sábado, 23 de março de 2024

Longe de Hollywood – Killer of Sheep (1978), Charles Burnett

 por Miguel Fernandes

We people who are darker than blue
Curtis Mayfield


Hollywood era de fato “a melhor coisa do mundo”. Sua qualidade estava no que ela dava de drama humano, nos gêneros diversos (policial, faroeste, musical) criados pelo gênio da indústria e expressados por ela de um modo próprio. Não sendo, porém, a bela coisa “coisa perfeita”, houve mesmo dentro dela alguns espasmos de consciência que revelaram espécie de mal-estar velado, não se curvando à mera idealização do american way of life e nem sequer limitando-se ao mero ufanismo da pátria: espasmos que expuseram – como nos provam os exemplos de um Ray, um Welles, um Minnelli – uma contradição fundamental daquela sociedade perfeita, ou “a incompatibilidade da moral e da sociedade capitalista”, como queria Jean Domarchi[1]. Sua beleza estava então, justamente, na sua contradição entre idealização e decadência.

O aforismo “há Hollywood e há Hollywood[2]”, que exprimiria dessa indústria sua ambivalência, poderia ser alterado de tal modo para “há Los Angeles e há Los Angeles”: cidade de estrelas ao centro-norte e o bairro de Watts ao sul. Isso para dizer que, mesmo dentro dos espasmos, quase não havia recorte de raça, e, se lembrarmos, com James Baldwin, que a história do negro nos Estados Unidos é a história dos Estados Unidos (história não muito bonita), percebemos que alguma coisa escapou dessa história do cinema – que é também a história dos EUA e dos americanos – e então “Hollywood” nos parece mais ainda um vulto incompleto. Esquecemos de algo, ou então pouco nos foi dado a ver; alguma coisa, porém, cuja ínfima parte nos é sugerida pela Hattie McDaniel de …E o Vento Levou (1939), um engraxate qualquer de Fallen Angel (1945) e o Stepin Fetchit de Judge Priest (1934). Por trás de todo o riso e benevolência estereotipados daqueles rostos havia vidas de dread and beauty [pavor e beleza] que escapavam das telas e fora delas existia, qualquer coisa que nos tira a vista dos repetidos sex symbols brancos de um metro e noventa (C. Gables, G. Coopers, C. Grants), das mocinhas chiques de sobretudo engomado, e nos leva à voz de Curtis Mayfield ou Bessie Smith, ou ao Harlem de James Baldwin, ou ao Watts de Charles Burnett. Porque, de certo modo, Killer of Sheep é essa parte que escapa, espécie de contraparte dessa história americana que Burnett vem nos dar a ver e lembrar, indiretamente, que há Los Angeles e há Los Angeles.

À guisa de história e contexto, valeria a pena citar brevemente as condições em que Killer of Sheep foi feito. O que é mais ou menos conhecido em torno de sua realização e lançamento é que 1) Burnett, estudante da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), queria realizá-lo como conclusão dos seus anos de estudo; 2) que ele estava inserido no grupo de estudantes-diretores (entre eles Julie Dash e Billy Woodberry) que veio a se chamar L.A. Rebellion, cuja recorrência temática conversava com a história do negro norte-americano, em contraposição à sua representação na indústria; e 3) que Killer of Sheep, então realizado de forma intermitente no hiato de 1972 a 1977-78, só teria sido lançado oficialmente em 2007 (porque à época não havia dinheiro para financiar os direitos autorais da música).

Diríamos
dele, com base nesses aspectos, que é um filme independente: no sentido financeiro, sim, a acepção imediata da palavra quando se trata de filmes (o orçamento foi em torno de 10 mil dólares); mas também no sentido de sua abordagem e postura, na medida em que independe do léxico dos blaxploitations da época ou de qualquer cartilha educacional no que diz respeito à questão racial (uma obra que encontraria valor, por exemplo, no que ela teria a ensinar à população branca sobre racismo).

No filme, o que vemos é Stan (Henry G. Sanders), cuja vida é dividida entre seu trabalho num matadouro de ovelhas, seus afazeres domésticos, coisas ordinárias (como a compra de um motor usado) e sua família. À medida que Stan percorre as cenas, somos dados a conhecer outras pessoas, em variadas situações, que compõem aquele ambiente. A história dele é a história dos outros. Salta à nossa compreensão que o tipo de trabalho de Stan o aliena de si próprio, faz dele um abúlico quase indisposto a lidar com a família. Nessa abulia e alienação, é justo que seja o título Killer of Sheep: não há sequer artigo definido (The); a vida de Stan e sua identidade é sugada e reduzida pela inércia do trabalho.

(Para pôr parênteses, lembre-se do que primeiro salta aos olhos: aquela textura a preto e branco que vem tingir a tela. Lembro do exemplo de um mau filme, Carmen Jones[3] [1954], no que toca à questão da cor: aquelas portentosas cores de mau gosto e bricabraques vazios, que sugeriam dos negros uma “sensualidade” inata, certo exotismo e capricho dos produtores, tudo aquilo se perde. É certo que a cor só pode o mais das vezes sugerir um impacto psicológico, e não pede justificativa exatamente literal [justificada por simbolismos diretos, por exemplo]; é certo que, quando foi feito Killer of Sheep, o preto e branco não era necessidade, era escolha; e é certo que quanto maiores as possibilidades mais restrições é preciso se impor. Há, sim, o impacto psicológico da ausência de cor, esse despojamento da textura que se reflete no tema e na abordagem; mas, por mero capricho ou desvio de pensamento [o pecado da crítica, infelizmente] fui levado a crer que se tratava tanto de necessidade quanto de escolha: uma escolha, vá lá, mas regida pela necessidade de recobrança histórica, o reaver de um passado em que o rosto negro a preto e branco, no que diz respeito ao cinema, raramente encontrava dignidade. Todos os planos do rosto de Kaycee Moore, a linda esposa de Stan, “justificam” essa leitura, quer tenha ou não sido o exato intuito de Burnett. Longe de Hollywood.)

Tudo procede, então, sem um desenvolvimento dramático que chamaríamos clássico (no que teria de relação entre causa e efeito), e esse procedimento algo diferente seria justificado pela afirmação que Burnett ele próprio dera em entrevista: “Queria fazer um filme que não refletisse meus valores, mas que refletisse o que acontecia na comunidade sem que eu me impusesse nisso”. O objetivo, em vez de análise, é constatação. Disso há que se perceber que, diante dessa beleza morosa e doce-amarga – nada se concretizando –, também restituímos desses fragmentos algumas parcelas de vida daquela comunidade: a misteriosa e hostil rivalidade entre meninos e meninas na infância; a brincadeira dos meninos tensionada de perigo – guerra de pedras, saltar do abismo que separa uma casa da outra; o casal briguento (“A única coisa que aparenta bela quando morre é uma rosa”); rapazes roubando a TV e ameaçando um senhor; mas também duas crianças conversando entre si, uma garotinha imitando e cantando a música do rádio enquanto mamãe a observa, o papai dando resposta poética à pergunta da criança (“é o Diabo batendo em sua esposa”). Não há lição alguma; o que emana é um respeito por cada acontecimento, por cada pessoa filmada, por cada acontecimento que interliga cada pessoa filmada.

“Ele [o negro]”, na acepção geral dos EUA, “é um problema social, não pessoal ou humano” (para ficarmos ainda em James Baldwin). A emblemática cena da gravidez que conclui o filme, em que passamos do gesto de um ventre crescendo para a ação de Stan no trabalho (matando ovelhas), comporta duas das únicas ações que realmente se concretizam (nesse filme em que ação nenhuma se concretiza): ato de concepção e ato de morte, início e fim. O mérito de Killer of Sheep, pois, é o de não tratar os negros como tipo de receptáculo idealizado, mas, em vez disso, tratá-los como suscetíveis a tristeza e deleite, dread and beauty, a boas e más ações, tensionados entre vida e morte expressos nessa cena emblemática. Seu mérito, em outras palavras, é não encerrá-los em alguma categorização que lhes negue a vida, tratando-os não como mero problema social, mas reconhecendo-os como seres humanos.

Mérito elementar de um filme que trata de coisas elementares.


[1] Le fer dans la plaie [O dedo na ferida], Cahiers du Cinéma N°63.

[2] Jacques Rivette, Notes sur une révolution [Notas sobre uma revolução]. Cahiers du Cinéma N°54.

[3] O filme, dirigido por Otto Preminger, é comumente citado como um dos primeiros filmes de elenco inteiramente negro em Hollywood. O já citado James Baldwin lhe dispensou mordaz e ambígua crítica em seu livro Notas de um Filho Nativo, cujas páginas ecoam neste texto e cuja menção se faz justa.

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