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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Cineclube do Atalante: Aquele dia na praia

O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Edward Yang. Entrada franca, sempre.


AQUELE DIA NA PRAIA, dirigido por Edward Yang.

(Hai Tan de Yi Tian [That day, on the beach], TWN, 1983, drama/romance, 166min., 16 anos)

Com Sylvia Chang, Ming Hsu, Fang Mei.


Após treze anos de silêncio, duas amigas se encontram para uma conversa que pode redefinir todo o futuro. Uma delas, agora pianista famosa, procura notícias do homem que amara na juventude. O que a outra tem a revelar, também diz respeito ao aprendizado pessoal que sofreu para descobrir o amor. Nas palavras de ambas, um retrato do cruel amadurecimento na sociedade contemporânea.


Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE

Aquele dia na praia” (1983), de Edward Yang
Sábado, 13/05
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA 

 
Realização: Coletivo Atalante

terça-feira, 22 de março de 2022

Uma Confusão Confuciana (1994)

 

  por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[Contém spoilers]

Neste filme de 1994, Edward Yang abre um leque de personagens arquetípicos do nosso tempo.

Comecemos com a apresentadora de TV que encanta os telespectadores com suas mensagens cor-de-rosa, separada de um marido escritor que trocou esta seara, onde também semeava e colhia, pela dimensão trágica da existência - e já não vende mais seus livros, que antes eram consumidos em larga escala.

Os dois primeiros arquétipos já colocam em cena as legiões de devotos arrastados pelas mensagens edificantes de Poliana e que, agora que o pensador põe um pé no Real, castigam aquele que desertou do caríssimo caminho da Ilusão, levando-o ao ostracismo.

A própria migração do escritor – do Romance para a Tragédia, como ele mesmo anuncia – não deixa de ser também alvo de uma crítica mordaz: um dos livros que ele não consegue vender é um “Manual de autoajuda para artistas”; e, depois de uma experiência de quase-suicídio, ele experimenta mais uma metamorfose histriônica e inicia um novo ciclo literário – que não se sabe no que vai dar.

Um artista cênico da moda – quer dizer, mais um folião do reino da fantasia – põe em cena uma obra que o escritor repudia a ponto de não se importar com o plágio. E o show pode seguir sem a discussão de direitos autorais que os jornalistas desejam incendiar – afinal, o que vale para a plateia é a fogueira de vaidades. São os mesmos jornalistas que se movem para fazer do divórcio de Poliana um espetáculo sórdido, bem ao gosto do respeitável público.

Um segundo casal, um par de executivos, encarna a ambivalência entre a tradição - casamento arranjado pelos pais - e a escolha consensual entre cônjuges. Sucedem-se as vicissitudes que o tema suscita, enquanto seguimos uma dupla de oportunistas sem escrúpulos tentando extrair vantagens dos bem-sucedidos na roda da fortuna.

Yang vai apresentando a confusão em contrapontos dinâmicos entre os diversos personagens, com humor e lucidez, sem nunca negar a dimensão humana de cada caráter que explora. Com profunda ironia anuncia que Confúcio, se retornasse, seria tomado por um charlatão.

A gente que ele expõe pode até não cativar nossa simpatia, mas carrega sempre aquela marca de autenticidade que só um autor atento e respeitoso consegue imprimir no desdobrar de sua obra: pessoas à deriva, numa pretensa autonomia que toca a farsa, sempre contra um fundo de tristeza.

Vale a pena esclarecer que as pessoas retratadas são confusas, agitando-se freneticamente pela vida em vez de por ela caminhar em passos consequentes – não o filme. O enredo segue pelo encadeamento de uma sucessão de esquetes, nenhum deles gratuito, anunciados por letreiros alusivos ao conteúdo de cada qual, revelando as transformações que essas pessoas vão experimentando no curso dos acontecimentos, para o bem e para o mal.

E no meio daquele mar de confusão emerge finalmente uma ilha de paz onde é possível apostar na amizade e no amor - e o filme termina com uma lufada de ar fresco.

Curitiba, 14 de Fevereiro de 2022

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

As coisas simples da vida (YiYi), Edward Yang, 2000

 

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[Contém spoilers]

Não à toa, este foi o filme que chamou a atenção do mundo para a obra de Edward Yang, até então pouco comentada, levando a comunidade cinéfila a examinar melhor seus filmes anteriores. Nessa retomada, duas obras luminosas (That day on the beach-1983 e A brighter summer day-1991) ergueram-se entre outros filmes (Taipei story-1985, Terrorizers-1986, A confucian confusion-1994 e Mahjong-1996), talvez menores, mas igualmente essenciais.

Neste que foi o seu último filme, Yang transmite um resumo do seu legado. Ele parece ensinar que as coisas simples da vida – nascer, viver e morrer – inquietam profundamente àqueles que escapam à alienação.

Acompanhamos a trajetória de um homem chamado NJ e sua família: a esposa Min Min; a filha Ting Ting e o adorável caçula Yang Yang. Na interação destes personagens com seus familiares e outros contatos sociais, desdobra-se uma história humana, sensível e reveladora.

O filme abre-se com belas cenas de um casamento. O irmão de Min Min, A-Di, casa-se com uma noiva, cuja gravidez já está em fase avançada, por ele ter adiado sucessivamente o enlace até encontrar uma data auspiciosa, favorável à felicidade, segundo o horóscopo. Parece uma desculpa que justifique a procrastinação, mas a verdade é que ele também adiará indefinidamente a escolha do nome do filho, nome este que passa por uma decisão muito crítica, pois deverá neutralizar o perigo trazido pela data de nascimento, considerada nefasta.

Yang, com delicadeza e bom humor, zomba da superstição que parece entranhada na cultura daquele grupo, ao mesmo tampo que anuncia estar a mesma cultura sendo infiltrada por costumes, ícones e heróis ocidentais, colocando, em imagens, a complexidade da transformação em curso. Ele também colocará em foco a complexidade do movimento subjetivo e da interação social dentro daquela família e no seu entorno.

Já na festa de casamento intervém um escândalo e somos apresentados a Yun Yun, a companheira que o noivo abandonou para se casar com a namorada grávida. Sintomaticamente, em meio ao tumulto, o quadro com a foto dos noivos acaba de cabeça para baixo. Ao longo do filme, saberemos que ele não deixou para trás o relacionamento traído, um laço que incluía patrimônio financeiro conjunto.

A alegria da festa não chega a ser perturbada pelo escândalo, mas contrasta vivamente com o que se segue: uma condição médica leva a matriarca da família – mãe de Min Min (e do noivo) – ao hospital. Ela retorna para casa em coma. Sua prescrição inclui um remédio prescrito por Almodovar: Falem com ela! Na imposição de que falem com a avó adormecida, as pessoas começam a se revelar a si mesmas. Esse é o mote central do filme: revelações pessoais.

O pequeno Yang Yang recusa-se a falar com a avó: segue sua vida, com a máxima autonomia, o que rende os momentos mais comoventes do filme.

A adolescente Ting Ting fala com ela, mas seu discurso é carregado de culpa, embora, ao final, encontre redenção. Ela tem dúvidas se não foi ela própria a causadora do coma da avó e pede perdão. A avó lhe responderá poeticamente, entregando-lhe um origami.

Min Min entra em crise – e isso vai levá-la para um monastério, onde tentará encontrar-se com o vazio que constata em si mesma: descobre que não tem o que dizer à mãe. NJ propõe uma saída burocrática – pedir à enfermeira que leia o jornal para a avó – proposta que a esposa rejeita. Ele mesmo considera que falar com a sogra é como rezar. Nem sei se sou ouvido, nem se sou inteiramente sincero.

A ausência das mulheres adultas – a avó e a mãe – cria um vácuo em que todos naquela família vão se reposicionar.

Ting Ting, no relacionamento com outros jovens, realiza a giro que vai de menina à mulher, em um rito de passagem mostrado com a mesma delicadeza e precisão do primeiro filme de Edward Yang – Desejos, de 1982, um dos episódios dentro da produção coletiva denominada “In Our Time”. Ela afirmará até o fim sua adesão ao mundo Ideal. Se chega a se interrogar – Porque o mundo é tão diferente do que pensamos? – isso decorre de um encontro com o Real, sempre da ordem do mau encontro, mediado pelo quase-namorado Gordinho.

O mesmo Gordinho que o cineasta usou para falar de sua paixão pelo Cinema: O Cinema nos permite viver duas vidas a mais. Por ele podemos viver experiências que não fazem parte do nosso quotidiano – em referência ao lugar da Fantasia e da Sublimação. Infelizmente, para Gordinho isso não será suficiente. Yang aponta à impossibilidade de o Simbólico recobrir inteiramente o Real.

Yang vai mostrar com doçura o nascimento do desejo sexual adolescente, fazendo Ting Ting trocar o uniforme de todos os dias pelo vestido branco de alças e o sapatinho de salto, em contraponto com o embaraço que o desejo representa para sujeitos de qualquer gênero – o primeiro beijo acontece tendo ao fundo um semáforo que muda para o vermelho; uma vez num hotel, é difícil acender a luz - e a fuga acaba sendo a melhor alternativa.

Igualmente deixará muito claro, numa sequência memorável, as raízes da sexualidade já na infância. Yang Yang será o protagonista. O menino chega atrasado para uma aula sobre nuvens e fenômenos climáticos. Depois dele, entra na sala de projeção a bela menina que ocupa o foco de seu interesse. A saia da menina se engancha na fechadura e um lampejo fugaz mostra seu corpinho, recoberto pela calcinha branca. Outro lampejo mostra o rosto de Yang Yang, enquanto áudio e vídeo falam do aparecimento de uma força de atração irresistível que levará à descarga de um raio. Não poderia ser mais poético. Nem mais erótico.


Enquanto os jovens vão experimentando suas descobertas, os adultos também realizam travessias.

A manutenção do relacionamento de A-Di com sua primeira mulher ficará explícita não só na sua reabilitação econômica, como também na presença dela – Yun Yun, “uma velha amiga” – numa festa seguinte em que a família se reúne para celebrar o nascimento do bebê. Um novo escândalo, agora protagonizado pela esposa ciumenta, desdobra-se em uma separação temporária que leva A-Di a um ato extremo.

NJ, num encontro com seu primeiro amor, Sherry, realiza com ela uma viagem pelo Japão – um percurso pela própria juventude, ele dirá – apenas para concluir que, se tivesse uma segunda chance, não precisaria dela para nada. Embora diga à primeira namorada que nunca mais amou ninguém, é à esposa Min Min, já de volta de sua própria jornada, que ele entregará sua verdade.

Ao mesmo tempo em que percorre as vicissitudes próprias do Amor, Edward Yang também nos fala do Trabalho: a trajetória profissional de NJ o coloca em condições de desvelar o mundo corporativo, onde valores tradicionais são substituídos pelo lucro imediato; dignidade nada tem a ver com negócios; o autêntico é abandonado em favor da cópia; profissionais criativos e sérios, que oferecem saber e trabalho, perdem para oportunistas que acenam com a mágica do sucesso fácil; acordos são traídos e a ética ferida faz sofrer o sujeito. Ele ensina: É preciso amar o próprio trabalho para ser feliz.

Nesta mesma toada, NJ vai protagonizar um encontro com um sócio em potencial – o Sr. Oda – onde dois homens íntegros se reconhecem e se respeitam. É um laço sem futuro, entretanto, pois a corporação tem planos meteóricos. O que não impede que os dois sustentem uma conversa plena e sifnificativa e que, enquanto comentam que a Música foi desqualificada naquele mundo porque Não se ganha dinheiro ouvindo música, embarquem em uma performance de música popular que terminará nos acordes pungentes da Sonata ao Luar, de Beethoven, enquanto a câmera varre um cenário de escritórios iguais na sua monotonia impessoal.

O caráter inseparável da dimensão social e pessoal do ser humano, Edward Yang o mostra trazendo a cidade para dentro da cena da vida privada – mostra as pessoas no espaço doméstico ou corporativo juntamente com o reflexo dos edifícios e do trânsito nos vidros das janelas: A casa e a rua superpostas e indissociáveis. O Sujeito e o Outro.

Mas é o pequeno Yang Yang quem observa a todos e percebe claramente a distância que separa as pessoas do Saber. Você não viu, você está falando o que ouviu dizer, você não sabe o que diz. Tem clareza de que o que ele percebe não é o mesmo que percebem os outros. Quer mostrar aos demais aquilo que eles próprios não sabem de si – e lhes entrega fotos de suas nucas.

Na cerimônia de despedida da avó, em um ambiente tradicional dentro de um parque sereno, finalmente o menino fala com ela. Lê uma carta. Desculpa-se: Não falei antes porque você já sabia tudo o que eu pudesse lhe dizer. Mas agora quer se despedir e declara seu desejo: Quando eu crescer, quero contar para os outros o que eles não sabem, mostrar coisas que eles não viram. E aponta à alegria que o desejo comporta: Vai ser tão divertido!

Encerra o filme colocando em palavras uma pergunta fundamental – Pode ser que eu descubra aonde você foi. E aí vou poder contar para todo mundo. E, declarando que, mesmo sendo só uma criança, já se sente tão velho quanto a avó, testemunha o caráter atemporal das questões cruciais que assolam a alma humana.


Curitiba, 25 de Janeiro de 2022.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Taipei Story, Edward Yang, 1985

 

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

[Contém spoilers]

Edward Yang é um cineasta de aberturas – e não de fechamentos. Então é possível ver este filme como um melodrama urbano envolvendo Lung (
Hou Hsiao-hsien) e Chin (Tsai Chin). Entretanto, a mesma abertura que permite essa pegada também oferece a alternativa de se tomar o casal e suas vicissitudes como metáfora da própria cidade: Taipei – uma ilha urbana dentro de uma ilha geográfica, parece um claustro do qual alguns escapam, mudando-se para o Japão ou para o EEUU e os que ficam, ou definham junto com as tradições e seus valores, ou adotam a cultura invasora que vai se fazendo hegemônica.

Com esta abordagem, é fácil seguir Lung como representante dos valores tradicionais daquela cultura milenar; e Chin, como a absorção da modernidade trazida pela “invasão” americana. Já no vestuário de um e de outro, nas cenas iniciais do filme, quando o casal examina um apartamento a ser adotado como residência; e numa certa indiferença entre eles, já ali anunciando que estão juntos, mas não um com o outro. O casal lembra duas ilhas, o que não impede que ele a agasalhe – contra o frio da noite e da vida. A família, mostrada na celebração de um aniversário, lembra um arquipélago: estão juntos, mas parecem sós.

A Taipei dessa estória é uma cidade inóspita. Tráfego caótico, cenário urbano tradicional sórdido e decadente, iluminado em flashes intermitentes pelos faróis dos veículos, num contraponto entre a antiga grandeza, que subsiste sob a decadência na arquitetura que vai ruindo, e o fugaz do moderno, que veio para ficar. Enfeitada em néon reluzente, ostentando marcas de produtos estrangeiros, brilha na noite. Edifícios tradicionais transformado em enfeites de Natal, ao som de canções importadas, celebram uma festa alienígena. A imagem final – o reflexo da cidade fraturado pelas linhas quebradas de um painel de vidraças – mostra Taipei como caleidoscópio de múltiplos fragmentos, sua identidade perdida.

Mas, sigamos o casal tomado como metáfora.

O caráter de Chin vai se revelando em detalhes intencionalmente postos em cena por Yang: na coleção de óculos que usa, não para ver, mas para ser vista; na objeção aos movimentos solidários de Lung; no uso reiterado do telefone para buscar com o outro um contato mediado pela tecnologia, vazio de autenticidade. Revela-se também que ela não é fiel a Lung, pois seremos apresentados a seu amante, que lhe comunica o lamento próprio do trabalhador alienado de sua obra: todos os prédios da cidade são idênticos e já não mostram a assinatura de quem os desenhou e construiu. Quando o amante recompõe seu casamento, Chin encontra outro laço – dessa vez, fará uma escolha fatal.

O desdobramento da estória de Taipei vai revelar que Lung mantém laços piedosos de responsabilidade e proteção para com os demais: a mãe – a irmã e o cunhado residentes nos EEUU – um relacionamento antigo que vive em Tóquio – a namorada Chin (que lhe diz essa frase emblemática Você sabe do que eu preciso: eu preciso de nada) – o pai da namorada, um homem com antecedentes de violência na família, fracassado nos negócios e na vida – um antigo amigo , cuja mulher, viciada no jogo e negligente com as crianças, cometerá suicídio...

... enquanto ele próprio não se apruma em suas contradições: abre mão de seus recursos e de seu projeto pessoal para ajudar os demais; brigão, recorre aos punhos “para se defender” e para “fazer justiça”; vive da glória de um status de quase-ídolo desportivo, num esporte importado; julga e condena uma viciada em jogo e perde o próprio carro jogando. Como ele mesmo diz, comete muitos erros, sem encontrar quem lhe faça uma advertência, outro modo de dizer que está só.

Em meio a essa solidão povoada, somos apresentados a vários aspectos daquela comunidade: gap entre gerações – Não entendo os jovens... declara o pai violento, velho, doente, fracassado e endividado; evasão da família – Chin sai de casa, a irmã caçula parece em vias de um aborto e só pensa em escapar para o Japão, a mãe apresenta-se desesperada; e insegurança profissional – Chin, confiante por ter sido promovida, assume um aluguel e sai da casa dos pais, mas é logo demitida, porque seu status salarial estava ligado à confiança de sua antiga chefe, confiança que não é valor para o novo empresário que assume os negócios.


Lung mantém-se algo aprumado à reflexão. Pensa suas questões: O casamento não é uma cura. Nem os EEUU são uma cura. São promessas que alimentam a ilusão de que é possível começar de novo. Só se respeita quem tem poder. Cometi muitos erros. Preciso pensar – só e em silêncio.

Mas esse aprumo não vai protegê-lo de se ver colhido na convergência perversa de dois fatos, num encontro fatídico com o Real: um mau passo de Chin traz para sua órbita um homem possessivo e violento, que entrará em confronto com Lung e sua própria violência. Este, no seu registro brigão onipotente, enfrenta o rival. Morre, sozinho na noite, em meio a dejetos de um descarte. Um simulacro de sala da vida privada – mobília abandonada como lixo na via pública – faz cenário para seu último ato, delirando uma glória desportiva acalentada e jamais atingida, rindo em meio à fumaça do último cigarro, ele próprio um dejeto a mais.

Chin é reabsorvida no mercado de trabalho, contratada por uma empresa americana que renova a esperança de autonomia, delirando que Lung ainda não tomou sua decisão final. É verdade. Nem tomou nem vai tomar decisão alguma, pois sucumbiu a mais uma sequência de escolhas funestas.

Para mim o filme provoca ressonâncias que perduram para além de sua exibição. Partilho a seguir as que continuaram me assombrando.

Não sei bem de onde chegam-me ecos de que estamos diante de vítimas do capitalismo selvagem que vai contagiando Taipei. De fato, se pudéssemos reconhecer o Capitalismo como um ente maléfico, dotado de vida própria, capaz de assombrar o humano e conduzi-lo ao pior, seria um entendimento possível.

Só que não parece haver ente maléfico algum lá fora, à espreita, pronto a seduzir as pessoas e incluí-las em seus efeitos. Ao contrário, parece que o Capitalismo é apenas um dos nomes de um fenômeno social antigo e sem fronteiras, nome introduzido na Linguagem contemporânea por Karl Marx, que o reconheceu na sociedade industrial e, isolando e descrevendo seus avatares, apresentou-o ao mundo com uma nova certidão de batismo.

Entretanto, antes do Capitalismo ser reconhecido e nomeado, sua fenomenologia já reinava no mundo: a riqueza já exercia seu fascínio; o fetiche dos signos de riqueza já determinava o valor da mercadoria, tanto quanto o jogo de forças entre a oferta e demanda o fazia para os produtos essenciais à sobrevivência; aqueles que podiam dominavam os que precisavam; a solidariedade dava lugar à ganância; o proletário era denominado servo ou escravo; o patrão se chamava amo ou senhor. Não há nada de novo debaixo do céu, simplesmente porque o Real retorna sempre ao mesmo lugar. Novos nomes para velhos crimes.

Supondo que Taipei está tendo a sua identidade tradicional estilhaçada pela chegada do Capitalismo, como entender essa operação? Como ela é possível? Como é possível que uma nova cultura substitua a anterior? De onde se extrai a força motriz para esse acontecimento improvável?

A história da ilha, denominada Formosa pelos portugueses no século XVI, revela uma alternância de dominações desde quando se tem notícia - a fenomenologia do senhor e do escravo já estava ali assentada com a força que lhe é inerente. A chegada dos perseguidos pela República Popular da China em 1949 não foi uma chegada neutra: eram sujeitos perseguidos exatamente porque escolhiam o Capitalismo como sua cartilha, recusando o livro vermelho de Mao.

Ou seja, Formosa foi convertida em Taiwan por um grupamento humano que, dada a polarização Comunismo X Capitalismo no continente, escolheu este último e fez-se aliado dos EEUU.  Não é de se surpreender, então, que a “invasão capitalista” seja, de fato, a consequência lógica de um projeto decidido por uma comunidade de indivíduos que, exatamente por isso, teve que fugir do continente.

Nesse enquadramento, dissolve-se a nuvem de um suposto contágio malévolo que o Capitalismo seria ardilosamente capaz de exercer, atravessando terras, céus e oceanos. Em Taiwan há seres humanos e isso basta. Eles são os próprios portadores de seu Bem e de seu Mal e, lá como aqui, hoje como então, colhem as consequências de suas próprias escolhas, para o bem e para o mal.

Posso não gostar da tendência, pois sou a favor da preservação das identidades locais. Prezo o multiverso e lamento a mesmice de um mundo globalizado. Se lutasse por isso, saberia estar engajada numa luta inglória, pois a entropia, que leva toda diferença à equalização, é a lei maior.  

Edward Yang – como o artista honesto que sempre foi – mostra o que está desaparecendo e o que está sendo posto no seu lugar, não só em Taiwan, mas no mundo. Sem complacência e sem piedade. E deixa a cada um a opção de interrogar, ou não, as escolhas humanas. Se possível, as próprias escolhas.

 Curitiba, 19 de janeiro de 2021.