sexta-feira, 31 de julho de 2015

I VITELLONI / 1953


(Os Inúteis)

Toda a obra de Fellini é uma autobiografia. Fellini como “objecto” e “matéria” de filmes não se limita a uma rememoração de experiências e confissões. O autor expõe-se também nas suas rêveries, obsessões e nos caminhos não percorridos, no desejo de ser outro, e na confluência de outros destinos com o seu, onde projecta uma faceta grotesca. Mas esta biografia sonhada e sublimada, de que a psicanálise é um dos instrumentos de leitura, só se manifesta a partir de La Dolce Vitta e se afirma definitivamente com Otto e Mezzo. Até essa ruptura linguística e temática, a sua matéria é não o sonho mas a experiência pessoal, não sem que se detectem já os sinais do “outro” Fellini, pelo papel atribuído à função onírica já fundamental no final de I Vitelloni constrói-se de forma semelhante, na que permanece ainda hoje como uma das mais belas sequências do realizador: Moraldo (Franco Interlenghi) abandonando a terra natal no combóio, cujo movimento é montado paralelamente com uma série de travellings para trás sobre os seus companheiros adormecidos, um movimento que é tanto símbolo de ruptura com o passado da sua parte, como, no sentido inverso, projecção dos desejos não materializados de evasão dos companheiros. Ainda de forma “realista” Fellini lança as bases do seu cinema a partir dos anos 60. E o personagem desencantado de Moraldo forma com o Marcello de La Dolce Vitta e o Guido de Otto e Mezzo um corpo único onde Fellini se “retrata” a si próprio. Numa carta a Angelo Solmi, Fellini dá conta do que I Vitelloni tem de autobiográfico, com a sua terra natal de Rimini servindo de modelo para a cidadezinha de província onde os vitelloni passeiam a sua mediocridade e embalam sonhos que não materializarão (será preciso o reconhecimento internacional e vários óscares para Fellini, para que os seus conterrâneos lhe perdoem o facto de não ter feito o filme em Rimini). E se é Moraldo o personagem com mais traços autobiográficos, também os outros, como diz Fellini na referida carta, projectam algo de si, embora inspirados em amigos de infância. Para um dos personagens irá buscar o seu próprio irmão, Riccardo Fellini. Em I Vitelloni Fellini “imagina” o que poderia ser o futuro de todos eles.

Cinco homens, Fausto, Ricardo, Leopoldo, Alberto e Moraldo, formam esse grupo de vitelloni, gente desocupada, que arrasta uma apagada e triste existência entre o usufruto do imediato e projectos que nunca chegam a concretizar, vivendo à custa dos familiares, imaturos e fugindo às responsabilidades. Não deixa de ser interessante verificar que os personagens têm o nome dos actores que os interpretam, excepto o primeiro e o último, que são também aqueles a que o realizador dá mais atenção, Fausto como uma espécie de personagem central dos vários episódios do filme, Moraldo numa função de testemunha. Se na intriga ele é o mais apagado (à excepção das belíssimas sequências com o garoto ferroviário), está, porém, presente ao longo de todo o filme, vendo, observando, testemunhando a mediocridade do meio e daquela vida. A sua fuga não é um acto reflectido: é como a água que transborda de vaso. Atinge o limite do suportável e desaparece sem objectivo. O jovem ferroviário (única testemunha da sua partida) pergunta-lhe: “Onde vais?” e Moraldo responde: “Não sei. Vou-me embora” “Mas o que vais fazer?”, “Não sei. Preciso de partir. Vou-me simplesmente embora”. A que se segue um olhar constrangido sobre a cidade que a pouco e pouco vai desaparecendo com a montagem paralela atrás referida. Cada episódio são gotas de água que vão fazer extravasar o cálice de Moraldo, sendo o definitivo a tragi-comédia da busca da mulher de Fausto (irmã de Moraldo). É Fausto o mais triste destes tristes heróis, sem sentido de moral, procurando seduzir a mulher do patrão, tentando vender uma estátua roubada, numa antecipação dos pobres diabos sem moral de Il Bidone. Se há redenção para os personagens de Fellini, é Moraldo quem a representa neste filme. Mas apenas a esperança da partida, deixando o resto em suspenso. Se a sorte lhe sorrir poderá ser um jornalista (Marcello, em La Dolce Vitta) ou um realizador de cinema (Guido, em Otto e Mezzo). Fausto, o mais arrogante e ousado (O que mais sonha com a partida da cidade, procurando aliciar Moraldo. Mas tal gesto não era mais do que uma fuga às responsabilidades por ter engravidado Sandra), revelar-se-á o mais fraco. Alberto será o primeiro a afirmá-lo. Moraldo tem há muito consciência disso, mas recusa-se a admiti-lo, e só no final, com relutância, lhe lança o epíteto de cobarde à cara. Para Alberto ficará a mais patética das sequências: a do travesti, após a noite de carnaval, qual marioneta desarticulada e abandonada no meio da rua, verdadeira premonição de um futuro sem horizontes.

Em I Vitelloni já está todo o Fellini. O trabalho da memória obsessivamente retomado, os personagens procurando o caminho entre o desespero e a graça. E uma forma de mostrar que transcende os limites do “neo-realismo”, com as imagens rigorosamente trabalhadas (a disposição dos personagens na profundidade de campo nas sequências do cais, da praia e as suas deambulações nocturnas pelas ruas), uma fotografia que sublinha o recorte psicológico. 

Que I Vitelloni se tenha tornado uma das obras mais citadas de Fellini, e um verdadeiro filme-culto, não causa espanto. Não é apenas a memória de Fellini que nele se manifesta, mas a de toda uma geração. I Vitelloni representa para a que viveu esse início da década de 50 o mesmo que The Big Chill (Os Amigos de Alex), de Lawrence Kasdan, representa para a geração de 60.

Manuel Cintra Ferreira

(Folhas da Cinemateca Portuguesa)

Cine FAP: Christine, de John Carpenter

Nesta segunda-feira, dia 03, o Cine FAP apresenta "Christine, o carro assassino", dando prosseguimento à mostra Teen Movies, que em agosto contará com mais quatro filmes. Sempre com entrada franca!

 Cine FAP apresenta:
"Christine, o carro assassino" de John Carpenter



O estudante nerd Arnie Cunningham se apaixona por Christine, um antigo Plymouth Fury, e se torna obcecado em devolver ao automóvel destruído sua antiga glória. À medida que o carro se transforma, o mesmo acontece com Arnie, cuja recém-adquirida autoconfiança se transforma em arrogância por detrás do volante de sua beleza exótica. Leigh, a namorada de Arnie, e seu melhor amigo Dennis vão procurá-lo, e o que encontram é um Plymouth Fury sobrenatural e sem limites.

Serviço:
dia 03/08 (segunda)
às 19 hs
no Auditório Antonio Melilo
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

Realização: Cine FAP e HATARI! (Grupo de Estudos de Cinema)
Apoio: Coletivo Atalante

quinta-feira, 30 de julho de 2015

NADA ALÉM DO CORPO


Sobre o cinema de Lucio Fulci

Todo aquele que não consegue fazer frente à vida enquanto está vivo precisa de uma das mãos para afastar parte do desespero que sente perante o seu destino - com pouco êxito - mas com a outra ele pode anotar o que observa entre as ruínas, porque é capaz de ver qualquer coisa de diferente (e muito mais) do que os outros vêem; apesar de tudo, mesmo morto durante a vida, ele é o verdadeiro sobrevivente.
Trecho de Diários de Franz Kafka 
Não é preciso ser um morto-vivo para sentir o vazio da existência. Nos filmes do italiano Lucio Fulci há essa mesma constatação niilista. Mas por se valer de meios “antinaturais” – histórias de zumbis, portais malignos, possessões e serial killers – para edificar sua poética, Fulci é menos óbvio e, sobretudo, menos "respeitável" que os demais. Geralmente associado ao cinema de gênero, de traço popular (da comédia no início da carreira, aos filmes de horror, passando pelos gialli e faroestes), ele é famoso pela maneira gráfica como filma eviscerações e toda sorte de mutilações. Porém, seu alcance é maior. Não apenas consolidou as bases criativas do que se convencionou chamar de cinema gore, como adicionou a esse subgênero rara inventividade e sofisticação. Pode parecer paradoxal que um cineasta capaz de rodar um homem sendo partido ao meio (Demonia) ou um jovem vomitando o próprio fígado (The City of the Living Dead) seja, em algum momento, sofisticado. No entanto, é. E, justamente, nas cenas mais extremas, tal o poder de fabulação de suas imagens.
Ainda mais relevante para sua poética niilista - e o que o torna um autor acima de tudo - é a sua utilização do corpo. Se para Pier Paolo Pasolini, em sua trilogia da vida, o corpo é o locus do prazer, vestígio possível do sagrado entre os homens, que, mais tarde, converte-se em objeto, fetiche mercantil, mercadoria do “prazer” alheio (notadamente em Saló), para Fulci não há nada além do corpo. Em oposição a Robert Bresson, por exemplo, para quem o corpo é travessia, indício do invisível, do SOBREnatural, meio pelo qual se manifesta a graça (na primeira metade de sua obra) ou o mal (na fase final); para o diretor de The Beyond, o corpo é o fim. Talvez por isso, a obsessão em filmar o corpo mutilado, vegetativo, sem vida, a ponto de, num último grau de paroxismo, mostrar um corpo sendo literalmente moído (The Sweet House of Horrors). Em comum a todas essas imagens a falta de transcendência. É como se Fulci perscrutasse se existe algo além do corpo, quem sabe a alma...
Não por acaso, uma imagem recorrente nos filmes do cineasta italiano é a de um olho – “a janela da alma” – sendo perfurado. Ele filma o movimento até o fim, seja um graveto ou uma furadeira perfurando o globo ocular, e não encontra nada além do orgânico. É interessante observar como mesmo a presença do mal, a evocação do diabo ou de outros fenômenos próprios dos filmes de terror sempre têm uma manifestação corpórea nos filmes de Fulci. Na sua obra não existem espíritos ou ectoplasmas, somente corpos - mesmo após a morte. É difícil imaginar algo mais pessimista.
Para além das imposições comerciais, os filmes de zumbis de Fulci são prodigiosos em reforçar sua visão niilista, ao mostrar sem rumo, debatendo-se como moscas contra a janela, esses corpos sem alma. E quando se chega ao fim da longa estrada em The Beyond, só há o vazio e corpos soterrados. Então, os dois protagonistas do filme, que escaparam às mutilações durante a trama, são encerrados em seus próprios corpos – e, novamente, são os olhos, que se acinzentam como barras de metal, a senha para a danação final. Não há alma, apenas uma prisão intransponível (o corpo) da qual, reforça Fulci, não é possível transcender. Metáfora da vida? Fulci, que morreu em março de 1996, já deve ter a resposta.

Adolfo Gomes
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/97/pgfulciadolfo.htm)

Cineclube da Cinemateca: "Eu e Minha Pequena" de Raoul Walsh

Neste sábado, dia 1° (excepcionalmente às 15h), o Cineclube da Cinemateca exibe "Eu e Minha Pequena" de Raoul Walsh abrindo o cicloCinema americano dos anos 30 que contará ainda com "A Queridinha do Vovô" de John Ford (08/08), "Ninotchka" de Ernst Lubitsch (15/08), "Cupido é Moleque Teimoso" de Leo McCarey (22/08) e "Jesse James" de Henry King (29/08). Sempre com entrada franca!
Cineclube da Cinemateca apresenta:
“Eu e Minha Pequena” de Raoul Walsh

  
Manhattan, década de 30, época da Grande Depressão. Um policial de origem irlandesa de coração mole e pouco inteligente chamado Danny Dolan (Spencer Tracy) se envolve com uma garçonete de um restaurante de frutos do mar, e por acaso e sorte, captura o gangster mais procurado da cidade, porque ele estava escondido no porão da irmã da sua amada Helen Riley (Joan Bennett).

Serviço:
1° de agosto (sábado)
excepcionalmente às 15h
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Cineclube do Celin: "Os Boas-Vidas" de Federico Fellini


Numa pequena cidade da Itália, cinco jovens amigos são típicos "vitelloni" (inúteis) e vivem uma vida boêmia cheia de bebidas e mulheres. Sem perspectivas de vida, cada um encontra um modo de escapar da monotonia da vida provinciana tentando aproveitar e curtir as aventuras que esse mundo os reserva.

Serviço:
dia 31/07 (sexta)
às 19h30
No Anfi 400 da UFPR
(Rua Dr. Faivre, 405 - Reitoria, Edifício Dom Pedro I, 4° andar)
ENTRADA FRANCA

Curta nossa página no facebook: https://www.facebook.com/cineclubedocelin

terça-feira, 28 de julho de 2015

Cineclube Sesi 3 anos: "Gato Negro" de Lucio Fulci

Nesta quinta-feira, dia 30, o Cineclube Sesi exibe  "Gato Negro" de Lucio Fulci,  encerrando o ciclo Giallo. Em agosto o tema estudado será A arte do som.

Cineclube Sesi 3 anos apresenta: "Gato Negro" de Lucio Fulci


Os moradores de um vilarejo inglês começam a morrer numa série de 'acidentes' horríveis, enquanto um inspetor da Scotland Yard chega para iniciar as investigações. Mas, quando as suspeitas caem sob um médium local, que grava conversa com os mortos, as misteriosas mortes tomam um rumo inesperado...

Serviço:

dia 30/07 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)


ENTRADA FRANCA
 


Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Cineclube da Cinemateca: Cinema americano dos anos 30

Programação
01/08: "Eu e Minha Pequena", de Raoul Walsh (excepcionalmente às 15h)
08/08: "A Queridinha do Vovô", de John Ford
15/08: "Ninotchka", de Ernst Lubitsch
22/08: "Cupido é Moleque Teimoso", de Leo McCarey
29/08: "Jesse James", de Henry King


Serviço:
Todo sábado
às 16h (com exceção do dia 01)
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Prelúdio para matar, de Dario Argento


Profondo Rosso, Itália, 1975

Eu sonho em vermelho. Meus pesadelos são banhados em vermelho... Vermelho é a cor da paixão, do prazer. Vermelho é a cor das viagens pelas profundezas escondidas do subconsciente. Mas acima de tudo: vermelho é a cor da raiva... e da violência.
Dario Argento
Uma imagem - uma apenas - interromperá os créditos de Prelúdio Para Matar: um plano de uma sala, com a câmera baixa enquadrando uma mesa, duas cadeiras, um abajur, a vitrola de onde sai uma melodia infantil e uma árvore de natal. Surgem duas sombras na parede, uma esfaqueando a outra. Escuta-se um berro. A sombra esfaqueada cai no chão, fora do plano. Dois pés calçados com pequenos sapatinhos - aparentemente uma criança - invadem o extremo direito do quadro. Uma faca suja de sangue é jogada à frente dos sapatinhos, e o plano se encerra nesta composição. Uma imagem. Voltamos aos créditos, novamente com a trilha dos Goblin.
Na cena seguinte estamos num conservatório musical. O CinemaScope voa por pilares e colunas, com todas as suas nuances utilizadas para chamar a atenção do espectador nestes primeiros planos para a cenografia, rústica e de moldes clássicos. Após uma pequena movimentação de grua na qual a câmera desce da direita para a esquerda, o grupo que está tocando a música a qual escutamos é reenquadrado. O inglês Marcus Daly (David Hemmings), professor de jazz, está no meio de sua aula. O jazz que está sendo tocado, por sua vez, parece remontar o trabalho de Ennio Morricone para outro filme de Argento, O Gato de Nove Caudas, no aspecto bastante tradicional de sua execução. Marcus interrompe seus alunos, não está satisfeito, diz que existe algo de errado, que seus alunos estão tocando muito bem, de maneira muito cuidadosa, formal, mas que esta música precisa ser "suja"; em outras palavras, que a beleza do tipo de música que estavam tocando reside justamente no que possui de grosseiro, inacabado, por conta em boa parte de ter nascido em bordéis e do apelo popular que possui. Esta é a primeira cena em que Argento estabelece regras pelas quais Prelúdio Para Matar se desenvolverá: o horror, o que existe de belo nele, é justamente aquilo que há de violento, de rude, do susto mais vagabundo ao assassinato mais sangrento, e é assim que devem ser os filmes do gênero segundo professor Dario.
Helga Ulman (Macha Méril) está prestes a realizar uma apresentação de seus poderes psíquicos no "Congresso Europeu de Parapsicologia". A dançante dolly de Argento nos encaminha pelos corredores do local onde as palestras estão ocorrendo, atravessando a cortina de entrada para o palco onde em poucos instantes sucederá uma apresentação. Esta cena obtém o trunfo de unir a beleza da mise en scène de Argento a uma praticidade raramente presente no seu trabalho, compondo um plano de apresentação e exploração do ambiente onde se passará a seqüência que inicia a narrativa de Prelúdio ao mesmo tempo em que serve ao jogo simbólico do diretor. No momento em que a câmera atravessa a cortina vermelha (o Rosso do título original) o espectador vê - através do uso da câmera subjetiva, sempre usada à perfeição por Argento - uma quase que exata reprodução do que poderia muito bem ser uma sala de cinema ou um teatro de ópera (com poltronas, espectadores e uma atração), e logo depois um zoom nos aproximará ao palco onde à frente de gigantescas cortinas vermelhas (novamente o Rosso) se encontram os professores Giordani (Glauco Mauri) e Bardi (Piero Mazzinghi) e a conferencista Helga. Argento chama a atenção do espectador para sua condição participativa nesta cena (nós "entramos" com a câmera e nos "unimos" ao público presente na palestra) ao mesmo tempo em que parece querer nos mostrar, com o uso bastante consciente de "vermelhos profundos", que algo importante está para acontecer.
O professor Giordani falará dos progressos e recentes descobertas sobre paranormalidade e tocará rapidamente no assunto da comunicação entre insetos (um tema que retorna em Phenomena) antes de introduzir a sensitiva lituana que reside a pouco tempo em Roma. É neste momento e não antes que Argento mostra o que para ele seria a função da câmera e como esta se relaciona com seu projeto cinematográfico: a médium avisa de imediato que suas capacidades nada têm a ver com "mágica, o esotérico ou previsão de futuro" e que consegue apenas e tão-somente pressentir pensamentos no instante em que se formam e jamais aqueles que estão por vir. Esta cena é filmada com os personagens de Giordani, Bardi e Helga de costas para a câmera - os dois homens ocupando cada extremo do widescreen e apenas ela ao centro - de tal maneira que podemos nos ver redimensionados no público comparecente à palestra, pela primeira vez plenamente emoldurado num plano. No momento em que a paranormal começa a descrever suas aptidões um zoom nos aproxima de seu cabelo loiro, abandonando os outros dois especialistas presentes e culminando num maravilhoso painel simbólico onde seu crânio - servindo para Argento como a câmera cinematográfica o serve, ou seja, detendo e registrando apenas o que sucede no momento, no instante, a evidência do presente quepode ser a sombra de um passado - é posto em oposição ao teatro onde ocorre a conferência - que remonta por sua vez o cinema do quadro New York Movie mas também uma casa de ópera, reflexo dos interesses estéticos de Argento transformados aqui em espaço cênico e material. O que segue é o primeiro momento em que um retorno abrupto de eventos passados é acontecimento motivador dos desequilíbrios e dos distúrbios que permeiam e redefinem as narrativas de todos os filmes de Argento: algo invade grosseiramente a percepção de Helga durante a demonstração de seus poderes, uma presença que transmite "pensamentos pervertidos, assassinos", obviamente alguém da platéia que, segundo a médium, "Já matou... E matará de novo". Bardi passa um copo d'água para acalmar a alterada Helga enquanto ela discorre sobre uma cantiga infantil numa casa, uma morte e a presença de sangue - "nosso sangue". Neste momento uma pessoa se levanta (sabemos disso novamente através do uso da subjetiva) e abandona a palestra enquanto é repetida a frase "Esquecer... para sempre" pela sensitiva.
Após o fim da palestra Helga fala a Giordani um pouco sobre os pensamentos que irromperam sua mente, "ao mesmo tempo cruéis e infantis". Fala também que não pôde expressar todas as sensações que a afetaram naquela hora, mas que sabe quem é o assassino. Pouco após descobrirmos que este ainda se encontra no local da palestra (novamente denunciado pelo uso da câmera subjetiva) e que escondido escuta a conversa entre a médium e o professor, Argento nos brinda com uma das mais belas cenas de sua carreira: num formidável plano-seqüência passeamos por cima e pelos lados de bolinhas de gude, desenhos infantis sobre assassinatos, um boneco de pano vermelho espetado por diversas agulhas e outros brinquedos bizarros até o momento em que Argento mobiliza sua câmera para culminar em duas facas, seguindo este último percurso de seu plano com o corte para um superclose dos olhos do assassino sendo pintados. Esta seqüência dá o tom que distancia Prelúdio Para Matar dos primeiros trabalhos de Argento, pois elementos como a câmera acrobática (O Pássaro das Plumas de Cristal), a obsessão pelo corte repentino (O Gato de Nove Caudas, onde há também o uso de closes dos olhos do assassino) e a trilha sonora rock'n'roll (Quatro Moscas no Veludo Cinza) só serão utilizados e unificados para fins bastante específicos à empreitada do diretor aqui. Se há uma palavra capaz de descrever a função que Prelúdio Para Matar teve à sua época na obra de Argento, esta seria "depuração".
Das três propostas de início para o filme - a primeira imagem que surge ainda durante os créditos; a apresentação de Marcus e a sugestão de uma diferente proposta de música aos seus alunos; e a longa seqüência no "Congresso Europeu de Parapsicologia" - apenas duas serão desenvolvidas no plano narrativo. Argento abandona rapidamente a auto-reflexão de sua obra que a cena no conservatório musical dá a impressão de sugerir, preferindo desenvolver na abordagem e nas inovações de sua direção este aspecto que, como o tema da comunicação entre insetos, será plenamente trabalhado em outro filme (Tenebre). O enredo será portanto resultado do choque entre a primeira cena e a reação de Helga ao tê-la "transmitida" à sua mente, descobrindo quem é o assassino e trazendo ao filme este relevo, o surgimento de algo que já estava enterrado e "esquecido para sempre". A fatalidade é que este "algo" foi fatal o bastante para uma primeira vítima e assim o será para a médium, assassinada a machadadas no mesmo momento em que o pianista Marcus, seu vizinho, testemunha o acontecimento.
É na troca de protagonistas que terá início uma investigação, verdadeira raison d'être da obra de Argento, e apesar de várias e constantes alusões a Hitchcock certamente a referência fundamental aqui é Antonioni. Se existem ecos de Marnie - Confissões de uma Ladra nos traumas psicanalíticos que invadem de quando em quando a narrativa, Psicose no desaparecimento de Helga que nos deixa como protagonista Marcus e Festim Diabólicona presença de um cadáver escondido cuja presença é importantíssima à trama, é Blowup que figura de maneira intensa na investigação realizada pelo pianista com a ajuda da repórter Gianna Brezzi (Daria Nicolodi). Com a certeza que presenciou algo quando atravessou o corredor que conduz ao quarto de Helga que pode ou não ter importância às suas inquirições, o pianista terá primeiro que realizar uma série de pesquisas que o levam a uma villa abandonada onde aparentemente um assassinato ocorreu muitos anos antes. Argento leva sua câmera ao imenso casarão e dele explora as imensas potencialidades de seu aspecto fantasmagórico - terreno de Corman e Tourneur, o da "casa mal-assombrada" - e também diversos joguetes de sombras e luzes, sempre belas e de grande impacto. A busca que o protagonista e Argento realizam por fragmentos de um passado, a única alternativa de resposta para os assassinatos, prefigura o momento mais importante desta seqüência (e possivelmente do filme): olhando atentamente a parede de uma das salas da villa, Marcus percebe que há algo pintado por detrásdela. Intrigado, aproxima-se e percebe uma faca banhada em sangue despontando no que obviamente se trata de um desenho pintado numa superfície e ocultado por uma fina e falsa parede. Por ser pequeno o defeito que possibilita ver o diminuto fragmento do desenho, Marcus pega um pedaço de vidro e risca a camada de concreto que o esconde. Argento trabalhará ao mesmo tempo nesta cena suas impressões sobre representação visual e a capacidade de síntese oferecida pela montagem cinematográfica - uma imagem que se revela aos poucos, que é montada aos poucos por Marcus e que ao final é recriada a partir de impressões única e exclusivamente narrativas (tudo o que foi descoberto pelo pianista até o momento). É esta cena, mais do que qualquer outra, que revela como para Argento tudo pode ser cinema, que qualquer discussão sobre crença na imagem (e para crer é necessário questionar) só se torna válida quando desta idéia surge outra, a de crença no mundo, de forma que ambas se tornam intrínseca e inexoravelmente inseparáveis. Como o cineasta aceita este credo com muita força é capaz também de problematizá-lo: pois o pianista descobrirá sim um desenho que muito esclarece sobre o que pode ser o caso que investiga, mas um pedaço do desenho, justamente o mais importante, não lhe será revelado pois o que se afigurou - umoutro desenho - respondeu suas equivocadas impressões.
Se já tivemos muito de Blowup até aqui - e a presença do ator inglês David Hemmings só reforça a impressão de um verdadeiro tributo ao filme de Antonioni -, é apenas na seqüência final que Argento subverte e trespassa seu ponto de partida e molde inicial. A pessoa que segundo o desenho descoberto por Marcus seria o assassino será morta num acidente. Retornando para sua casa após o ocorrido, o pianista se lembra da ocasião em que testemunhou o assassinato de Helga, especificamente de quando passou pelo corredor do apartamento dela. De volta ao cenário do crime, Marcus passa lentamente pelo corredor, desta vez com o olhar distanciado de um investigador, analisando detalhe por detalhe. De imediato a presença de vários quadros presentes nas paredes do corredor chamam a atenção do pianista, mas é um espelho - um espelho posto à frente de um destes quadros - que revelará onde falhou na sua busca: o assassino se encontrava à frente de um destes quadros, seu rosto se misturando com os outros rostos presentes na pintura e refletido no espelho. O aspecto unidimensional do espelho - e uma tela de cinema não se faz muito diferente - não possibilitou ao pianista naquele momento perceber que se tratava do assassino, e será apenas após um processo de reensino do olhar (a investigação para ele, o filme para nós) que Marcus poderá voltar ao ponto inicial (o apartamento de Helga) do percurso que teve de traçar. Capacidade incrível esta de Argento de confundir nossas expectativas sobre o que é e o que deixa de ser cinema a cada cena, a cada quadro.
Obviamente o assassino se encontra no apartamento, pronto para aniquilar o pianista, e é durante sua confissão (sim, há uma confissão) que retornamos à primeira imagem do filme. Apenas com o ressurgimento desta cena - agora com sua função de flashbackesclarecida e especificada - Argento pode dar prosseguimento ao último ato de Prelúdio Para Matar (último ato em todos os seus filmes): a punição do assassino com sua morte, o fim de um passado que não pode e não tem como resistir ao presente. Após atingir Marcus com uma machadada no ombro, o psicopata leva um chute do pianista e tem seu colar preso ao mecanismo de um elevador pouco antes deste ser acionado e degolá-lo. No "vermelho profundo" do sangue daquele responsável pelas mortes, Marcus observa seu reflexo - ele próprio agora um assassino. Não se sai impune de um filme, lembra Argento, e não deixa de ser também nosso o reflexo contido nesta última cena.

Bruno Andrade

Texto original: http://www.contracampo.com.br/41/profondorosso.htm)

Cineclube da Cinemateca: "O Rio Sagrado" de Jean Renoir

Neste sábado, dia 25, o Cineclube da Cinemateca exibe "O Rio Sagrado" do cineasta francês Jean Renoir. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
“O Rio Sagrado” de Jean Renoir
  


Três meninas adolescentes estão vivendo em Bengala (Índia), perto de um grande rio: Harriet é a filha mais velha de uma grande família de colonos ingleses. Valerie é a filha única de um industrial americano. Melanie tem um pai americano e mãe indiana. Um dia, um experiente americano chega ao local e se torna o primeiro amor das três meninas.

Serviço:
25 de julho (sábado)
Às 16h 
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 21 de julho de 2015

Cineclube Sesi 3 anos: "Profondo Rosso" de Dario Argento

Nesta quinta-feira, dia 23, o Cineclube Sesi exibe  "Profondo Rosso" de Dario Argento,  dando prosseguimento ao ciclo Giallo, que contará ainda com  "Gato Negro" de Lucio Fulci (30/07).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi 3 anos apresenta:

"Profondo Rosso" de Dario Argento

Uma testemunha de um assassinato se une a um repórter para encontrar o criminoso. Enquanto isso, ocorrem mais crimes e eles percebem que, na verdade, é o assassino que está lhes acompanhando. 

Serviço:
dia 23/07 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

sábado, 18 de julho de 2015

Oficina de crítica cinematográfica


Cinema é a arte das imagens em movimento. Como arte é o canal de expressão de homens e mulheres que concebem o mundo sob um prisma poético. Como imagens é o espelho da humanidade nos últimos 120 anos: suas ilusões, vergonhas, vitórias e medos projetados em 24 quadros por segundo. E como movimento é a música da luz, a montanha russa nas mais impressionantes paisagens do inconsciente.
Tudo isso, porém, quase sempre passa batido na nossa convencional fruição de filmes. A dieta viciada de audiovisual imposta pela indústria massiva de imagens nos impede de observar o universo por trás dos "roteiros e atuações".

Poesia em cinema é feita de zoom e travelling; do comportamento da câmera à mise-en-scène; do enquadramento criativo à duração do plano. Em resumo: da forma como se manipula a linguagem cinematográfica.

Nesse sentido a Oficina de Crítica Cinematográfica, ministrado por Miguel Haoni (do Coletivo Atalante), propõe, com a ajuda da História Contemporânea e da Filosofia da Arte, lançar outro olhar sobre o fenômeno audiovisual artístico.

A oficina pretende observar como diferentes cineastas concebiam a arte em momentos chave de sua evolução histórica. A partir do debate crítico, leitura de textos e análise de filmes investigaremos de que maneira esta linguagem de imagens é tecida na construção de discursos e sensações, configurando parte fundamental de nossa experiência no mundo contemporâneo.

1° Unidade: Vanguardas francesas dos anos 20: um panorama sobre os principais movimentos de resistência ao domínio do modelo clássico, com destaque para o surrealismo, o dadaísmo e o impressionismo;

2° Unidade: Poesia e moral dos filmes de gângster: uma avaliação do cinema clássico a partir da experiência do gângster melodrama no cinema hollywoodiano dos anos 30, seus ecos e desdobramentos;

3° Unidade: O cinema moderno segundo Pier Paolo Pasolini: uma apreciação do cinema de autor dos anos 60 a partir da experiência do mais polêmico diretor italiano, sua poética e sua política .

Sobre a oficina:
Oficina de crítica cinematográfica (ministrada por Miguel Haoni do Coletivo Atalante) oferecerá uma abordagem teórica do cinema a partir do estudo de textos fundamentais e da apreciação de filmes. Filmes e textos, permitirão um percurso geral e específico em alguns capítulos essenciais da história do cinema.
Começaremos abordando as vanguardas dos anos 1920 a partir das experiências francesas. Germaine Dulac, Luis Buñuel, René Clair, Jean Epstein, Fernand Léger (entre outros) ofereciam, como contraponto a alvorada do modelo hegemônico, visões radicais sobre as funções essenciais do cinema. Suas obras resultavam da busca incessante por uma expressão libertadora e anárquica.
Na sequência estudaremos a ascensão e a queda do cinema clássico hollywoodiano através do percurso de um de seus maiores personagens: o gângster. Da consolidação do crime organizado na organização do capitalismo americano encontramos duas imagens essenciais: a lírica do ciclo dos anos 30 impulsionado pela Warner e a trágica da Nova Hollywood nos anos 70.
Por fim, uma entrada no Cinema Moderno como concebido nos textos e filmes de Pier Paolo Pasolini. Trata-se aqui de uma experiência demolidora, que transcendia o cinema e a literatura e se espraiava nas diversas dimensões da existência: ética, estética, política, sexual, religiosa, mitológica, histórica... Sob seu olhar convivem opostos em harmonia e guerra permanente. 
Com este recorte, ao mesmo tempo amplo e restrito, a Oficina pretende a formação do olhar crítico com embasamento histórico sobre a arte cinematográfica e suas diversas dimensões.

Referências bibliográficas:
KACTUZ, Flávio (org.). Pasolini ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo. Rio de Janeiro: Uns Entre Outros, 2014.
XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico:a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

Referências fílmicas:
A Idade do Ouro (L'age D'or). Luis Buñuel. FRA. 1930. p&b. 63 min.
Dillinger. John Milius. EUA. 1973. cor. 109 min.

Serviço: Carga horária: 24 horas
dias 10, 12, 14, 17, 19, 21, 24 e 26 de agosto
(segundas, quartas e sextas)das 19 às 22 horasno Núcleo Cine(Rua Belém, 888 - Cabral- Curitiba/PR)
Inscrições pelo email: coletivoatalante@gmail.com
Investimento: R$120,00
VAGAS LIMITADAS
Realização: Núcleo Cine (http://www.nucleocine.com.br/)
Apoio: Coletivo Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A Dança da Realidade, de Alejandro Jodorowsky


O cinema se rejuvenesce quando Alejandro Jodorowski está por perto. Com sua presença, o tempo, que é a matéria a ser esculpida, reencontra o original e o inusitado; a surpresa e a vibração. Depois de 23 anos de ausência – quase uma orfandade desde O Ladrão do Arco-Íris(1990) – o retorno do diretor às telas não poderia ter sido mais empolgante do que o encontrado em A Dança da Realidade.
Filmado na litorânea Tocopilla, Chile, cidade natal de Jodorowski, o enredo do filme reconstrói a sua infância. Filho de imigrantes judeus ucranianos e resultado indesejado do abuso da mãe pelo pai, o que se vê nos primeiros anos de vida é a marca deixada pelo crescimento em meio à família desestruturada, ao abuso de poder – tanto das relações pessoais quanto do momento político – e ao preconceito pela condição de estrangeiro. Entretanto, o farto material biográfico não se transforma em uma cinebiografia tradicional. Nada em Jodorowski é tradicional. O que se tem aqui é o alcance dos melhores momentos da sua produção nos anos 70, tanto em Fando y Lis (1968) quanto em El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973).
A Dança da Realidade é o trajeto do rompimento das ilusões. A Casa Ukrania é uma mercearia na pequena cidade de Tocopilla. Sem luxos, o emprego sustenta com qualidade a família Jodorowski, que desde a fuga da Rússia, quando perseguida pelos cossacos, prefere esconder suas origens. A figura do pequeno Jodorowski (interpretado com segurança pelo iniciante Jeremias Herskovits) cresce entre o desejo da mãe, de que o filho seja a reencarnação da alma iluminada do avô, e o desejo do pai, de que se torne umhomem viril, digno de impor respeito aos demais. Os anseios conflitantes moldam o jovem Alejandro, exposto frente à cruzada das ilusões, espaço da pureza infantil, contra a realidade, símbolo do mundo adulto.
Para construir a cinebiografia, o diretor não abre mão da estética surrealista. Jodorowski comparte a visão de mundo do movimento de André Breton, que teve seus expoentes cinematográficos com O Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), ambos de Luis Buñuel. Talvez o único diretor vivo ainda a pensar e produzir nesse registro, Jodorowski reconstrói sua trajetória com o demarcado das cores primárias, com a trilha sonora intrusiva e a mise-en-scène propositadamente operística. Por vezes, o resultado nos remete à obra do diretor italiano Federico Fellini. No início, quando somos apresentados ao circo do qual Jaime (BrontisJodorowski), pai de Alejandro, fez parte, temos a sensação de estar revendo 8 1/2 (1963) em cores. A impressão, porém, se desfaz. O cinema de Jodorowski é mais ousado e agressivo. O limite surrealista foi testado – nunca achado.
O ato inicial de A Dança da Realidade se preocupa em mostrar as agruras do jovem Alejandro. O mundo duro e cru se revelará pela experiência: a dor da rejeição materna; o sofrimento físico advindo da sofrível moralidade paterna; o sentimento de culpa pela morte de outra criança; a sensação atroz da injustiça; o rechaço do judaísmo pelas outras crianças. A infância é posta, então, como um sistema de aprendizados forçados, em todos os casos traumático e inevitável. Este primeiro momento chega ao fim com a clara tese panteísta do diretor, enunciada, inclusive, pela intromissão do próprio: nada nos é novo; somos o que nos acontece, e o que nos acontece é o que somos anteriormente.
O segundo ato tira o foco de Alejandro e o coloca sobre Jaime. O pai, misto de Stalin e Pinochet, abre mão da família para aniquilar Ibañez, ditador do país. A transição entre o primeiro e o segundo momentos não é a melhor possível. Paira o sentimento de que o personagem de Alejandro foi esquecido pelo filme. Algo no mínimo injusto, depois de tudo que o vimos passar. Contudo, o que está em marcha é a vontade do diretor de adicionar uma densa camada de crítica política. A atitude, coerente com a filmografia de Jodorowski, possibilita construir uma sintética história do totalitarismo no século XX. Originado na Europa, o mal se espraia sem conhecimento de fronteiras. A vida se desarticulada em todos os lugares, por mais longe que se esteja.
A cena das gaivotas e das sardinhas sugere que desconhecemos o profundo oscilar da existência. A compreensão do ritmo não nos pertence. O sofrimento e a felicidade não são independentes, mas substâncias necessárias para um equilíbrio. A vida de ninguém acontece unicamente na superfície. A indicação caminha em direção ao desfecho. No terceiro ato, Alejandro e Jaime se reencontrarão: “sou covarde”, brada o pai. A covardia que procurou exorcizar no filho salta-lhe à boca. Não querer falhar é falhar por antecipação. É falsificar a vida. A união agora é mais do que física. Pai e filho assumem e se reconhecem enquanto feitos da mesma substância. O ciclo se completa no encontro do que somos com o que seremos. Sem julgamentos, a justiça é possível.
A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu.* O perdão não provém com o tempo. O que resulta dos anos é o esquecimento. O perdão surge da compreensão. O fruto do esquecimento é árido e pegajoso; o da compreensão, puro e sagrado, como a hóstia – como a infância recuperada.
*Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade.

Texto de Willian Silveira, disponível em:

http://www.papodecinema.com.br/filmes/la-danza-de-la-realidad

quinta-feira, 16 de julho de 2015

DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS: A poética do cinema de horror italiano (fragmento)

por Miguel Haoni


Introdução: O cinema de Dante Alighieri[1]



O presente artigo pretende, através de um recorte bem específico de três filmes, traçar um comentário sobre o universo estético do cinema de horror fantástico concebido na Itália como uma das culminâncias da tradição milenar do grotesco na arte.

Desde a antiguidade romana, através da poesia de Petrônio e seu Satíricon, passando pela Commediadell’arte e seu jogo de inversão de valores, esta tradição chegou ao seu momento de maior maturidade com a confecção da Comédia de Dante Alighieri[2], ainda na Idade Média.

A Comédia – posteriormente adjetivada como ‘Divina’ por Giovanni Boccaccio – é um capítulo central na cultura visual, principalmente no que tange à representação do Mal. Diversos artistas do mundo inteiro e em diversos momentos da História, ao pretenderem representar as encarnações do Mal e seu horror, recorriam às imagens da cântica do Inferno[3], direta[4] ou indiretamente. Incluída aqui está a geração de cineastas italianos que a partir dos anos 60 do século XX recorrerão a esta tradição para conceber suas imagens.

A autoridade intelectual, política e artística de Dante relacionou-se sobremaneira ao seu contexto. Dante era um homem medieval, e sua Comédia resultou das mudanças nos paradigmas culturais, políticos e religiosos advindos da primeira onda de histeria coletiva em torno do fim do mundo, na virada para o ano Mil. A mudança de milênio e a expectativa do Apocalipse acarretou implicações catastróficas para o imaginário cristão europeu. A cultura do medo, base para a produção artística e ideológica do período, atinge seu paroxismo neste ponto de grande crise.

Soma-se a isso o fato de o poeta, em seu ímpeto pedagógico, ter ousado compor em língua vulgar num contexto em que a escrita só era concebida em Latim. Ao optar pelo estrato menor na hierarquia cultural, Dante se alçou à posição de pai da literatura italiana.

O berço de Dante, Florença – pela qual nutria sentimentos de amor e ódio – era uma das maiores e mais economicamente desenvolvidas cidades européias. Testemunha da falência do modelo aristocrático e da ascensão prematura dos valores burgueses, a cidade com a qual Dante inicia seu turbulento diálogo era moderna antes da letra.

Isso tudo condicionou Dante a escrever sob uma visão escatológica da humanidade, num contexto de degenerescência e decadentismo. É o momento que lhe municia a conceber as imagens de um trajeto em direção às trevas.

Tais dados nos permitiriam criar paralelos com o ambiente da produção cinematográfica italiana a partir dos anos 60: com a crise histérica do “fim do cinema” no contexto da decadência do modelo hollywoodiano e da ascensão da televisão; com a escolha empreendida por determinados artistas que queriam se “fazer ouvir” pela “língua vulgar” dos filmes de horror, faroestes e pepluns[5]; e no espaço muito pouco espiritual do studio system italiano.

Voltemos ao contexto de Dante. Retroativamente a Idade Média foi concebida pelos Iluministas sob o epíteto de “idade das trevas”, mas para o poeta e muitos de seus contemporâneos aquele era um momento de verdadeira iluminação espiritual, ameaçado por um iminente mundanismo destruidor. Até meados do século XIV, Deus era a verdade universal, a medida última do movimento dos homens e da natureza. Em determinado momento se opera uma transição e os pensadores se reapropriam da Razão, impondo o Homem como centro do universo. É em resposta a este contexto que Dante elabora a sua teopoética.

Sua maior contribuição para a cultura imagética foi, entretanto, oferecer uma forma plena ao inferno, algo que até então era uma agremiação de conceitos abstratos e tentativas de caracterização, na instauração daquilo que podemos chamar de fenomenologia do Mal. O começo do poema insere o personagem Dante[6] numa selva escura que já carrega todos os traços daquilo que ele vai abordar na materialização deste Mal. Este é um espaço vegetal, animal e, sobretudo irracional – traço elementar para a criação poética nos filmes abordados mais adiante.

O passeio, guiado pelo poeta Virgílio, através dos círculos infernais tem por motivos motores a aprendizagem intelectual e o aperfeiçoamento espiritual, e exigem de Dante aquilo que os diretores de filmes de horror exigirão de suas plateias: a fé. Sem ela não existe possibilidade de imersão nos universos propostos. Estes artistas parecem pedir um alto nível de integração à substância ficcional ou a audácia da adesão às incoerências da sua criação.

Impossível não recorrer aqui ao início da aventura de Dante quando Virgílio lhe interpela:

Portanto pra teu bem, penso e externo
que tu me sigas, e eu irei te guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno

de condenados que ouvirás bradando,
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;
[7]

E mais à frente, ao perceber a hesitação de Dante em iniciar a viagem:

é tibieza o que faz o teu tolhimento;

essa é o que o homem muita vez ensombra
e de uma honrosa empresa até o reverte,
como o animal que uma visão assombra.
[8]

Para entrarmos na aventura destas obras é preciso que nos permitamos ser conduzidos ao reino movediço da criação cinematográfica. É preciso o desprendimento, a fé e a coragem que Virgílio insuflou em Dante para viajarmos por este Inferno audiovisual.

Na entrada do Inferno os poetas leem inscrições que dizem:

VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.

MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.

ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS
NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.
[9]
                                                                                              
Tal advertência está intimamente ligada às proposições dos cineastas aqui abordados. Seus filmes desenham um movimento em direção ao pesadelo, ao enlouquecimento e para sorvê-los na sua plenitude precisamos não apenas abandonar a esperança, mas nossas regras e padrões racionalizadores, que na estrutura das narrativas serão por vezes, destruídos ou ridicularizados.

Finalmente, podemos concluir, nesta leitura, que Dante já antecipa uma concepção cinematográfica. O Inferno se cria, na forma como o poeta lhe atribuiu, a partir da queda de Lúcifer do céu em direção ao centro da terra. O movimento descendente do Anjo Decaído cava um cone no qual se inscrevem os nove círculos infernais. O Inferno seria, portanto, a materialização, o registro de um movimento – definição esta que muitos teóricos atribuíram ao cinema.

Texto na íntegra publicado em GARCIA, Demian (org.) Cinemas de Horror. São José dos Pinhais: Editora Estronho, 2014.

[1] Muito das ideias aqui apresentadas é produto da palestra do Professor Ernani Fritoli sobre A Divina Comédia na Universidade Federal do Paraná, dia 28 de setembro de 2013.
[2] Aqui utilizamos a edição de A Divina Comédia – Inferno/Dante Alighieri – Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998.
[3] A Comédia é dividida em três cânticas (Inferno, Purgatório e Paraíso) com 33 cantos cada. Soma-se a esta estrutura triádica o primeiro canto do Inferno (que funciona como prólogo), num total de 100 cantos.
[4] Daqueles que ilustraram a Comédia destacam-se o florentino Sandro Botticelli (1445-1510), o inglês William Blake (1757-1827), o francês Gustave Doré (1832-1883) e o espanhol Salvador Dalí (1904-1989)
[5] Filmes de sandália e espada, protagonizados por heróis como Hércules e Maciste, numa mítica Antiguidade greco-romana, os peplums fixaram-se na história do cinema comercial a partir da crise da indústria hollywoodiana dos anos 50 e respondiam ao domínio da televisão oferecendo aventurasespetaculares em grandes produções (numa espécie de pré-blockbuster) como Ben-Hur (William Wyler, 1959), Quo Vadis (Mervyn Le Roy, 1951), Spartacus (Stanley Kubrick, 1960) entre outros, que transformavam passagens bíblicas em filmes de ação.
[6] Dante Alighieri foi talvez o primeiro literato a se inserir como personagem numa obra de ficção
[7]Canto I, versos 112-117 (p. 29).
[8]Canto II, versos 45-48 (p. 32).
[9] Canto III, versos 1-9 (p. 37).