto fico a pensar no que liga Strauss-Khan a Pasolini. Se calhar nada mas foram dois filme sobre figuras históricas que Ferrara quis colocar sobre o filtro do seu cinema em 2014. Porquê esteregard por estas pessoas? Ferrara já fez documentários mas aqui é o impulso do real concreto (o assédio sexual de Strauss-Khan a uma empregada de hotel em Nova Iorque e o assassinato de Pasolini nas redondezas de Roma em 1975) que o levam a ficcionar. Neste artigo o Vasco Câmara contou que a versão de Ferrara era que ambos estavam unidos “pela coragem da solidão, porque em ambos essa solidão era em si qualquer coisa de herético”. Fico a pensar nesta resposta, que não me convence de todo mas não tenho alternativa… Assim estamos.
Na conversa com o público após a sessão, no seu jeito bully bad-boy com coração de manteiga, Ferrara disse que aos 20 anos quando viu Il Decameron (Decameron, 1971) ficou menos convencido da sua própria genialidade e da importância das curtas que tinha feito nos anos 70 e apercebeu-se que Pasolini raised the bar so high that he couldn’t see the bar. Se em Welcome to New York há uma certa admiração pelo encurralamento de Khan e pela extrema ditadura do seu instinto (o que fazia com que estivesse à vontade para filmar a carne de Dépardieu de fora, curioso, pensativo) com Pasolini, a carne do seu cinema está tão imprimida no trajecto de Ferrara que não há esse espaço para ver o realizador de Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) de fora. Por isso Pasolini é um filme demasiado próximo a um ídolo, feito com demasiado gut feeling, transformando-o por vezes nessa figura arquetípica do seu cinema, punk, óculos escuros, na noite. Pasolini herói sobre quem há um certo pudor em mostrar o corpo, em mostrar a sujidade pura sem estilo do seu imaginário. Nesse impasse, o cinema de Pasolini parece devorar a homenagem (Ferrara falou disso mesmo quando decidiu abrir o seu filme com as imagens da abertura de Salò) e o espaço do homem polémico e multifacetado – que falava do fim da narrativa, do ódio à televisão portadora de notícias-legionella, do “desaparecimento dos pirilampos” como símbolos de resistência, pouco tempo antes de morrer – dá lugar às cenas de carácter burlesco (a aparição de Maria de Medeiros) ou de pura emoção pelo desaparecimento do mestre, com a música de Maria Callas e o desespero de Adriana Asti (actriz de Accatone) no papel de mãe de Pasolini.
Fica impresso no ecrã a morte do italiano. É pena que juntamente com um filme onde as orgias sejam apenas as orgias de reprodução e Ferrara não tenha conseguido conter-se nos fogos de artifício e nas estrelas de Belém. Entre a merda de Salò que Pasolini nos tinha deixado e a claridade total do novo “fascismo cultural” que já não permitia ver os clarões na noite, estes fogos de artifício são cópias pálidas da intermitência dos seus poéticos políticos pirilampos. Quase 40 anos depois da sua morte, as “linhas de fuga” da trilogia da vida permanecem fechadas.

Texto original: 
http://www.apaladewalsh.com/2014/11/leffest-2014-retalhos-da-vida-de-um-gajo-que-ve-filmes-parte-ii/

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O QUE ESTÁ DITO...


“Ce qui est, est.” / “Ce qui est dit, est dit.”

Em seu célebre artigo “Génie de Howard Hawks” (1953), Jacques Rivette diz que “a evidência é a marca do gênio” do diretor de Monkey Business. O estilo de Hawks deve ser buscado na parcela puramente física do filme, no que este tem de mais imediato, de mais associado à ação, ao gesto, ao homem reagindo às modulações do espaço. “Os passos do herói traçam a figura de seu destino”. O primordial é da ordem da ação. A inteligência artesanal de Hawks se aplica diretamente ao mundo sensível: “Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. O que é, é.”
1

No primeiro plano de Le Monde vivant (2003), de Eugène Green, vemos um quarto vazio, com uma cama arrumada e uma pequena janela ao fundo. Ocorre um breve diálogo em off. Trata-se de um casal conversando sobre o desaparecimento do filho, quase como se fosse uma trilha de comentário sobre a ausência que o quarto vazio, em si, já significa. A mãe diz que fazem três dias desde que o filho desapareceu, o pai diz que o filho manterá contato, a mãe crava que não, o pai pergunta como ela pode saber, ela responde: “O que está dito, está dito”.

O filho disse que não retornaria e assim será, pois a palavra empenhada contém a verdade, a única verdade possível. Se em Hawks a evidência do mundo estava na ação, em Le Monde vivant ela se desloca para aquilo que, em Green, é o elo vivo entre o signo e a coisa: a palavra. O mundo vive em nós através da palavra. E a recíproca é verdadeira, já que a palavra, para vir à luz, precisa ser transcrita na matéria do mundo ou passar por um corpo para se tornar fala.

mise en scène, na visão de Rivette sobre o cinema de Hawks, prolongava as vibrações do mundo nos movimentos do corpo e vice-versa. Em Green, por sua vez, é por meio da palavra que o homem cria seu elo definitivo com o mundo. Ora, tornar sensível o elo entre o homem e o mundo nada mais é que a tarefa principal damise en scène descrita por Rivette. O desdobramento lógico é que a palavra, centro e origem da mise en scènede Green, cumpre a mesma função que o combate corporal e as lutas calorosas cumpriam enquanto meio natural dos heróis de Hawks. Para Green, “tudo parte da língua, mesmo as coisas visuais”
2. Sua estética se define pela tríade homem-palavra-mundo, ou pelas relações do homem e do mundo tendo como mediador a palavra, a linguagem. Talvez as frases de Rivette (cujo Hurlevent[1985], aliás, já apontava em parte o caminho que Green seguiria) e do início de Le Monde Vivant possam se fundir numa só: o que é, está dito.

Dar corpo ao espírito das palavras

Mediante o uso enfático da palavra, o cinema de Green se abre para um mundo que extrapola o corpóreo e o terreno e atinge o misterioso, o espiritual, o mitológico – em resumo: o poético. Em Toutes les nuits, o jovem Jules (Adrien Michaux) afirma – para o choque de seu professor de literatura e de seus colegas de faculdade – que “a poesia é a presença manifesta na linguagem de uma ordem”, ordem entendida não no sentido político (“mas toda ordem é política!”, protesta uma aluna – o ano é 1968), e sim como “alguma coisa universal que se pode sentir quando se está totalmente sozinho em uma igreja”. O que nem seu professor nem seus colegas percebem é que, com tal afirmação, Jules não revela uma postura reacionária, mas pratica um poderoso ato de resistência. Ele defende a poesia como o último refúgio de um absoluto da linguagem.

Derivada dessa poesia definida por Jules como ato de fé, a palavra greeniana é o ligante natural entre o corpo e o espírito, é a busca do caminho que liga a fonética do cotidiano aos mais profundos mistérios do sagrado. Aquela dicção tão peculiar de seus personagens é a depuração do momento em que o corpo se conjuga ao verbo que o anima. Green retira a musicalidade da declamação típica do teatro barroco, com o qual ele trabalhava antes de partir para o cinema, e interioriza os diálogos, como se cada personagem, ao falar com outro, falasse antes consigo mesmo, se inter-rogasse a todo instante.

A palavra cumpre em seu cinema a função que o desenhocumpria na cosmologia estética de Federico Zuccari (pintor e arquiteto italiano do período maneirista): o signo da presença de Deus nos homens e no mundo (ele assim interpretava etimologicamente: Disegno = segno di dio in noi 
3). À semelhança do desenho perfeito que Zuccari celebrava como o “segundo sol do cosmos”, a “segunda natureza criadora”, “o segundo espírito do mundo que vivifica e alimenta”, a palavra aparece em Green como a própria criação do mundo, como o elemento que aproxima o homem, criador de obras de arte, de Deus, criador da natureza.

Signos

Numa das mais memoráveis cenas de Le Monde vivant, Nicolas (Adrien Michaux) vem andando e se depara com o “chevalier au lion” (Alexis Loret). Só que o leão em questão é um labrador. O que faz dele um leão? O fato de que seu dono assim o designa. Se está dito que é um leão, ninguém há de contestar. Esse privilégio da idéia sobre a matéria, do signo sobre o corpo, pode sugerir um cinema “elevado” (sublimado, até), purista, austero. Mas não: Le Monde Vivant é um divertimento. Green nos transporta ao estado epifânico em que se dão os grandes milagres da linguagem, mas o faz por intermédio desse tipo de fantasia recreativa: chamar um cachorro de leão e assim crer e fazer crer.

Outra cena: Nicolas tem seu primeiro encontro com a princesa mantida prisioneira no alto da torre de uma capela. A primeira coisa que ela diz é: “Você não é um cavaleiro”. “O que distingue um cavaleiro de um não-cavaleiro?”, Nicolas pergunta. “A espada”, ela responde. Ela poderia ter dito também: “um signo”. Como se pode ser cavaleiro sem a espada? Como se pode ser cavaleiro sem o signo que cria a significação-cavaleiro? Entre o desígnio em si e sua presença fenomenal, a princesa percebe uma defasagem acarretada pela ausência de um objeto cujo aspecto fálico, inclusive, não é negligenciado (ocorre depois uma cena, maliciosamente cômica, em que Nicolas vai beijar a princesa, já portando uma espada na cintura, e ela reclama que foi “picada” pela ponta da espada, numa clara metáfora da ereção que o jovem teria tido naquele momento).

Nessa ordem instaurada pela linguagem, nada existe antes de receber um nome, ou antes de se articular com alguma outra coisa (universo, portanto, oposto ao de Mal dos Trópicos, onde as coisas existem antes, sobretudo antes, de receberem um nome ou se articularem numa linguagem pautada pelo choque entre signos 
4). Uma vez reivindicada a necessidade do signo, da linguagem, o diálogo entre Nicolas e a princesa passa do plano de conjunto ao campo-contracampo, cada plano correspondendo a uma fala. O plano é frontal, o corte é seco. A decupagem e a montagem de Green respondem a uma demanda intrínseca à crença absoluta na palavra e, por extensão, na transparência do mundo: frontalidade e objetividade.

Em Les Signes (2006), o laconismo do signo (que faz um plano valer por mil, um objeto valer por todos os outros, uma palavra substituir uma frase etc) se acentua e segue uma espécie de ritualística. Uma mulher (Christelle Prot) troca a vela de um candelabro todo dia, religiosamente. Ela explica a seu filho mais velho que a chama da vela, colocada junto à janela do apartamento que dá de frente para um canal, é um signo, um sinal para Deus e para o marido dela, um pescador que um belo dia desapareceu. A vela funciona, assim, como um chamariz. Se o lugar do signo é a janela, é porque ele deve ocupar o limite entre dois mundos: a função do signo é justamente comunicar o interior ao exterior, mesmo se não houver nenhuma garantia de que tal transmissão ocorrerá.

A chama de uma vela é ainda outra coisa: signo instável, tremeluzente, tão mais intenso quanto maior for sua iminência de apagar. O que é uma presença? É tudo aquilo que corre o risco de desaparecer. É o traço mais forte deixado por um corpo ou um objeto no mundo, antes da sua desaparição completa (lembrar das sombras de Adrien Michaux e Natacha Régnier sumindo num crescente clarão na penúltima cena de Le Pont des Arts).

Como a personagem de Christelle Prot em Les Signes, Green demonstra em todos os seus filmes uma fé absoluta no signo, algo que seu primeiro longa, Toutes les nuits(2001), já afirma: para figurar Maio de 68, por exemplo, ele só precisa de uma pequena barricada montada por alguns pneus, três ou quatro jovens carregando tochas, dois policiais armados de cassetete. Nas cenas passadas em Nova York, terra natal do diretor, o procedimento é ainda mais radical, e a cidade é construída apenas por uma ambiência sonora. A mesma lógica do labrador/leão impera aqui: se o filme diz que aquela calçada – deserta em pleno réveillon! – pertence a Nova York, está dito (e os sons dos fogos de artifício e da multidão eufórica estão lá para confirmar). A fé no signo e na presença leva a uma economia dos meios – sabedoria de um cineasta que veio do teatro.

Tudo que Green assimila das outras artes é trabalhado em seus filmes de modo “impuro”. Ele incorpora praticamente sem alteração alguns componentes do discurso literário e da encenação teatral que, codificados por outras práticas significantes, não conseguem atravessar com suavidade a tela de cinema e, em último caso, chocam-se a ela com violência, com peso; esses signos, essas palavras, essas presenças heterogêneas que não traspassam a tela, que não se dissolvem no fluido transparente da captura do real, todas essas coisas obrigatoriamente afrontam o espectador, pois nada lhes resta senão aparecer de forma crua e despudorada diante de nós. Green filma o nu frontal do gesto pictórico, da cenografia teatral, da poética literária.

A fronteira da alvorada

Se eu tivesse de escolher uma cena favorita dentro do cinema de Eugène Green, ficaria com aquele momento deLe Monde vivant em que, no coração da madrugada, horário por si só propício às aparições, o “chevalier au lion” retorna do mundo dos mortos, como que trazido pelo vento da noite, e dá a mão à sua amada Pénélope (Christelle Prot). O encontro das mãos dos dois personagens é um momento mágico, um dos mais belos da década. Assim como Dreyer, Duras, Rivette, Vincent Gallo e Philippe Garrel, Eugène Green sabe que o cinema, quando levado a certos limites, permite aos homens travar um diálogo secreto com os mortos.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

1. Publicado nos Cahiers du Cinéma nº 23.

2. Ver entrevista a Jean-Sébastien Chauvin, em Cahiers du Cinéma, abril de 2001, p. 101.

3. Cf. Erwin Panofsky, Idea: a evolução do conceito do Belo, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

4. Pego atalho num texto que escrevi na época de Mal dos Trópicos: “Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo” (cf. Contracampo nº 66).

Descrição: http://www.contracampo.com.br/95/imagens/bullet_ponto.gif Março de 2010
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/95/artgreenjr.htm)

Blackhat: crítica da separação

Por Guilherme Savioli
Blackhat se constrói sobre um intervalo abissal: aquele que se inicia com as primeiras imagens de uma terra quase cibernética, de onde só se enxergam algumas luzes – e a partir da qual somos lançados diretamente numa longa sequência de mergulho por um organismo virtual – e se estende até o momento em que o protagonista, o hacker Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth), constata que tudo se resumirá à uma questão de se conseguir chegar perto o suficiente e rápido o suficiente de seu alvo. No interlúdio entre esses dois momentos e na sequência que precede a constatação de Hathaway, Michael Mann compõe o que estaria próximo de uma sinfonia, na qual cada sequência é um movimento ensaístico que discorre sobre um problema contido na observação crucial feita por Hathaway (e que já está presente também no mergulho inicial do filme): as coisas, para serem assimiladas em sua essência, precisam ser colocadas fisicamente em choque, confrontadas proporcionalmente em suas escalas.
A luta que existe entre a passagem do virtual e abstrato para o plano físico e concreto não é um motivo que existe apenas a nível temático, mas está incrustado na essência formal da obra. Em Blackhat a encenação de Mann não é marcada tanto pela violência com que os elementos visuais e sonoros eram manipulados em seus últimos três filmes (Colateral, Miami Vice e Inimigos Públicos), mas sim por uma espécie de estudo e revisão do trabalho desenvolvido até então.
Para tanto, há uma certa urgência por parte do cineasta em apresentar de forma extremamente concisa seus personagens, alguns ambientes-chaves pelos quais eles irão circular e o que eles perseguirão. Através dessa concisão (principalmente dos personagens, talvez os mais compactos e superficiais do cinema do diretor) Mann irá trabalhar com o que há de mais aparente nas coisas, com sua superfície mesmo: uma cena de ação – como a briga no bar em Koreatown – servirá para o diretor o explorar ao máximo as nuances de luz e cor, os gestos e principalmente a alternância do ponto de vista e a duração temporal. Se alguns desses traços já eram marcas essenciais e caracterizavam formalmente seu cinema, aqui o componente da dilatação temporal e a tendência de se colocar a matéria à prova, puxando-a rumo à abstração, desenham uma obra sui generis em sua filmografia.
Uma das cenas mais perturbadoras de Blackhat é justamente aquela em que todos as pessoas que ligavam o protagonista e sua amante aos governos da China e dos EUA – personagens que garantiam o caráter de legalidade da missão – são fulminados pelo grupo bandidos. Assim como em Colateral, no momento em que Tom Cruise assassina o policial e Jamie Foxx se vê novamente sozinho, os personagens estão por conta própria a partir desse momento. Ao contrário do filme de 2004, o tratamento que Mann dá a cena não é marcada pela urgência e necessidade de tomada de decisão. O adeus ao amigo e irmão é filmado quase como um ritual, a cena da explosão (como em alguns outros momentos de outras cenas de ação) é filmado em um sutil slow motion. Ao fim da sequência, quando Hathaway e Chen Lien (Wei Tang) estão a caminho da Indonésia somos brindados novamente com uma cena extremamente bela e dura, quando Mann filma o olhar petrificado da atriz, sintetizando seu estado catatônico, e depois corta para o avião mergulhado na escuridão da noite, atravessando a cidade luminosa e finalmente ganhando o horizonte, mais iluminado, mas por apenas alguns breves segundos.
É também na cena do extermínio em que ocorre o plano mais cruel do filme: o momento em que Barrett (Viola Davis), baleada, quase morta, olha para um prédio. Acompanhamos o ponto de vista da morte, em um acentuado contra-plongé. O peso que o momento carrega advém de uma cena anterior, quando a mesma personagem pondera sobre o fato de ser justa a perseguição a Hathaway (ordem das instituições legais responsáveis) e revela que perdeu o marido no atentado do 11 de Setembro. Mann não se preocupa em desenvolver uma carga psicológica que acompanha a personagem (e o mesmo se pode dizer sobre todos os outros personagens e as relações estabelecidas entre eles), a dor existente e partilhada no plano existe, porém, justamente da secura dessa construção, da intensificação do sentido que vem primordialmente pelo aspecto visual, pela exploração dessa superfície.
Se o indivíduo que se debate contra as instituições é uma tônica no cinema de Mann, Blackhat é um dos filmes mais incisivos nesse aspecto, e sem dúvida o mais cético em relação à qualquer instância oficial. Esse aspecto está impresso na forma como Mann insere as figuras de seus personagens contra o horizonte, figura característica de seu cinema. Antes, apesar do peso existencial que dominava esses planos, o horizonte de possibilidades existia. Agora, o horizonte parece se desfazer, ou existe apenas por um breve instante.
Hathaway já havia feito a fatídica declaração (I’m doing the time, time isn’t doing me) e o ponto de vista da morte de Viola Davis é o bastião formal dessa profunda descrença (que em Blackhat já se converte em um profundo desprezo) pela ordem institucional, que opera sempre num plano quase virtual, abstrato. Novamente, é necessário trazer às coisas à terra, e nesse movimento a primeira instância a ser fulminada é essa suposta legalidade.
Ao compor esse ensaio sinfônico sobre um problema que julga ser central em nossos tempos, Michael Mann assume um risco e uma responsabilidade que se assemelham apenas ao salto formal rumo ao minimalismo, de um Howard Hawks em Red Line 7000. Seu diálogo atual é com Clint Eastwood, que em Sniper Americano propõe, igualmente, uma depuração em seu estilo, mas encaminha sua narrativa para o épico. Mann continua sendo um cineasta essencialmente do drama, mas ao submeter sua narrativa à uma construção formal que tensiona a matéria rumo ao abstrato, leva a discussão central de seu cinema a um outro patamar.

Texto original: 
http://www.revistainterludio.com.br/?p=8427

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Divulgando a divulgação:

1° Bloco: http://www.e-parana.pr.gov.br/modules/video/videosProgramas.php?video=19217
2° Bloco: http://www.e-parana.pr.gov.br/modules/video/videosProgramas.php?video=19218
3° Bloco: http://www.e-parana.pr.gov.br/modules/video/videosProgramas.php?video=19219