sábado, 23 de março de 2024

Longe de Hollywood – Killer of Sheep (1978), Charles Burnett

 por Miguel Fernandes

We people who are darker than blue
Curtis Mayfield


Hollywood era de fato “a melhor coisa do mundo”. Sua qualidade estava no que ela dava de drama humano, nos gêneros diversos (policial, faroeste, musical) criados pelo gênio da indústria e expressados por ela de um modo próprio. Não sendo, porém, a bela coisa “coisa perfeita”, houve mesmo dentro dela alguns espasmos de consciência que revelaram espécie de mal-estar velado, não se curvando à mera idealização do american way of life e nem sequer limitando-se ao mero ufanismo da pátria: espasmos que expuseram – como nos provam os exemplos de um Ray, um Welles, um Minnelli – uma contradição fundamental daquela sociedade perfeita, ou “a incompatibilidade da moral e da sociedade capitalista”, como queria Jean Domarchi[1]. Sua beleza estava então, justamente, na sua contradição entre idealização e decadência.

O aforismo “há Hollywood e há Hollywood[2]”, que exprimiria dessa indústria sua ambivalência, poderia ser alterado de tal modo para “há Los Angeles e há Los Angeles”: cidade de estrelas ao centro-norte e o bairro de Watts ao sul. Isso para dizer que, mesmo dentro dos espasmos, quase não havia recorte de raça, e, se lembrarmos, com James Baldwin, que a história do negro nos Estados Unidos é a história dos Estados Unidos (história não muito bonita), percebemos que alguma coisa escapou dessa história do cinema – que é também a história dos EUA e dos americanos – e então “Hollywood” nos parece mais ainda um vulto incompleto. Esquecemos de algo, ou então pouco nos foi dado a ver; alguma coisa, porém, cuja ínfima parte nos é sugerida pela Hattie McDaniel de …E o Vento Levou (1939), um engraxate qualquer de Fallen Angel (1945) e o Stepin Fetchit de Judge Priest (1934). Por trás de todo o riso e benevolência estereotipados daqueles rostos havia vidas de dread and beauty [pavor e beleza] que escapavam das telas e fora delas existia, qualquer coisa que nos tira a vista dos repetidos sex symbols brancos de um metro e noventa (C. Gables, G. Coopers, C. Grants), das mocinhas chiques de sobretudo engomado, e nos leva à voz de Curtis Mayfield ou Bessie Smith, ou ao Harlem de James Baldwin, ou ao Watts de Charles Burnett. Porque, de certo modo, Killer of Sheep é essa parte que escapa, espécie de contraparte dessa história americana que Burnett vem nos dar a ver e lembrar, indiretamente, que há Los Angeles e há Los Angeles.

À guisa de história e contexto, valeria a pena citar brevemente as condições em que Killer of Sheep foi feito. O que é mais ou menos conhecido em torno de sua realização e lançamento é que 1) Burnett, estudante da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), queria realizá-lo como conclusão dos seus anos de estudo; 2) que ele estava inserido no grupo de estudantes-diretores (entre eles Julie Dash e Billy Woodberry) que veio a se chamar L.A. Rebellion, cuja recorrência temática conversava com a história do negro norte-americano, em contraposição à sua representação na indústria; e 3) que Killer of Sheep, então realizado de forma intermitente no hiato de 1972 a 1977-78, só teria sido lançado oficialmente em 2007 (porque à época não havia dinheiro para financiar os direitos autorais da música).

Diríamos
dele, com base nesses aspectos, que é um filme independente: no sentido financeiro, sim, a acepção imediata da palavra quando se trata de filmes (o orçamento foi em torno de 10 mil dólares); mas também no sentido de sua abordagem e postura, na medida em que independe do léxico dos blaxploitations da época ou de qualquer cartilha educacional no que diz respeito à questão racial (uma obra que encontraria valor, por exemplo, no que ela teria a ensinar à população branca sobre racismo).

No filme, o que vemos é Stan (Henry G. Sanders), cuja vida é dividida entre seu trabalho num matadouro de ovelhas, seus afazeres domésticos, coisas ordinárias (como a compra de um motor usado) e sua família. À medida que Stan percorre as cenas, somos dados a conhecer outras pessoas, em variadas situações, que compõem aquele ambiente. A história dele é a história dos outros. Salta à nossa compreensão que o tipo de trabalho de Stan o aliena de si próprio, faz dele um abúlico quase indisposto a lidar com a família. Nessa abulia e alienação, é justo que seja o título Killer of Sheep: não há sequer artigo definido (The); a vida de Stan e sua identidade é sugada e reduzida pela inércia do trabalho.

(Para pôr parênteses, lembre-se do que primeiro salta aos olhos: aquela textura a preto e branco que vem tingir a tela. Lembro do exemplo de um mau filme, Carmen Jones[3] [1954], no que toca à questão da cor: aquelas portentosas cores de mau gosto e bricabraques vazios, que sugeriam dos negros uma “sensualidade” inata, certo exotismo e capricho dos produtores, tudo aquilo se perde. É certo que a cor só pode o mais das vezes sugerir um impacto psicológico, e não pede justificativa exatamente literal [justificada por simbolismos diretos, por exemplo]; é certo que, quando foi feito Killer of Sheep, o preto e branco não era necessidade, era escolha; e é certo que quanto maiores as possibilidades mais restrições é preciso se impor. Há, sim, o impacto psicológico da ausência de cor, esse despojamento da textura que se reflete no tema e na abordagem; mas, por mero capricho ou desvio de pensamento [o pecado da crítica, infelizmente] fui levado a crer que se tratava tanto de necessidade quanto de escolha: uma escolha, vá lá, mas regida pela necessidade de recobrança histórica, o reaver de um passado em que o rosto negro a preto e branco, no que diz respeito ao cinema, raramente encontrava dignidade. Todos os planos do rosto de Kaycee Moore, a linda esposa de Stan, “justificam” essa leitura, quer tenha ou não sido o exato intuito de Burnett. Longe de Hollywood.)

Tudo procede, então, sem um desenvolvimento dramático que chamaríamos clássico (no que teria de relação entre causa e efeito), e esse procedimento algo diferente seria justificado pela afirmação que Burnett ele próprio dera em entrevista: “Queria fazer um filme que não refletisse meus valores, mas que refletisse o que acontecia na comunidade sem que eu me impusesse nisso”. O objetivo, em vez de análise, é constatação. Disso há que se perceber que, diante dessa beleza morosa e doce-amarga – nada se concretizando –, também restituímos desses fragmentos algumas parcelas de vida daquela comunidade: a misteriosa e hostil rivalidade entre meninos e meninas na infância; a brincadeira dos meninos tensionada de perigo – guerra de pedras, saltar do abismo que separa uma casa da outra; o casal briguento (“A única coisa que aparenta bela quando morre é uma rosa”); rapazes roubando a TV e ameaçando um senhor; mas também duas crianças conversando entre si, uma garotinha imitando e cantando a música do rádio enquanto mamãe a observa, o papai dando resposta poética à pergunta da criança (“é o Diabo batendo em sua esposa”). Não há lição alguma; o que emana é um respeito por cada acontecimento, por cada pessoa filmada, por cada acontecimento que interliga cada pessoa filmada.

“Ele [o negro]”, na acepção geral dos EUA, “é um problema social, não pessoal ou humano” (para ficarmos ainda em James Baldwin). A emblemática cena da gravidez que conclui o filme, em que passamos do gesto de um ventre crescendo para a ação de Stan no trabalho (matando ovelhas), comporta duas das únicas ações que realmente se concretizam (nesse filme em que ação nenhuma se concretiza): ato de concepção e ato de morte, início e fim. O mérito de Killer of Sheep, pois, é o de não tratar os negros como tipo de receptáculo idealizado, mas, em vez disso, tratá-los como suscetíveis a tristeza e deleite, dread and beauty, a boas e más ações, tensionados entre vida e morte expressos nessa cena emblemática. Seu mérito, em outras palavras, é não encerrá-los em alguma categorização que lhes negue a vida, tratando-os não como mero problema social, mas reconhecendo-os como seres humanos.

Mérito elementar de um filme que trata de coisas elementares.


[1] Le fer dans la plaie [O dedo na ferida], Cahiers du Cinéma N°63.

[2] Jacques Rivette, Notes sur une révolution [Notas sobre uma revolução]. Cahiers du Cinéma N°54.

[3] O filme, dirigido por Otto Preminger, é comumente citado como um dos primeiros filmes de elenco inteiramente negro em Hollywood. O já citado James Baldwin lhe dispensou mordaz e ambígua crítica em seu livro Notas de um Filho Nativo, cujas páginas ecoam neste texto e cuja menção se faz justa.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Cineclube do Atalante: O Matador de Ovelhas

O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Charles Burnett. Entrada franca, sempre.


O MATADOR DE OVELHAS

Dirigido por Charles Burnett.

(Killer of Sheep, EUA, 1977, drama, 80 min., 16 anos.)

Com Henry G. Sanders, Kaycee Moore, Charles Bracy.

O matador de ovelhas retrata um gueto negro de Los Angeles, o bairro de Watts, em meados dos anos 1970, pelos olhos de Stan, um homem sensível e sonhador que sobrevive alheio e indiferente ao custo psíquico decorrente de seu trabalho em um abatedouro. Porém, mesmo se sentindo frustrado com seus problemas financeiros, ele encontra alento em momentos de beleza singela: o calor de uma xícara de chá em seu rosto, uma dança lenta com sua esposa, a filha em seus braços.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“O Matador de Ovelhas” (1977), de Charles Burnett
Sábado, 23/03
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante.

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.


sexta-feira, 15 de março de 2024

Clube do Filme: À Espera dos Bárbaros

Atendendo a pedidos, o Clube do Filme do Atalante está de volta! E nosso primeiro encontro do ano será o encerramento do ciclo dedicado a Eugène Green com "À Espera dos Bárbaros" (2017).

Em atividade de encontros mensais desde 2018, sempre
nos reunimos para uma discussão de um filme e textos relacionados, abordando neste ciclo a obra de um dos cineastas mais interessantes e encantadores deste século.

Nosso encontro será no dia 27 de março, quarta-feira, às 19h15, via Jitsi, ao vivo, entrada livre e gratuita.


"Apesar da natureza espartana da sua mise-en-scène, Green é um realizador com um olho apurado para brilhantes imagens, tão mais belas pela severidade que transmitem. Somente esse tipo de forma poderia sustentar o registo que o cineasta exige aos seus atores, que passam a maior parte do filme a declamar textos, ora originais ora medievais, diretamente para a câmara num estilo tão desafetado que parece quase alienígena. Indo ainda mais longe do que já tinha ido em obras como “La Spaienza” e “Les fils du Joseph”, Green propõe uma quase absoluta anulação da expressão humana, quer a níveis de linguagem corporal, reação facial ou mesmo cadências vocais. Somente um revirar de olhos trocista tem direito a aparecer em cena"
- Cláudio Alves, em sua crítica do filme, uma das leituras recomendadas deste mês.


O filme encontra-se disponível aqui (com legendas disponíveis). Qualquer problema (inclusive com as legendas embutidas e seu uso por VLC), só avisar que podemos ajudar.

Textos recomendados para leitura:

A) Crítica do filme por Cláudio Alves, disponível aqui.

B) Crítica do filme por Wilson Roberto Vieira Ferreira, disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Devido a limitações de tempo do Meet, voltamos com nossa sala do Jitsi. O Jitsi dispensa downloads de aplicativos e senhas no PC, mas caso acesse pelo celular, recomendamos o download do aplicativo (gratuito).

Serviço:

Clube do Filme:"À Espera dos Bárbaros" (2017), de Eugène Green
Dia 27/03 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi:
https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Coordenação e mediação: Giovanni Comodo
Realização: Coletivo Atalante

sábado, 9 de março de 2024

Corpos e territórios que transbordam de A Margem (1967)

Ensaio realizado para sessão de A Margem (1967) no Cineclube Atalante.

Gabriel Lima de Souza Siqueira[1]

Cheguei à conclusão de que havia dois cinemas de Candeias. Um deles eram os filmes que ele fazia, com suas preocupações. Outro, eram os filmes que nós víamos. Esses dois cinemas ficavam superpostos, mas não se entrelaçavam necessariamente. Pouco nos importavam as recomendações morais. E para Candeias, o simples caminhar pela estrada, o andar a esmo, o ritmo do andar, à espera de algo vago e indeterminado, o desejo latente e sempre insatisfeito, uma pulsação de vida mínima em ambientes degradados, esse despojamento do estilo reduzido a um quase nada às vezes bressoniano (nenhuma intimidade entre Mouchette, as Rosas e as Bellas?), esses elementos não interessavam se não viessem carregados das implicações morais que ele lhes atribuía. Candeias sabe por que amamos seus filmes?[2]

A Margem é o primeiro longa-metragem do cineasta Ozualdo Candeias, que tem sua estreia em 18 de dezembro de 1967 nas salas dos cinemas Cine Marabá na Avenida Ipiranga e Cine Regência na Rua Augusta. Uma obra marcada pelo silêncio que acompanha um ruído atmosférico sobre quatro corpos não nomeados que perambulam sem rumo, ora próximos, ora distantes da lente que leva o olhar do espectador a campos abertos ocupados por ruínas, casas improvisadas e fábricas desativadas. O rio Tietê é testemunha dessas vidas operadas pela brutalidade do capitalismo, pelo fantasma do sistema colonial ali transfigurado na presença de prédios e multidões, que despejam em suas bordas o que não cabe, que tecem o ritmo das margens do rio onde corpos e paisagens sobrevivem, ou, em pequenas brechas supravivem, uma vez que ‘’a colonização (pensamos a colonização como fenômeno de longa duração, que está hoje aí operando suas artimanhas) gera ‘’sobras viventes’’, gentes descartáveis, que não se enquadram na lógica hiper mercantilizada e normativa do sistema. Algumas ‘’sobras viventes’’[3] conseguem virar sobreviventes. Outras nem isso.

    
    A montagem narra essas quatro vidas, imbricadas por violências e afetos. No horizonte da margem está o centro, Candeias, talvez intencionalmente (não importa sua intenção aqui, mas sim o que nos oferece a imagem), inverte mais de uma vez a posição dos sujeitos que acompanhamos pela montagem, que em alguns quadros perambulam pela periferia, sorriem após se cruzarem, desejam, se acariciam, buscam nos destroços qualquer tipo de conforto. Em outros momentos elas caminham pelo enclausuramento das ruas do centro, são apertadas em meio a tantos outros que também caminham, a câmera nesses contextos, se relaciona de outra forma com os personagens que assistimos, em um jogo de distanciamento e aproximação.

A Margem foi já intensamente analisado, não tanto sua qualidade estética, mas sobretudo no que diz respeito a seu contexto de produção, assim como o embate discursivo da crítica paulista e carioca, a noção de mito e autoria colocada sobre seu diretor, o marco do Cinema Marginal a partir de sua proposta estética e a própria tensão entre o filme com outra obra que divide o mesmo ano de lançamento, Deus e o Diabo na terra do sol, longa de Glauber Rocha. Porém, proponho neste breve ensaio um exercício de análise voltado à margem enquanto conceito territorial, onde o espacial e o corpóreo são zonas de interesses de controle no projeto de Estado-nação a qual denominamos Brasil, e, que aparecem no filme de forma poética e por isso política.

Pretendo esboçar então, uma escrita pautada na possibilidade de romper com o elemento da historiografia do cinema brasileiro, onde, se lê um filme como se seu autor o dominasse por completo. Proponho tal exercício através de um mergulho nos lampejos de real que compõe a ficção que Candeias costura em A Margem (1967).  De forma que se possa recolher como lascas de tempo, os rastros que a imagem deixou na montagem da margem que Candeias olhou, filmou e montou. Assim, lançamos as perguntas: o que tem esse filme a nos dizer após mais de cinquenta anos de seu lançamento? Como essa obra se apresenta como um documento poético, histórico e discursivo sobre uma São Paulo que ainda hoje é arregimentada pela mesma lógica de exclusão e extermínio? 

BRUTALISMO E A IMAGEM COMO TESTEMUNHA

            Pensemos então A margem, primeiro a partir de um de seus eixos essenciais: a arquitetura e a produção de periferias gerada pelo projeto de modernização que passou São Paulo a partir da década de 1960, mesmo período em que o filme é gravado.

O filme inicia com uma câmera que funciona como uma troca de olhares, onde somos introduzidos aos personagens através de uma mítica presença, uma mulher que acompanha o curso do Tietê em uma canoa. Ela figura um fantasma que espreita constantemente os habitantes da região, o perigo de morte. Talvez Candeias ao idealizá-la em seu filme tenha pensado no Caronte do mito grego. Mas o rio, a morte e a canoa podem ecoar também um significado mais latente em nossa história. Se o rio e o barco remetem a uma passagem, podem nos suscitar a própria ideia de tempo. Afinal foi por esse mesmo rio que operários transportaram materiais que foram utilizados na construção de São Paulo e que consequentemente geraram os entornos, as favelas.

O rio sofre um ecocídio, o rio que ironicamente tem um nome indígena e que foi ressignificado desde a passagem de bandeirantes sobre suas águas, vive um processo de perda, tão violento e tão relacional ao mesmo processo que sofrem os corpos que vivem em sua margem. Candeias escolhe filmar este rio, escolhe fabular nele uma presença que remete a oposição de vida, e em um traveling, mostra não só a performance de seus atores, mas apresenta todo aquele cosmos distanciado do coração da cidade. Conta constantemente com não atores no fluxo da história, são crianças que brincam à beira do rio, ou passantes que ali de fato habitam. A ponte onde estão situados os atores e atrizes neste primeiro momento, é um portal da periferia para o centro, é a prova de que o centro só se mantém através do trabalho de corpos que a atravessam em direção a cidade para cumprir os mais banais dos serviços, como a personagem que diariamente sai da margem para servir café de um escritório a outro.

Da ponte vemos a silhueta da estética brutalista que a cidade tomou em sua arquitetura, Candeias a enquadra, a imagem ‘’vaza’’ cenários e sujeitos que modelam múltiplas leituras sobre um tempo que alça a verticalidade, uma época dominada pela lógica da demolição e produção. O historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe nos lembra que a arquitetura é uma ‘’forma de política’’[4], logo o estar e o pertencer são questões essenciais ao refletirmos sobre o posicionamento dos corpos no mundo, pois a arquitetura nos é política uma vez que atende demandas de projetos que possuem intenção de dar e retirar potência. A disputa de poder no mundo colonial e pós-colonial sempre esteve vinculada a projetos de formação de territórios que visaram, e, ainda no presente visam o extermínio ou a castração mental, cultural e subjetiva de corpos, sobretudo não brancos e não masculinos, além daqueles considerados não saudáveis, daí a construção compulsória de edifícios de controle que almejam um ‘’progresso’’: fronteiras, presídios, escritórios, megalópoles.

A terra é asfaltada para a passagem de veículos, recebe cimento, concreto e trilhos. Os rios se tornam depósitos constantes de dejetos, as florestas vêm abaixo, não sobram cosmologias ‘’outras’’, nada existe que não seja para ser esvaziado e transformado em recurso. As beiras do centro, a periferia da cidade se torna a testemunha dos que não couberam ao projeto, por isso, marginais. A imagem se manteve nesse processo como um expoente fundamental nesse conflito, assim como o cinema. O que Candeias faz em A Margem é um processo de centralizar vidas que não cabem a essa paisagem, vidas em furtividade, vidas marginais.

DA FÁBULA ÀS BORDAS DA IMAGEM

            Trazer os corpos subalternos para a condição máxima de visibilidade é o outro eixo do filme, ‘’ O corpo de quem vive numa periferia como a favela revelada no filme deve ser mantido escondido. É um corpo que envergonha. Candeias vai para a direção oposta. Ele não tem a menor vergonha de mostrar o corpo de seus personagens’’[5]

    Como já mencionado, acompanhamos em A Margem, quatro personagens sem nome, vale descrever ao menos de forma pontual, como seus destinos são escritos na trama. A atriz Valéria Vidal, mulher negra que naquele momento ainda não tinha intimidade com o fazer cinema, era passista de Carnaval em Rio Claro, o que explica sua performance profundamente marcada pela dança, pelo corpo e pelo olhar. Ela flerta com o personagem de Mário Benvenutti, são um casal trágico que seguimos até a primeira metade do filme, vivem em um casebre às beiras do Rio, estão sempre em movimento. Ela seduz caminhoneiros, luta se for necessário. Benvenutti é um homem cabisbaixo, vive de bicos, há uma ausência de rumo que marca ambos, perambulam[6]. Valéria é a única personagem que não vemos sair daquela região próxima ao rio. O homem interpretado por Benvenutti se desencontra da personagem de Valéria antes de conseguirem se casar, ela o aguarda de vestido até falecer. Ele, que foi levado pela polícia, é morto. Tudo é sugerido pela imagem, mais do que dito, e mesmo nos poucos diálogos proferidos, a ação remete a uma ação feita em um palco, como no teatro, mas sem que se abandone a estética dos planos proporcionados pelo cinema, enquadramentos no rosto ou planos contra-plongée, sobretudo nas filmagens com Valéria Vidal, atenuando ainda mais a qualidade de sua presença.

            O outro núcleo, que é interpretado pelo ator Bentinho e a atriz Lucy Rangel, marca o segundo momento da obra, ambos os núcleos, este e o anterior não são sumariamente separados, mas os personagens interagem constantemente enquanto moradores da mesma margem. O personagem de Bentinho é um homem ‘’louco’’, que carrega uma flor, e que sempre tenta a entregar a personagem de Rangel, copeira que atravessa a ponte em direção ao centro, personagem que sofre com abusos de empresários no trabalho, até ser morta por uma prostituta.

Ao encontrá-la morta, o homem caracterizado por Bentinho tem um surto, corre em direção aos trilhos e é morto por uma locomotiva, símbolo do mesmo progresso que esfaima as quatro vidas. A presença que vemos chegar pelo rio no início do longa é a mesma que no pós-morte leva os quatro que acompanhamos, lentamente em seu barco, até nossa visão ser ofuscada por uma luz.

            O rio retorna então não somente como uma menção à morte, mas tensiona o esquecimento sofridos por aqueles que coexistem no mesmo projeto de industrialização e modernização da cidade, sendo assim não é necessariamente um final redentor como parte da crítica comumente aponta, mas um final que de alguma maneira traz em seu discurso a linha condutora que amarra esses corpos ao território que pisam, além de desvelar intenções que estão miradas sobre eles. Não se trata tanto sobre os significados que Candeias impôs a sua obra no extra filme, mas o que o filme em si, a partir de repertórios simbólicos e leitura crítica da realidade, pode nos exprimir.

Apesar de Candeias não ter interesse em documentar propriamente o que filma, sua obra, ainda que assumidamente ficcional se torna um importante documento sobre a formação da cidade em um registro que não subestima sua história, nem busca filmar seus atores e não atores em uma lógica voltada ao didatismo e a paternalizarão daqueles que filma.


    Retorno as perguntas que fiz no início deste ensaio e que busquei responder ao longo do mesmo, pensar A margem no presente deve ser pensar não somente seu contexto de produção ou o embate entre Cinema Marginal e Cinema Novo, nem se ater somente ao óbvio da tela, mas refletir sobre o que transborda de cada quadro assistido, pensar que o real Tietê e o Tiete simbólico que assistimos, são diluídos, ele é o mesmo Tietê que viu todo drama dos marginalizados sem nome na ficção de Candeias ser escoado em sua margem, mas é também o mesmo rio que testemunhou o corpo da catadora e escritora negra Carolina Maria de Jesus escrever sobre o cotidiano da favela do Canindé. Vemos as quatro vidas complexas e não nomeadas de A Margem, desejarem, se apegarem a uma flor ou uma possibilidade de sentir.

Bibliografia

BERNARDET, Jean-Claude. Ensaio sem título. In: Portal Brasileiro de Cinema.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Mórula editorial, 2019.

MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: N-1 edições, 2022.

COSTA, Rodrigo Cazes. A margem ou a violência estético-política dos corpos no cinema de Ozualdo Candeias. Revista Concinnitas, v. 1, n. 20, p. 161-176, 2012.

UCHÔA, Fabio Raddi. Perambulação, silêncio e erotismo nos filmes de Ozualdo Candeias (1967-83). 2013. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.


[6] O pesquisador Fabio Uchôa afirma que a ambiguidade gerada pela perambulação do filme de um lugar a outro cria uma dissolução dos espaços e movimentos. Ver: UCHÔA, Fabio Raddi. Perambulação, silêncio e erotismo nos filmes de Ozualdo Candeias (1967-83). 2013. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.



[4] MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: N-1 edições, 2022.

[5] COSTA, Rodrigo Cazes. A margem ou a violência estético-política dos corpos no cinema de Ozualdo Candeias. Revista Concinnitas, v. 1, n. 20, p. 161-176, 2012.


[1] Possui graduação em Licenciatura em Artes Visuais pela Escola de música e Belas Artes do Paraná (2021) e mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná (2023). Atualmente é residente técnico do Centro Juvenil de Artes Plásticas através do programa de pós-graduação em Gestão Cultural da UNESPAR. Tem experiência na área de educação artística e pesquisa, com ênfase nos seguintes temas: fotografia, arquivo, colonialidade e cinema brasileiro.

[2] BERNARDET, Jean-Claude. Ensaio sem título. In: Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: https://www.portalbrasileirodecinema.com.br/candeias/ensaios/03_01.php. Acesso em: 05/03/2024

[3] SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Mórula editorial, 2019, p. 111.