por Miguel Fernandes
We people who are darker than blue
Curtis Mayfield
Hollywood era de fato “a melhor
coisa do mundo”. Sua qualidade estava no que ela dava de drama humano, nos
gêneros diversos (policial, faroeste, musical) criados pelo gênio
da indústria e expressados por ela de um modo próprio. Não sendo, porém, a bela
coisa “coisa perfeita”, houve mesmo dentro
dela alguns espasmos de consciência que revelaram espécie de mal-estar velado,
não se curvando à mera idealização do american
way of life e nem sequer limitando-se ao mero ufanismo da pátria: espasmos
que expuseram – como nos provam os exemplos de um Ray, um Welles, um Minnelli –
uma contradição fundamental daquela
sociedade perfeita, ou “a incompatibilidade da moral e da sociedade capitalista”, como queria Jean Domarchi[1]. Sua
beleza estava então, justamente, na sua contradição entre idealização e
decadência.
O aforismo “há Hollywood e há
Hollywood[2]”,
que exprimiria dessa indústria sua ambivalência, poderia ser alterado de tal
modo para “há Los Angeles e há Los Angeles”: cidade de estrelas ao centro-norte
e o bairro de Watts ao sul. Isso para dizer que, mesmo dentro dos espasmos, quase não havia recorte de raça,
e, se lembrarmos, com James Baldwin, que a história do negro nos Estados
Unidos é a história dos Estados
Unidos (história não muito bonita), percebemos que alguma coisa escapou dessa
história do cinema – que é também a história dos EUA e dos americanos – e então
“Hollywood” nos parece mais ainda um vulto incompleto. Esquecemos de algo, ou
então pouco nos foi dado a ver; alguma coisa, porém, cuja ínfima parte nos é
sugerida pela Hattie McDaniel de …E o Vento Levou (1939), um engraxate
qualquer de Fallen Angel (1945) e o
Stepin Fetchit de Judge Priest (1934).
Por trás de todo o riso e benevolência estereotipados daqueles rostos havia
vidas de dread and beauty [pavor e
beleza] que escapavam das telas e fora delas existia, qualquer coisa que nos
tira a vista dos repetidos sex symbols
brancos de um metro e noventa (C. Gables, G. Coopers, C. Grants), das mocinhas
chiques de sobretudo engomado, e nos leva à voz de Curtis Mayfield ou Bessie
Smith, ou ao Harlem de James Baldwin, ou ao Watts de Charles Burnett. Porque,
de certo modo, Killer of Sheep é essa
parte que escapa, espécie de contraparte dessa história americana que Burnett
vem nos dar a ver e lembrar, indiretamente, que há Los Angeles e há Los Angeles.
À guisa de história e contexto,
valeria a pena citar brevemente as condições em que Killer of Sheep foi feito. O que é mais ou menos conhecido em torno
de sua realização e lançamento é que 1) Burnett, estudante da UCLA
(Universidade da Califórnia em Los Angeles), queria realizá-lo como conclusão
dos seus anos de estudo; 2) que ele estava inserido no grupo de
estudantes-diretores (entre eles Julie Dash e Billy Woodberry) que veio a se
chamar L.A. Rebellion, cuja
recorrência temática conversava com a história do negro norte-americano, em
contraposição à sua representação na indústria; e 3) que Killer of Sheep, então realizado de forma intermitente no hiato de
1972 a 1977-78, só teria sido lançado oficialmente em 2007 (porque à época não
havia dinheiro para financiar os direitos autorais da música).
Diríamos
dele, com base nesses aspectos, que
é um filme independente: no sentido
financeiro, sim, a acepção imediata da palavra quando se trata de filmes (o
orçamento foi em torno de 10 mil dólares); mas também no sentido de sua
abordagem e postura, na medida em que independe do léxico dos blaxploitations da época ou de qualquer
cartilha educacional no que diz respeito à questão racial (uma obra que
encontraria valor, por exemplo, no que
ela teria a ensinar à população branca sobre racismo).
No filme, o que vemos é Stan (Henry
G. Sanders), cuja vida é dividida entre seu trabalho num matadouro de ovelhas,
seus afazeres domésticos, coisas ordinárias (como a compra de um motor usado) e
sua família. À medida que Stan percorre as cenas, somos dados a conhecer outras
pessoas, em variadas situações, que compõem aquele ambiente. A história dele é
a história dos outros. Salta à nossa compreensão que o tipo de trabalho de Stan
o aliena de si próprio, faz dele um abúlico quase indisposto a lidar com a
família. Nessa abulia e alienação, é justo que seja o título Killer of Sheep: não há sequer artigo
definido (The); a vida de Stan e sua
identidade é sugada e reduzida pela inércia do trabalho.
(Para pôr parênteses, lembre-se do
que primeiro salta aos olhos: aquela textura a preto e branco que vem tingir a
tela. Lembro do exemplo de um mau filme, Carmen
Jones[3]
[1954], no que toca à questão da cor: aquelas portentosas cores de mau gosto e
bricabraques vazios, que sugeriam dos negros uma “sensualidade” inata, certo
exotismo e capricho dos produtores, tudo aquilo se perde. É certo que a cor só
pode o mais das vezes sugerir um
impacto psicológico, e não pede justificativa exatamente literal [justificada
por simbolismos diretos, por exemplo]; é certo que, quando foi feito Killer of Sheep, o preto e branco não
era necessidade, era escolha; e é certo que quanto maiores as possibilidades
mais restrições é preciso se impor. Há, sim, o impacto psicológico da ausência
de cor, esse despojamento da textura que se reflete no tema e na abordagem;
mas, por mero capricho ou desvio de pensamento [o pecado da crítica,
infelizmente] fui levado a crer que se tratava tanto de necessidade quanto de
escolha: uma escolha, vá lá, mas
regida pela necessidade de recobrança
histórica, o reaver de um passado em que o rosto negro a preto e branco, no que
diz respeito ao cinema, raramente encontrava dignidade. Todos os planos do
rosto de Kaycee Moore, a linda esposa de Stan, “justificam” essa leitura, quer
tenha ou não sido o exato intuito de Burnett. Longe de Hollywood.)
Tudo procede, então, sem um
desenvolvimento dramático que chamaríamos clássico
(no que teria de relação entre causa e efeito), e esse procedimento algo
diferente seria justificado pela
afirmação que Burnett ele próprio dera em entrevista: “Queria fazer um filme que não refletisse meus valores, mas que
refletisse o que acontecia na comunidade sem que eu me impusesse nisso”. O
objetivo, em vez de análise, é constatação. Disso há que se perceber que,
diante dessa beleza morosa e doce-amarga – nada se concretizando –, também
restituímos desses fragmentos algumas parcelas de vida daquela comunidade: a
misteriosa e hostil rivalidade entre meninos e meninas na infância; a
brincadeira dos meninos tensionada de perigo – guerra de pedras, saltar do
abismo que separa uma casa da outra; o casal briguento (“A única coisa que
aparenta bela quando morre é uma rosa”); rapazes roubando a TV e ameaçando um
senhor; mas também duas crianças conversando entre si, uma garotinha imitando e
cantando a música do rádio enquanto mamãe a observa, o papai dando resposta
poética à pergunta da criança (“é o Diabo batendo em sua esposa”). Não há lição alguma; o que emana é um respeito
por cada acontecimento, por cada pessoa filmada, por cada acontecimento que
interliga cada pessoa filmada.
“Ele [o negro]”, na acepção geral
dos EUA, “é um problema social, não
pessoal ou humano” (para ficarmos ainda em James Baldwin). A emblemática
cena da gravidez que conclui o filme, em que passamos do gesto de um ventre
crescendo para a ação de Stan no trabalho (matando
ovelhas), comporta duas das únicas ações que realmente se concretizam
(nesse filme em que ação nenhuma se
concretiza): ato de concepção e ato de morte, início e fim. O mérito de Killer of Sheep, pois, é o de não tratar os negros como tipo de
receptáculo idealizado, mas, em vez disso, tratá-los como suscetíveis a
tristeza e deleite, dread and beauty,
a boas e más ações, tensionados entre vida e morte expressos nessa cena
emblemática. Seu mérito, em outras palavras, é não encerrá-los em alguma
categorização que lhes negue a vida, tratando-os não como mero problema social,
mas reconhecendo-os como seres humanos.
[1] Le fer dans la plaie [O dedo na ferida], Cahiers du Cinéma N°63.
[2] Jacques Rivette, Notes sur une révolution [Notas sobre uma revolução]. Cahiers du Cinéma N°54.
[3] O filme, dirigido por Otto Preminger, é comumente citado como um dos primeiros filmes de elenco inteiramente negro em Hollywood. O já citado James Baldwin lhe dispensou mordaz e ambígua crítica em seu livro Notas de um Filho Nativo, cujas páginas ecoam neste texto e cuja menção se faz justa.
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