por Vera Lúcia de Oliveira e Silva
A
propósito de “That day, on the beach”, Ruy Gardnier assim se pronunciou no seu memorável artigo “Edward
Yang, Artista do Reflexo": Assim, mesmo sem inscrever seus mundos
ficcionais na construção típica do melodrama,... os filmes de Yang revelam grandes pontos de
contato com o gênero. Kátia
Patrício teve sensibilidade para interrogar Por
quê? Por que “That day, in the beach” não é um melodrama?
Tomo sua pergunta para mim, de partida afirmando,
como certeza antecipada, que não, “That day, on the beach” não é um melodrama,
embora revele, como diz Gardinier, grandes
pontos de contato com o gênero. O que me obriga e me explicar,
principalmente para mim mesma.
De partida, vamos às definições correntes: O drama e o melodrama são ambos
gêneros literários. O drama é um gênero amplo que lida com personagens
realistas e histórias realistas. O melodrama, por outro lado, é caracterizado
por emoções e situações exageradas e personagens estereotipados. Portanto, a principal diferença entre drama e melodrama é
que o drama retrata personagens realistas e foca no
desenvolvimento do personagem, enquanto o melodrama retrata personagens
exagerados oriundos de estereótipos.
Além
disso, podemos considerar que é característica do
melodrama intensificar as virtudes e vícios das personagens, sejam elas vilãs
ou heróis, enfatizando-lhes artificialmente determinadas características, pois
o objetivo maior desta estética é impressionar e comover cada espectador,
através da “verossimilhança”, reafirmando a qualidade moral e sentimentalista
da obra.
Só com essas primeiras reflexões já me vejo com
elementos para entender que o filme em questão responde ao registro do drama e
não do melodrama: Os personagens de Young são gente real e não estereótipos
sentimentalistas. Mas não me dou por satisfeita e vou em busca de outras chaves
para aprofundar a questão, mas logo descubro que, para usá-las, tenho que fazer
uma trapaça: preciso tornar “drama” homólogo a “tragédia”; e “melodrama”,
homólogo a “drama”.
Isso, porque tento começar pelo começo, pelo
teatro grego, guiada pela mão de Nietzsche. E lá,
se bem entendo, a dicotomia se faz entre tragédia e drama. Não há melodrama. E
a tragédia (leia-se o drama contemporâneo) fala da dimensão necessária e
inevitável da vida humana - a sua finitude -, conduzindo o espectador ao reconhecimento; enquanto o drama
(leia-se melodrama) que, cronologicamente, se segue, vai representar
estereótipos comoventes.
Nietzsche situa o nascimento da tragédia grega
nos ritos dionisíacos. Afirma como primeira aparição daquele teatro o registro
trágico, atingindo seu apogeu com Ésquilo; e identifica sua inflexão para o
drama com a entrada de Eurípides em cena.
Para o então professor de Filologia, o festival
das bacantes em honra a Dionísio, quando foi tocado pelo espírito apolíneo perdeu
seu caráter orgiástico e converteu-se no teatro de tragédia, num primeiro
registro histórico dessa apropriação recorrente que a elite faz daquilo que é
produto da criatividade primitiva do homem do povo, como depois fará com o
jazz, o samba e o tango.
No teatro de tragédia, o homem é representado
submisso ao capricho dos deuses, mero cumpridor de oráculos. O trágico da
condição humana, conhecido de todos nós no impossível de se escapar à morte, é
o tema central de toda tragédia – e comove a todos, já que a todos inclui.
Com Eurípides, endossado por Sócrates, o homem
torna-se responsável pelo seu destino, resultando o seu sofrimento de suas
próprias escolhas e decisões. Surge o drama, que deixa escapatória ao
espectador Eu não estou condenado a este
sofrimento, porque eu faço boas escolhas e tomo decisões acertadas. A
narrativa dramática passa a ser testemunhada desde fora da atuação.
Nesta transição, na história do teatro grego, o
espetáculo vai saindo do fio do discurso falado/escutado e começa a se tornar
visual, uma cena a ser vista. De fora.
Parece-me que, adotando esta chave nietzschiana,
podemos tentar esclarecer o caráter não-melodramático (quer dizer, trágico) de
“That day, on the beach”, filme em que o cineasta desenha e dirige seus
personagens para que nos apresentem vidas banais, onde os desdobramentos
narrativos decorrem mais da própria condição humana que de um mau passo - sendo
este “mau” determinado por um código onde o bem e o mal são estabelecidos no
registro maniqueísta.
Numa direção de atores que nos põe face a face
com rostos que falam, principalmente em seus silêncios, alternadamente somos
levados aos acontecimentos descritos, como eles seriam imaginados a partir do
fio do discurso. A alternância entre os rostos e as cenas em movimento nunca
parece artificial ou forçada, ao contrário, as transições acontecem como
necessárias, como se fôssemos suavemente conduzidos para dentro da alma daquele
que relata e pudéssemos partilhar suas memórias das situações relatadas.
Criam-se ondulações suaves entre discurso falado e encenação. Tais ondulações capturam
o espectador para dentro do relato.
A partir de duas mulheres conversando durante o
tempo de um café – sim, o filme é um olhar feminino sobre a vida –, todos os
personagens são apresentados. Ao longo do filme, vemos uma sucessão de gente
muito bonita e muito bem vestida (talvez um modo de dizer que estão bem na
vida), posta na própria história com o tamanho de cada qual.
O centro de gravidade, no início posto em uma das
interlocutoras (Terry Hu, como Tan Wei Ching), rapidamente se desloca para a
outra (Sylvia Chang, como Lin Jiali) e cobre a trajetória desta, desde a
infância, situando o filme no gênero romance
de formação. Nada é gratuito. Nada é excesso. O que fica de fora parece
intencional, pois convoca o espectador a completar as lacunas.
Cabe uma reflexão a mais: se tomarmos uma chave
freudiana para
pensar, podemos considerar que a infelicidade espreita o homem desde três
fontes: seu corpo, que nem pode prescindir da dor e da angústia como
importantes sinais de alarme; o outro, sempre pronto a lhe produzir
estranhamento; a natureza, que lhe guarda indiferença.
A esta instância soberana inevitável, a
infelicidade, o homem pode responder com a miséria neurótica e seus
transbordamentos de excessos afetivos, ingressando numa vida melodramática. Mas
também pode responder com uma serenidade trágica, vivendo a infelicidade comum.
A frase pronunciada pelo irmão de Lin Jiali antes
de morrer parece resumir o espírito do filme, Sou grato pelas pequenas alegrias que fizeram esta curta vida durar
bastante.
Uma concordância plácida com a vida e suas
limitações e limites e um modo pacífico de dizer “sim” à contingência e ao
efêmero - parece-me ser este o ponto de capitonê para onde convergem todas as
linhas do filme. Nenhuma denúncia, nenhuma reivindicação, nenhuma
autocomplacência ou autocomiseração. Pura vida humanamente vivida.
Nós, capturados pela doçura do filme, não temos
que tomar partido, nem contra nem a favor de coisa alguma, só nos restando
desejar que a gente também possa ter a felicidade de manter com a vida uma
relação amistosa.
Curitiba, 5 de Outubro de
2021
Agradeço a Antonio Jaques da Silva, pela
interlocução.