
por Vera Lúcia de
Oliveira e Silva
[Contém spoilers]
Não à toa, este foi o filme que
chamou a atenção do mundo para a obra de Edward Yang, até então pouco comentada,
levando a comunidade cinéfila a examinar melhor seus filmes anteriores. Nessa
retomada, duas obras luminosas (That day on the beach-1983 e A brighter summer
day-1991) ergueram-se entre outros filmes (Taipei story-1985, Terrorizers-1986,
A confucian confusion-1994 e Mahjong-1996), talvez menores, mas igualmente
essenciais.
Neste que foi o seu último filme,
Yang transmite um resumo do seu legado. Ele parece ensinar que as coisas
simples da vida – nascer, viver e morrer – inquietam profundamente àqueles que
escapam à alienação.
Acompanhamos a trajetória de um
homem chamado NJ e sua família: a esposa Min Min; a filha Ting Ting e o adorável
caçula Yang Yang. Na interação destes personagens com seus familiares e outros contatos
sociais, desdobra-se uma história humana, sensível e reveladora.
O filme abre-se com belas cenas
de um casamento. O irmão de Min Min, A-Di, casa-se com uma noiva, cuja gravidez
já está em fase avançada, por ele ter adiado sucessivamente o enlace até
encontrar uma data auspiciosa, favorável à felicidade, segundo o horóscopo. Parece
uma desculpa que justifique a procrastinação, mas a verdade é que ele também
adiará indefinidamente a escolha do nome do filho, nome este que passa por uma
decisão muito crítica, pois deverá neutralizar o perigo trazido pela data de
nascimento, considerada nefasta.
Yang, com delicadeza e bom humor,
zomba da superstição que parece entranhada na cultura daquele grupo, ao mesmo
tampo que anuncia estar a mesma cultura sendo infiltrada por costumes, ícones e
heróis ocidentais, colocando, em imagens, a complexidade da transformação em
curso. Ele também colocará em foco a complexidade do movimento subjetivo e da
interação social dentro daquela família e no seu entorno.
Já na festa de casamento intervém
um escândalo e somos apresentados a Yun Yun, a companheira que o noivo abandonou
para se casar com a namorada grávida. Sintomaticamente, em meio ao tumulto, o
quadro com a foto dos noivos acaba de cabeça para baixo. Ao longo do filme,
saberemos que ele não deixou para trás o relacionamento traído, um laço que
incluía patrimônio financeiro conjunto.
A alegria da festa não chega a
ser perturbada pelo escândalo, mas contrasta vivamente com o que se segue: uma
condição médica leva a matriarca da família – mãe de Min Min (e do noivo) – ao
hospital. Ela retorna para casa em coma. Sua prescrição inclui um remédio prescrito
por Almodovar: Falem com ela! Na imposição de que falem com a avó
adormecida, as pessoas começam a se revelar a si mesmas. Esse é o mote central
do filme: revelações pessoais.
O pequeno Yang Yang recusa-se a
falar com a avó: segue sua vida, com a máxima autonomia, o que rende os momentos
mais comoventes do filme.
A adolescente Ting Ting fala com
ela, mas seu discurso é carregado de culpa, embora, ao final, encontre redenção.
Ela tem dúvidas se não foi ela própria a causadora do coma da avó e pede perdão.
A avó lhe responderá poeticamente, entregando-lhe um origami.
Min Min entra em crise – e isso
vai levá-la para um monastério, onde tentará encontrar-se com o vazio que
constata em si mesma: descobre que não tem o que dizer à mãe. NJ propõe uma
saída burocrática – pedir à enfermeira que leia o jornal para a avó – proposta
que a esposa rejeita. Ele mesmo considera que falar com a sogra é como rezar. Nem
sei se sou ouvido, nem se sou inteiramente sincero.
A ausência das mulheres adultas –
a avó e a mãe – cria um vácuo em que todos naquela família vão se reposicionar.
Ting Ting, no relacionamento com outros
jovens, realiza a giro que vai de menina à mulher, em um rito de passagem
mostrado com a mesma delicadeza e precisão do primeiro filme de Edward Yang –
Desejos, de 1982, um dos episódios dentro da produção coletiva denominada “In
Our Time”. Ela afirmará até o fim sua adesão ao mundo Ideal. Se chega a se interrogar
– Porque o mundo é tão diferente do que pensamos? – isso decorre de um
encontro com o Real, sempre da ordem do mau encontro, mediado pelo quase-namorado
Gordinho.
O mesmo Gordinho que o cineasta
usou para falar de sua paixão pelo Cinema: O Cinema nos permite viver duas
vidas a mais. Por ele podemos viver experiências que não fazem parte do nosso quotidiano
– em referência ao lugar da Fantasia e da Sublimação. Infelizmente, para Gordinho
isso não será suficiente. Yang aponta à impossibilidade de o Simbólico recobrir
inteiramente o Real.
Yang vai mostrar com doçura o
nascimento do desejo sexual adolescente, fazendo Ting Ting trocar o uniforme de
todos os dias pelo vestido branco de alças e o sapatinho de salto, em
contraponto com o embaraço que o desejo representa para sujeitos de qualquer
gênero – o primeiro beijo acontece tendo ao fundo um semáforo que muda para o
vermelho; uma vez num hotel, é difícil acender a luz - e a fuga acaba sendo a
melhor alternativa.
Igualmente deixará muito claro, numa
sequência memorável, as raízes da sexualidade já na infância. Yang Yang será o
protagonista. O menino chega atrasado para uma aula sobre nuvens e fenômenos
climáticos. Depois dele, entra na sala de projeção a bela menina que ocupa o
foco de seu interesse. A saia da menina se engancha na fechadura e um lampejo fugaz
mostra seu corpinho, recoberto pela calcinha branca. Outro lampejo mostra o
rosto de Yang Yang, enquanto áudio e vídeo falam do aparecimento de uma
força de atração irresistível que levará à descarga de um raio. Não poderia
ser mais poético. Nem mais erótico.
Enquanto os jovens vão
experimentando suas descobertas, os adultos também realizam travessias.
A manutenção do relacionamento de
A-Di com sua primeira mulher ficará explícita não só na sua reabilitação
econômica, como também na presença dela – Yun Yun, “uma velha amiga” – numa
festa seguinte em que a família se reúne para celebrar o nascimento do bebê. Um
novo escândalo, agora protagonizado pela esposa ciumenta, desdobra-se em uma
separação temporária que leva A-Di a um ato extremo.
NJ, num encontro com seu primeiro
amor, Sherry, realiza com ela uma viagem pelo Japão – um percurso pela
própria juventude, ele dirá – apenas para concluir que, se tivesse uma
segunda chance, não precisaria dela para nada. Embora diga à primeira
namorada que nunca mais amou ninguém, é à esposa Min Min, já de volta de sua
própria jornada, que ele entregará sua verdade.
Ao mesmo tempo em que percorre as
vicissitudes próprias do Amor, Edward Yang também nos fala do Trabalho: a
trajetória profissional de NJ o coloca em condições de desvelar o mundo
corporativo, onde valores tradicionais são substituídos pelo lucro imediato; dignidade
nada tem a ver com negócios; o autêntico é abandonado em favor da cópia;
profissionais criativos e sérios, que oferecem saber e trabalho, perdem para
oportunistas que acenam com a mágica do sucesso fácil; acordos são traídos e a
ética ferida faz sofrer o sujeito. Ele ensina: É preciso amar o próprio
trabalho para ser feliz.
Nesta mesma toada, NJ vai
protagonizar um encontro com um sócio em potencial – o Sr. Oda – onde dois
homens íntegros se reconhecem e se respeitam. É um laço sem futuro, entretanto,
pois a corporação tem planos meteóricos. O que não impede que os dois sustentem
uma conversa plena e sifnificativa e que, enquanto comentam que a Música foi
desqualificada naquele mundo porque Não se ganha dinheiro ouvindo música,
embarquem em uma performance de música popular que terminará nos acordes pungentes
da Sonata ao Luar, de Beethoven, enquanto a câmera varre um cenário de
escritórios iguais na sua monotonia impessoal.
O caráter inseparável da dimensão
social e pessoal do ser humano, Edward Yang o mostra trazendo a cidade para
dentro da cena da vida privada – mostra as pessoas no espaço doméstico ou
corporativo juntamente com o reflexo dos edifícios e do trânsito nos vidros das
janelas: A casa e a rua superpostas e indissociáveis. O Sujeito e o Outro.
Mas é o pequeno Yang Yang quem
observa a todos e percebe claramente a distância que separa as pessoas do Saber.
Você não viu, você está falando o que ouviu dizer, você não sabe o que diz.
Tem clareza de que o que ele percebe não é o mesmo que percebem os outros. Quer
mostrar aos demais aquilo que eles próprios não sabem de si – e lhes entrega
fotos de suas nucas.
Na cerimônia de despedida da avó,
em um ambiente tradicional dentro de um parque sereno, finalmente o menino fala
com ela. Lê uma carta. Desculpa-se: Não falei antes porque você já sabia
tudo o que eu pudesse lhe dizer. Mas agora quer se despedir e declara seu
desejo: Quando eu crescer, quero contar para os outros o que eles não sabem,
mostrar coisas que eles não viram. E aponta à alegria que o desejo
comporta: Vai ser tão divertido!
Encerra o filme colocando em
palavras uma pergunta fundamental – Pode ser que eu descubra aonde você foi.
E aí vou poder contar para todo mundo. E, declarando que, mesmo
sendo só uma criança, já se sente tão velho quanto a avó, testemunha o caráter
atemporal das questões cruciais que assolam a alma humana.
Curitiba, 25 de Janeiro
de 2022.