segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Melhores filmes do ano

Convocamos as equipes dos cineclubes do Atalante para compor uma lista com os 10 melhores filmes produzidos, lançados e assistidos em 2015. Eis o resultado:

1° - Sniper Americano, de Clint Eastwood 
2° - Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho 

3° – João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei, de Manuel Mozos
4° - A Visita, de M. Night Shyamalan 
5° - Pasolini, de Abel Ferrara 
6° – Minha Mãe, de Nanni Moretti 
7° – Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard 
8° – Blackhat, de Michael Mann 
9° – La Sapienza, de Eugène Green 
10° – Mad Max: A Estrada da Fúria, de George Miller

Listas individuais:

Alexandre Magno (Cine FAP)

1°– Sniper Americano, de Clint Eastwood 
2°- Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho 

3° – Um amor a cada esquina, de Peter Bogdanovich
4° – Divertida Mente, de Pete Docter
5° – Look of Silence, de Joshua Oppenheimer/A assassina, de Hou Hsiao-hsien
6° – Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard 

Cauby Monteiro (Cineclube da Cinemateca)

Hors-concours: Adeus à Linguagem, de JLG


1°- La Sapienza, de Eugéne Green
2° - Mostre a língua, moça, de Axelle Ropert
3° - Outros amarão as coisas que eu amei, de Manuel Mozos
4° - Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho
5° - Sniper Americano, de Clint Eastwood
6° - The Visit, de M. Night Shyamalan
7° - Deux, Remi, Deux, de Pierre Léon 
8° - Blackhat, de Michael Mann
9° - Snowpiercer, de Bong Joon-ho
10° - Mia Madre, de Nanni Moretti/Um amor a cada esquina, de Peter Bogdanovich

Christofer Pallú (Cine FAP)

1°. A Visita (M. Night Shyamalan)
2°. Wild City (Ringo Lam)
3°. Pasolini (Abel Ferrara)
4°. Sniper Americano (Clint Eastwood)
5°. Mia Madre (Nanni Moretti)
6°. Night is Coming - A Threnody For The Victims of Marikana (Aryan Kaganof)
7°. Bitter Lake (Adam Curtis)
8°. Pesadelos do Passado 2 (Dallas Hallam e Patrick Horvath)
9°. Bata Antes de Entrar (Eli Roth)
10°. Sicario (Denis Villeneuve)

Danilo Custódio (Cineclube do Celin)

1° - Mad Max: Fury Road, de George Miller
2° - Pasolini, de Abel Ferrara
3° - Últimas conversas, de Eduardo Coutinho
4° - Sniper Americano, de Clint Eastwood
5° - Amy, de Asif Kapadia
6° - O Sal da Terra, de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders
7° - Still Alice, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland
8° - What We Do In The Shadows, de Jemaine Clement e Taika Waititi
9° - Sicario, de Denis Villeneuve
10° - Divertida Mente, de Pete Docter

Erick Moro (Cine FAP)

1° - João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei, de Manuel Mozos
2° - Minha Mãe, de Nanni Moretti 
3° - Blackhat, de Michael Mann 
4° - Sniper Americano, de Clint Eastwood

pior: Transa 3D do noé

Giovanni Comodo (Cine FAP)

1° - João Bénard da Costa – Outros amarão as coisas que eu amei, de Manuel Mozos

2° - Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho
3° - Sniper Americano, de Clint Eastwood
4° - Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard
5° - Citizenfour, de Laura Poitras
6° - Operação Invasão 2, de Gareth Evans
7° - Expresso do Amanhã, de Joon-Ho Bong
8° - Mapas para as estrelas, de David Cronenberg
9° - Um amor a cada esquina, de Peter Bogdanovich
10° - Blackhat, de Michael Mann

Pior do ano: Jauja, de Lisandro Alonso

Leticia Weber (Cineclube da Cinemateca)

1° João Bénard da Costa, Outros amarão as coisas que amei, de Manuel Mozos
2° Sniper Americano , de Clint Eastwood
3° Últimas Conversas , de Eduardo Coutinho
4° A Visita , de M. Night Shyamalan 
5° Mia Madre, de Nanni Moretti
6° Pasolini, de Abel Ferrara
7° Blackhat, de Michael Mann
8° O Expresso do Amanhã, Bong Joon-ho

Lucas Jeison (Cine FAP)

- Adeus a linguagem, de Jean-Luc Godard
- Outros amarão as coisas que amei, Manuel Mozos
- Minha Mãe, de Nanni Moretti 
- Últimas conversas, de Eduardo Coutinho.
- La Sapienza, de Eugène  Green
- Jimmy's Hall, de Ken Loach

Miguel Haoni (Cineclube Sesi)


1° Sniper Americano, de Clint Eastwood
2° Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho
3°João Bénard da Costa – Outros amarão as coisas que eu amei, de Manuel Mozos

4° A Visita, de M. Night Shyamalan
5° Pasolini, de Abel Ferrara
6° Minha Mãe, de Nanni Moretti
7° Divertida Mente, de Pete Docter
8° Paixão Nacional, de Jandir Santin
9° Blackhat, de Michael Mann

sábado, 28 de novembro de 2015

ENTREVISTA COM ERIC ROHMER (Segunda e última parte)


O Antigo e o Novo

(...)

Cahiers - Há uma característica comum às suas críticas, nos seus filmes e nas suas emissões televisivas, que é a de um certo espírito didático.

Eric Rohmer - Não existe apenas o cinema narrativo, poético, ficcional, mas também o cinema outrora denominado documental, que agora se prefere chamar por um termo que aprecio menos por ser pretensioso: informativo. Ou seja, didático. Neste terreno, talvez haja mais a se fazer que no cinema de ficção, e me dei conta disso graças à televisão escolar. Lá, é preciso exercer uma espécie de violência sobre o próprio cinema, que, apesar de ter uma aptidão documental inata, nem sempre está capacitado para tratar de alguns temas, porque não são visuais.

Em outras palavras, é preciso “visualizar”. Sinto certa repugnância pela coisa, e ao mesmo tempo sou interessado por isso: sinto repugnância em tornar visual algo que não o é, mas quando este algo pode vir a sê-lo, é extremamente interessante. É preciso intervir por um viés, é preciso encontrar este viés. O que me interessa é conhecer pelo cinema coisas que se furtam ao conhecimento através deste meio de expressão. Seja porque me parece que a dificuldade recompensa a arte, seja porque este modo de solicitar uma realidade que se esconde permite conhecer as coisas que um olhar mais direto ou mais imediato não poderiam conhecer. Faço programas literários. Ora, a literatura e a poesia são as coisas menos filmáveis que existem. Não se poderá jamais filmar diretamente um texto, nem explicá-lo, nem ilustrá-lo. Todavia, penso que se pode existir um conhecimento, através da televisão, de tal texto, que pode ser interessante e que enriquecerá não só o cinema como a própria literatura. Isto significa que podemos nos atrair por aspectos que não são aqueles que mais atraem atualmente. Tomemos a pintura. Está claro que o cinema, quando se serve dos quadros para evocar o mundo em que foram pintados, convida-nos a uma concepção “impura” da pintura. Mas me pergunto até que ponto seria correto, hoje, considerar num retrato unicamente a arte de Ticiano e não do modelo que posou. Cada vez mais que vou ao museu, quando observo um quadro, observo aquilo que foi pintado, e isso me dá um conhecimento tão grande da pintura quanto se eu considerasse o toque do pintor. Quando filmei minha emissão sobre La Bruyère, fui ao Louvre unicamente com o intuito de saber como eram confeccionados os vasos do século XVII. Mas vi nesses quadros coisas que não teria visto se não as tivesse olhado unicamente do ponto de vista dos vasos. Não tentava distinguir os pintores entre si, nem julgar a cor, a técnica. E, todavia, isso me deu uma idéia ainda mais ampla da pintura. Por conseguinte, o cinema, inclusive na medida em que poderia parecer um pouco reacionário em relação às outras artes, um pouco anedótico, pode introduzir a um maior conhecimento das coisas.

O interesse em um cinema didático, em particular um cinema que se sirva de documentos, de obras de arte (em geral, o que mostramos do passado são as obras de arte), é o de ligar mais estreitamente a estética e as outras disciplinas. O amor pelo verdadeiro, o amor pelo belo estão ligados. Isso nos leva a descobrir o passado sob um ângulo forçosamente estético: a beleza das coisas que se mostram, ao mesmo tempo que a arte que se introduz a si mesma na forma de mostrá-las. No meu La Bruyère, o fato de buscar as coisas que são visuais, físicas, sobre as personagens, fez-me interessar por “características” que não são os aspectos mais evidentes e destacados: em particular, o que poderia se chamar o lado naturalista, e quase fisiológico, de sua descrição. A atitude corporal do homem não é a coisa que mais surpreende na sua leitura. Interessa mais as notações de ordem puramente psicológica ou de ordem social. Representar essas personagens na tela vos obriga a descobrir coisas que existem e que sem isso não poderiam ser notadas de outra forma. O mesmo ocorre com Perceval, que é o que fiz de mais simples, de mais escolar, onde pude situar paralelamente a descrição dos combates que se admira na poesia da Idade Média e as miniaturas, que são uma arte decorativa extraordinária, coisas que em geral não foram percebidas por... Por quem? Porque as pessoas que se ocupam da literatura não se interessam muito pela ilustração e as que se interessam pela ilustração não se interessam pela literatura. Existe no século XII uma arte extremamente importante e que inclusive é uma das maiores, a arte dos trovadores, a arte da civilização occitana. Se emprego a palavra arte é porque significa a fusão de duas atividades precisas: poesia e música. A música era composta pelo poeta. O poeta era seu próprio músico. Mas as pessoas que estudam o poeta não pensam em absoluto no músico, e, na literatura, considerava-se esta poesia como bastante fria, na medida em que não se ouve cantada. Por outro lado, os que se interessam pela música não conhecem essa língua e, por conseguinte, escutam, mas não sabem o que ela significa. Bem, poder-se-ia através deste filme gostar ao mesmo tempo da poesia e da música. O cinema é uma espécie de conglomerado das diversas artes. Permite estabelecer uma ponte entre elas, e creio que isso é uma coisa muito importante, inclusive a um nível muito humilde e pedagógico.

Cahiers - Por que não utiliza música nos filmes?

Eric Rohmer - Eu repreendo muitos filmes, principalmente os filmes “poéticos”, de serem regalados pela música, freqüentemente banal, e de forma alguma necessária. Não vejo a que a música possa servir, senão para ajustar um filme que é ruim. Um bom filme pode prescindir dela. E além do mais, não é moderno, é uma convenção que data do cinema mudo, quando se tocava piano na sala. O fato de associar uma música qualquer às folhas das árvores, às nuvens que passam, ou a alguém que abre sua porta, é a pior das convenções, um estágio completamente superado. Nos meus Contos Morais, só havia música real: quando as personagens ouvem discos ou rádio. Não existe absolutamente nenhuma outra música: nem sequer nos créditos.

Nas minhas emissões da televisão escolar, a música possui antes de tudo uma função documental, assim como um quadro, uma estampa, que permitem situar uma época, conhecê-la. Eu só a permito tocar durante os silêncios do documentário. Podem, é claro, existir algumas exceções à regra. Ocorre-me às vezes de deixar a música tocar sob o texto. Não sou completamente sectário. É evidente que, num filme sobre documentos, é necessário buscar certo prazer, e que para tanto possamos recorrer à música. Mas, sobre um discurso verdadeiramente abstrato, digamos de matemática, aborrecer-me-ia profundamente ouvir música. Efetivamente, identifico a música, reconheço-a e, ao fazê-lo, não escuto mais o comentário; inversamente, se eu dedico toda a minha atenção ao comentário, já não ouço a música. É uma das duas censuras que faria a muitos documentários, a outra relacionada ao fato de que jamais se ouve nenhum ruído, quando atualmente seria tão fácil de registrar um som.

Cahiers - Teus Contos Morais parecem ligados uns aos outros um pouco à maneira das novelas de uma mesma coleção, e mesmo de capítulos de um romance. Por outro lado, dão a impressão de se referir constantemente a esse gênero literário. Todavia, você escreveu que o cinema estava à frente da literatura...

Eric Rohmer - Se o escrevi, equivoquei-me. O que creio é que o cinema não tem por que se preocupar com a literatura. Dito isto, é possível partir de uma obra escrita. Que ela seja antiga ou moderna não tem verdadeiramente nenhuma importância, visto que o essencial é fazer um cinema moderno. Tudo que é bom é necessariamente moderno na medida em que não se parece com o que foi feito anteriormente. Eu prediquei certamente um cinema não-literário, e realizei os Contos Morais que são descaradamente literários, se apenas pela medida em que o comentário desempenha um papel importante. Gosto de mostrar no cinema coisas que parecem contrariar a transcrição cinematográfica, expressar sentimentos que não são filmáveis, porque estão profundamente incrustados na consciência. É uma relação de si mesmo consigo mesmo que eu deliberadamente queria mostrar nos Contos Morais. É por esse motivo que estão na primeira pessoa e que possuem um comentário. Tratam do recuo que alguém pode tomar em relação aos seus gostos, desejos, sentimentos, em relação a si mesmo. A personagem fala de si e se julga; ela é filmada enquanto se julga. Portanto, meus Contos Morais não são literários, são adaptações cinematográficas de obras literárias, e, quando as rodo, tenho a nítida impressão de ser o metteur en scène de uma obra preexistente. Nisto, estaria próximo a Leenhardt. Bazin dizia que Les dernières vacances era um filme de um romance que não havia sido escrito.

Cahiers - Desta forma, seu cinema é ao mesmo tempo introspectivo e objetivo: você mostra alguém que se coloca questões que habitam o fundo de si mesmo...

Eric Rohmer - Eis o porquê. O que me irrita, o que não gosto no cinema moderno, é o fato de se reduzir as personagens a seu comportamento, e de pensar que o cinema não é mais que uma arte do comportamento. Na verdade, devemos mostrar o que está além do comportamento, ainda que sabendo que só se pode mostrar o comportamento. Gosto que o homem seja livre e responsável. Na maior parte dos filmes, é prisioneiro das circunstâncias, da sociedade etc. Não o vemos no exercício de sua liberdade. Liberdade que talvez seja ilusória, mas que existe mesmo desta forma. Eis o que me interessa, eis o que evidentemente deve contrariar o cinema, arte física, materialista, não somente empírica, mas incluso empirista, já que o homem só se define por aquilo que faz. Creio que o gênio do cinema resida na possibilidade de ir-se além deste limite e descobrir outra coisa. Talvez os Contos Morais, que na verdade constituem um único filme, permitiram-me percorrer este caminho, de ir além das aparências.

Cahiers - Algo que coincide com o que Pasolini disse dos grandes momentos do cinema moderno: ultrapassar a limitação materialista do cinema para apresentar um certo caráter onírico da existência...

Eric Rohmer - A palavra “onírico” me interessa particularmente na medida em que meus Contos Morais têm certamente um lado onírico. Todos são sonhos. Os sonhos são construídos pelo cérebro, que é uma máquina eletrônica. Toda ficção é sonho.

Cahiers - Mas como resolver este paradoxo: um cinema que seria a um tempo de comportamento e de sonho?

Eric Rohmer - Não é um paradoxo. Só se pode mostrar o comportamento, e é mostrando-o que se pode ir além. Não posso aceitar a idéia de um cinema que fora outra coisa que não um cinema do comportamento, que não fora objetivo. O estilo subjetivo no cinema me parece uma heresia. Uma heresia inteiramente condenável e pela qual não posso sentir piedade. Murnau ou Hitchcock só recorreram a ela por coquetismo e apenas de passagem ao longo do filme. Resulta-me impossível confundir realidade e imagem mental. Não se pode confundir a torre Eiffel com a imagem que se tem dela. Ou em tal caso temos uma alucinação. Isso é outra coisa, é concebível mostrar alucinações. Mas a torre Eiffel tal como a imaginamos se distingue obrigatoriamente da torre Eiffel tal como a percebemos. É o que notou Alain a propósito do Pantheon, é lógico e evidente. A imagem mental é essencialmente diferente da imagem objetiva. Eu não vejo o que imagino, eu construo. Tudo que pudesse encontrar na imagem mental, haveria posto eu mesmo. Ora, se projeto algo sobre a tela, isso me é dado, tudo procede do objeto, nada de mim. O espectador, portanto, não poderá de nenhuma maneira identificar uma imagem que seria uma imagem mental da heroína a uma imagem objetiva do que ela vê. É absolutamente impossível. Todavia, em alguns filmes, não se sabe se o que é apresentado é objetivo ou subjetivo. Por conseguinte, é necessariamente falso, já que na vida uma tal questão não se põe.

Cahiers - Existe todavia o caso de O Deserto Vermelho, onde a realidade é apresentada de maneira objetiva sem deixar de ser aquilo que a heroína vê.

Eric Rohmer - Tomemos o exemplo de Marienbad. Há planos que supõem serem objetivos e outros que supõem serem subjetivos. Uns supõem serem o mundo visto por uma personagem, outros o mundo visto pelo espectador exterior a esta personagem. Eu, como espectador, coloco tudo no mesmo plano. No presente caso, isso não tem importância alguma, na medida em que se trata de uma fantasia poética que não conta verdadeiramente uma história. Mas se a intenção é fazer-me acreditar nessa subjetividade, então não, já não sigo o jogo. Isso não me acrescenta nada e me parece de todo modo desinteressante de se fazer. Inclusive, é extremamente empobrecedor para o cinema, pois é muito mais interessante suscitar o invisível a partir do visível do que intentar inutilmente visualizar o invisível. É uma mentira ou um truque. Não é moderno, é arcaico. No lugar de um procedimento parecido, melhor seria recorrer à palavra. Se eu penso na torre Eiffel, eu o digo. No meu terceiro conto moral, haverá um sonho. Irei, portanto, mostrar a personagem dormindo e descrever o sonho no comentário. Observem que é possível mostrar um sonho, mas prefiro não fazê-lo. Creio que pode ser muito mais surpreendente partir da personagem enquanto dorme do que introduzir-me artificialmente em seu interior. Seria muito fácil escrever meus Contos Morais num estilo subjetivo, já que são reflexões sobre o passado. Ao final de A Carreira de Suzanne, o narrador muda de idéia sobre Suzanne ao vê-la abraçada a um novo rapaz. Compreende então quais eram as suas relações com a primeira amante e porque ela lhe agradava. Poderia expressar isto através de um salto para trás. Poderia ter sobreposto duas visões eróticas dessa moça, uma em que aparecesse feia, outra em que aparecesse bonita, ao final. Preferi manter-me objetivo. O ponto de vista que se tem sobre ela é sempre o mesmo e a distinção só é expressa pelo comentário. Vocês me dirão que isto é literatura, eu responderei que não. O comentário não é uma coisa impura, seria se não tivesse nenhuma relação com a imagem. Quando profundamente ligado a ela, obtém-se, visto que a palavra e a imagem estão estreitamente unidas pelo fato único do cinema ser falado, um conjunto palavra-imagem onde cada pólo ilumina o outro. O conjunto é puro na medida em que só o cinema é capaz dele. Somente o cinema é capaz de unir a palavra e a representação visível do mundo.

Cahiers - Essa pureza cinematográfica deve ser compreendida em relação às outras artes?

Eric Rohmer - Sim, o cinema deve dirigir-se à busca de uma certa pureza. Se dissessem que em meus filmes recorro à literatura, essa acusação me afetaria. Eu me defenderia. Se a ela recorro é somente para utilizá-la de outra maneira que nas obras literárias.

Cahiers - Mas o cinema, arte visual, sonora, literária, não é impuro por definição?

Eric Rohmer - É um erro conceber a pureza do cinema limitando-a a um de seus aspectos. Pensar que o cinema é puro unicamente porque é imagem é tão estúpido como crê-lo puro unicamente porque é som. A imagem não é mais pura que o som ou que outra coisa, mas, na união de diferentes aspectos, creio que possa se manifestar uma pureza própria do cinema. O que chamaria de impuro é uma certa maneira de concebê-lo que impede o descobrimento de suas próprias possibilidades e que, ao invés de seguir um caminho que só a ele cabe percorrer, avança por caminhos emprestados das outras artes. O que me incomoda acima de tudo é um cinema que se pretende excessivamente plástico, na medida em que essa plástica está inspirada na concepção plástica da pintura. O cinema é uma arte na qual a organização das formas é muito importante, mas é necessário que ela seja feita com os meios próprios ao cinema e não com outros, decalcados da pintura. Do mesmo modo, o cinema é uma arte dramática, mas é preciso evitar que essa dramaturgia se inspire na dramaturgia teatral. É igualmente uma arte literária, mas convém que seus méritos não residam unicamente no roteiro e nos diálogos. O fato de unir estreitamente a palavra à imagem cria um estilo puramente cinematográfico. Contrariamente, fazer com que sejam ditas certas coisas pelos atores, quando bem poderiam ser ditas num comentário, é algo que se torna teatral. Parece-me muito menos cinematográfico botar na boca de alguém algo que informe o espectador sobre determinado ponto do que fazê-lo num comentário. É menos artificial. Um problema análogo surgiu quanto ao emprego de legendas no cinema mudo. Eles também liberaram a imagem de uma função, a de significar. A imagem não é feita para significar, mas para mostrar. Seu papel não é o de dizer que alguém é algo, mas o de mostrar como ele é, o que é infinitamente mais difícil. Para significar, existe um instrumento excelente: a linguagem falada. Empregamo-la. Trata-se de expressar através de imagens o que poderia ser dito em duas palavras, é trabalho perdido.

Cahiers - Mas mostrar também é significar...

Eric Rohmer - Sim, ao mostrar se significa, mas não há por que significar sem mostrar. A significação deve vir por acréscimo. Nosso desígnio é mostrar. A significação deve ser concebida num nível estilístico e não gramatical, ou então num nível metafórico, enfim, num sentido mais amplo. O cinema simbólico é o que há de pior. De vez em quando se vêem filmes atrasadíssimos nos quais a imagem quer desempenhar o papel exato da palavra ou da frase. Isso está completamente fora de moda. Não insistamos mais.

Cahiers - Você havia defendido Bergman. Por conseguinte, não lhe faz a crítica de alguns que lhe tomam por um cineasta “literário”, que só se utiliza de “símbolos”...

Eric Rohmer - Não mudei de opinião. Não retifico de forma alguma minha obra de crítico. Sigo defendendo as pessoas que defendi, e sigo atacando as pessoas que atacava. Portanto, sigo pensando o mesmo que disse sobre Bergman. Gosto muito de seu trabalho. De todo modo, não tenho nenhum apriorismo. Ou seja, em relação ao cinema subjetivo que acabo de rejeitar, não está fora de questão que algum dia alguém muito bom acabe por me fazer admiti-lo.

Cahiers - Portanto, segue completamente fiel à política dos autores?

Eric Rohmer - Sim, não mudei de opinião.

Cahiers - Segue crendo na mise en scène?

Eric Rohmer - É possível dizer, como fez Godard, que a mise en scène não existe. Se for considerado que a mise en scène é a arte do cinema, a operação cinematográfica como tal, neste caso, negar sua existência é o mesmo que negar que o cinema seja uma arte e o cineasta um artista. Agora, se a mise en scène for concebida como uma técnica finalmente muito próxima da técnica teatral, ou daquilo que na profissão se chama de “realização”, a ação de fazer valer, uma arte da execução, então pode-se muito bem pretender que ela não existe. Se, pessoalmente, sou fiel ao termo de mise en scène, é que não entendo por ele uma realização, mas uma concepção: a arte de conceber um filme. Essa concepção é posteriormente realizada pela equipe colocada à nossa disposição e que é composta por um operador, um editor etc. Poder-se-ia efetuar algo sem o montador e o operador, mas também se pode confiar neles sem deixar por causa disso de ser um metteur en scène. É por esse motivo que negar a mise en scène tal como, bem entendido, ela é concebida nos Cahiers, seria o mesmo que negar o cinema. Eu não creio que o melhor diálogo do mundo seja suficiente para se fazer um bom filme. E, todavia, a mise en scène pode estar inclusa nele de modo que o trabalho no set se torne inútil. Isso não quer dizer que a mise en scène não exista; isso quer dizer, no caso, que o roteiro já era mise en scène. E se é verdadeiro que se pode deixar de assistir à rodagem das tomadas, também é certo dizer igualmente que a mise en scène pode ser feita na montagem.

Cahiers - Nos seus artigos, especialmente os mais antigos, seu posicionamento não era apenas estético, mas também político.

Eric Rohmer - Sim. E não menos conservadora. Hoje, lamento. A política é inútil. Ela constituiria um desserviço à minha causa. Mas a situação não era a mesma em 1950. Releiam L’Écran français: o cinema americano encontrava-se condenado em bloco. Para denunciar a impostura da esquerda, era necessário pender a balança à direita, corrigir um excesso mediante outro excesso. Mas, há quase dez anos, a crítica de cinema na França lançou a política às urtigas. Isso fez com que ela seja a melhor do mundo.

Dito isto, nada impede que um crítico ou um cineasta tenham suas próprias convicções. Atualmente, sou bastante indiferente à política - tomada ao menos em seu sentido estrito -, mas eu não mudei. Eu não sei se sou de direita, mas o que é certo, em todo caso, é que não sou de esquerda. Por que eu haveria de ser de esquerda? Por qual motivo? O que me obriga a isso? Sou livre, ao que me parece! Todavia, as pessoas não o são. Hoje, deve-se primeiro fazer seu ato de fé na esquerda, após o qual tudo é permitido.

A esquerda não tem, que eu saiba, o monopólio da verdade e da justiça. Eu também sou - quem não o é? - partidário da paz, da liberdade, da extinção da pobreza, do respeito às minorias. Mas não chamo a isso ser de esquerda. Ser de esquerda é aprovar a política de alguns homens, partidos, ou verdadeiros regimes que assim se denominam, e que não hesitam em praticar, quando lhes convêm, a ditadura, a mentira, a violência, o favoritismo, o obscurantismo, o terrorismo, o militarismo, o belicismo, o racismo, o colonialismo, o genocídio. Por outro lado, equivoco-me em seguir falando disto. Todo mundo sabe que essas velhas categorias de direita e esquerda já não significam nada hoje em dia - se é que alguma vez tenham significado algo -, ao menos na França entre os “intelectuais”.

Nada nos determina politicamente de maneira profunda, nem nossa origem, nem nossa fortuna, nem nossas necessidades, nem nossa profissão, nem sequer nossas crenças religiosas ou filosóficas. O que às vezes nos faz passar de um extremo ao outro é a casualidade, uma leitura, uma frase, uma mulher, um amigo, o amor pela novidade ou o senso da oportunidade. Eu os vi mudar de idéias mais freqüentemente que de sobretudo. Era o único luxo deles. Um luxo que nada custa. Enquanto que um sobretudo...

E depois por que aquele que escreve, aquele que pinta ou aquele que filma teria opiniões mais justas sobre o governo da sociedade do que aqueles que estão encarregados de cumprir suas necessidades, e não, como nós, os seus prazeres? Cada vez que um artista se mistura com a política, em vez de aportar o que seria justo esperar dele, a saber, uma visão mais serena, mais vasta, mais conciliadora das coisas, ele se encerra na posição mais limitada, mais tacanha, mais excessiva. Incita o encarceramento, o massacre, a destruição, ignora o perdão, a tolerância, o respeito pelo adversário. É normal, como dizia Platão: aquele que nasce para exaltar as paixões dos homens não pode ser mais que um medíocre moderador.

Cahiers - Você acha, então, que o cineasta deve mostrar-se indiferente ao seu tempo?

Eric Rohmer - Não. Em absoluto. Muito pelo contrário. Eu diria inclusive que pode e que deve se engajar, mas não politicamente no sentido estrito e tradicional do termo. O que a arte oferece aos homens? O prazer. É à organização deste prazer que o artista deveria se consagrar. E como nós entramos, diz-se, na era do ócio, talvez seja possível achar aí um papel importante, apaixonante e completamente à sua altura.

Mas, aqui novamente, eu não lhe darei carta branca. Nada de mais iconoclasta e ao mesmo tempo pior profeta que um criador. Permitam-me abrir um pequeno parêntese que não está demasiado distante do que digo, e que provará que o amor pelo antigo e o amor pelo novo não são - longe disso - incompatíveis. O sentido do passado, o gosto pela história, são características essenciais da nossa época. Há algum tempo disse em Le Celluloïd et le marbre[1]. Não só o passado alimenta parte dos ócios do homem, mas também seu trabalho: a indústria do livro, do disco, da rádio, da televisão (e portanto as do papel, da matéria plástica, da eletrônica), mas também a do automóvel e do avião. Se não, por que se toma o carro ou o avião? Para visitar os Castelos do Vale do Loire ou as Pirâmides...

Gosto de Paris e queria criar algo para sua salvaguarda. Mas o fato de Jess Hahn, em O Signo do Leão, caminhar pelas margens do Sena certamente não impede de substitui-las por uma rodovia, que não somente desfigurará a margem direita como não servirá estritamente para nada, uma vez que o trajeto mais curto de Boulogne a Vincennes não é o cais - que faz uma curva - mas o anel! Em Métamorphoses du paysage industrielle, em Nadja, mostro coisas que a meus olhos devem ser salvas. Só que, é claro, não possuo uma audiência, mas outros podem fazer como eu e a união faz a força. Uma coisa me chocou em Le Corbusier. Lamentava não ter construído no coração das cidades. Estranha idéia! Godard deplora que seus filmes não sejam projetados na França e que não se tire Molière do repertório? Há um lugar para tudo, e espaço é o que menos falta. Quanto mais se respeita o passado, mais se abre o caminho para o moderno. O extremo conservadorismo e o extremo progressismo são irmãos. Se as casas de Paris forem demolidas de pouco em pouco, se as ruas forem gradualmente aplainadas, nunca será construído nada verdadeiramente novo. Ao contrário, se fosse absolutamente proibido destruir o que quer que seja, se colocassem um freio na hipertrofia do subúrbio, talvez chegasse a hora, como dizia Alphonse Allais, de construir as cidades no campo. Parece-me muito mais sensato, normal, racional. Vocês não acham?

Quero dizer que se vêem hoje tantas coisas absurdas que a idéia mais louca será menos louca que tudo o que se diz, se faz ou se projeta neste momento. E o que há de mais louco, mais custoso, mais difícil de se fazer? Aplastar aglomerações concebidas à escala de pedestres e de uma população restrita pelo gás do escapamento e o cimento dos grandes conjuntos, ou então fazer surgir ex nihilo, à maneira dos romanos e dos pioneiros do Oeste, uma cidade nova (não qualquer novo Sarcelles nem sequer uma Brasília, mas uma cidade viva, imensa, industrial, alegre, consagrada à ciência, aos jogos, aos esportes, às festas, aos congressos, ao ócio), fazê-la surgir em alguma parte do deserto francês que não seja, no entanto, uma Tebaida, sobre a costa de las Landas, por exemplo, e que nos dará esta segunda metrópole (Los Angeles, Milão, Barcelona) que tanta falta nos faz.

Tranqüilizem-se, não tenho intenção de ocupar o posto de comissário geral do Planejamento, mas por que qualquer francês não deveria ter suas idéias, mesmo que idiotas, sobre o planejamento territorial quando as tem sobre a reforma eleitoral ou o conflito indo-paquistanês? Curiosamente, são as pessoas que exercem as profissões artísticas as que se mostram mais indiferentes a este problema, enquanto se lançam a assinar petições e apoiar partidos políticos. Interessam-se pelo social - que não é realmente de sua competência - e não dão a mínima, aparentemente, ao cenário de sua vida. Não percebem que a existência do cenário é ligada a coisas tão claramente vitais como o ar que respiramos, a terra que nos alimenta, a água que bebemos. De que nos servirá sermos iguais e livres se a água tornou-se intragável, a terra estéril, o ar envenenado? É ótimo que cada trabalhador possa passar, caso queira, um mês a cada ano a bordo do mar. Mas pelo menos que o mar seja mar e não betume.

Não sou pessimista. Quero dizer apenas que estes problemas, que certamente encontrarão uma solução, são muito mais atuais e importantes que os da política clássica. Quero dizer também que oferecem ao cineasta um campo muito mais vasto e bem mais ao seu alcance. Um filme político, especialmente na França, só pode ser uma exceção. Nada me irrita mais do que ver alguns pagarem de maneira grotesca seu tributo à política por meio de alguma alusão incongruente e forçada à atualidade. O cenário da vida, pelo contrário, nenhuma arte pode mostrá-lo melhor que o cinema. O único problema - problema maiúsculo - é que na França não se encontra um cenário verdadeiramente moderno, e nesta matéria só podemos invejar os americanos e os italianos. Mas há, além dos filmes de ficção, um ramo muito importante - embora se fale pouco dele - e que espera apenas o nosso “engajamento”. É o filme de informação, financiado pelo Estado ou pelas empresas e que trata principalmente de todos esses problemas do desenvolvimento econômico, do acondicionamento, da construção, no qual conviria ao cineasta intervir de forma mais ativa, mais séria, mais apaixonada que o habitual. Eu sei que é um trabalho encomendado e que não se é livre, mas enfim, tem-se visto filmes anti-militaristas encomendados pelo Ministério do Exército. O que me surpreende e me deixa triste é que as pessoas que tratam esse tipo de assunto parecem se desinteressar pelos méritos da questão, colocando-se sem pudor ao serviço da tecnocracia e dos slogans mais estúpidos. Ao invés de se reconsiderar a coisa que é dada a tratar, de aportar sobre ela um olhar novo, não enxergam nisso mais que uma oportunidade para um exercício de estilo. Não será pelos seus travellings ou pelos seus enquadramentos esmerados que merecerão o nome de artistas: é pela vontade de tratar o tema e de sobrepor o ponto de vista da arte ao da técnica.

Há uma espécie de renúncia do cineasta frente à evolução do mundo moderno, que é muito mais censurável que o desinteresse pela política. Todos tentam tirar uma vantagem do jogo e ninguém parece minimamente afetado pela infinita platitude, infinita vulgaridade - eu sei, há exceções - da imprensa, do rádio, da televisão, do cinema, que lhe serve, é certo, de sustentação. É muito bom às vezes pertencer ao seu tempo. Mas também é necessário saber ir contra a corrente. A arte não é um reflexo do seu tempo: ela o precede. Não deve seguir os gostos do público, mas ultrapassá-los. Deve permanecer surda às estatísticas e aos gráficos. Deve, sobretudo, afrontar como a uma praga a publicidade, mesmo a mais inteligente. A publicidade é o vírus número um do cinema. Ela falseia tudo, deteriora tudo, inclusive o prazer do espectador, o juízo dos críticos. É preciso negar-se a fazer parte do seu jogo. Dir-se-á que é impossível ou que a única saída é rodar filmes de amador. Bom, é o que faço, ou quase.

Nota:

[1] Referência a um famoso e polêmico artigo de Eric Rohmer, publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma[n.d.t.].

(Declarações recolhidas ao magnetofone por Jean-Claude Biette, Jacques Bontemps e Jean-Louis Comolli.)

(Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965, pp. 32-43+56-59. Traduzido por Felipe Medeiros
e publicado na íntegra em http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/rohmer.htm) 

Cine FAP: "Lobo Solitário II: o Andarilho do Rio Sanzu", de Kenji Misumi

 No ciclo Cinema Japonês Moderno, que ainda contará com Cops vs Tugs de Kinji Fukasaku e Saylor Suit and Machine Gun, de Shinji Sômai.



Segundo filme da série baseada no mangá Lone Wolf and Cub. Ogami Itto, assassino de aluguel, acompanhado de seu filho pequeno Daigoro, enfrenta um grupo de mulheres ninja a serviço do clã Yagyu e precisa assassinar um traidor que planeja vender os segredos de seu clã ao shogunato.

Serviço:

dia 30/11 (segunda-feira)
às 19 hs
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Cineclube Sesi: "As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle" de Eric Rohmer

Nesta quinta, dia 26, o Cineclube Sesi exibe "As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle" encerrando as atividades de 2015.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta: 
"As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle" de Eric Rohmer 

Reinette (Joëlle Miquel) e Mirabelle (Jessica Forde) são duas belas jovens, com a 1ª morando no campo e a 2ª em Paris. Elas se encontram durante as férias de Mirabelle no campo, quando Reinette ajuda a consertar sua bicicleta e lhe mostra as belezas locais. As duas se tornam tão amigas que decidem dividir um apartamento em Paris, já que em breve iniciarão os estudos na faculdade. Porém logo Reinette se mostra simples e otimista, enquanto que Mirabelle é preguiçosa e pessimista. Esta diferença de temperamentos cria conflitos na casa que dividem.

Serviço:
dia 26/11 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi
Produção: Atalante

sábado, 21 de novembro de 2015

AMARGO REENCONTRO


por José Oliveira


Antes de chegarmos à metade de Inherent Vice, o livro que Thomas Pynchon escreveu sobre a Los Angeles de finais dos anos sessenta e respectiva entrada nos badalados setenta, o narrador põe-se a pensar: O que seria « caminhar sobre as águas » senão a maneira bíblica de dizer surfar? Logo de rajada entramos em Big Wednesday, o filme que John Milius realizou em 1978 e que é, por muito que eu possa divagar, um dos mais belos gritos sobre a amizade acima de todas as coisas que eu já escutei, de proporções e reverberações assustadoras e permanentes até aos dias de hoje, para um sempre. Não ao fato e à gravata e aos mentirosos bons modos da chamada “vida adulta”, tudo por uma conservação dos belos estados, valores e sentimentos iniciáticos. Tudo por esses alvos leites e jardins da infância, ventres de uma Mãe, estelares olhares. Entramos logo na água e no seu movimento libertador, libertador porque perigoso, surf como promessa de totalidade, modo de ser e, como diz Matt já nas Ondas do Oeste, “Só faço surf para estar com os amigos”. Entramos e entram também rufares bélicos na banda-sonora, a rebentarem contra as ondas, a misturarem-se, a brigarem, e assim mesmo o também Nietzschiano Milius delineia uma dimensão e as forças que se degladiarão pelo resto dessa época que o filme abarca, o sagrado das relações entre os homens que se descobre íntegro pelo olhar mais catártico através desse templo à medida das mitologias gregas em que avistam as águas, e o fatal deslizar para a dor por causa do tempo que não perdoa.

Matt Johnson é um dos três amigos que pela fidelidade fizeram a sua revolução. Os outros são Leroy e Jack. E se cada um tem que descer as divinas escadas sozinho, mesmo que se bêbado, triste, podre, o que for, se cada um está sempre sozinho e se esse é o teste capital de qualquer surfista, agüentar-se à bronca sem depender de nada além de si mesmo, num dos planos mais significativos do filme os três equilibram-se e abraçam-se e amam-se em cima de uma só prancha, quais três mosqueteiros e o seu lema. E por isso, por essa consciência da dureza da existência e dessa verdade da união afetiva, eles foram de fato os grandes nomes, os reis, e aquela a singular história deles no lugar deles. O apelidado fascista Milius volve-se sempre o mais generoso e o mais sintonizado com o respeito pelo eu. E a Nietzsche não irei mais.

Primeiro as Ondas do Sul de 1962, os ventos de Santa Ana e as brisas dormentes do verão Californiano. Iremos às do Oeste no outono de 1965, naturalmente mais frio e agreste e pintado a melancólicas cores. 1968 é o ano do encontro com o Vice de Pynchon, completando ambas as obras um vasto painel sociologicamente marginal, norte e inverno, gelo, risco, solidão. Perfurá-las, às malditas, só de longe. Finalmente, ‘74, as Grandes Ondas, o vento que só pode ser o sopro de Deus. E tal cronologia serve menos para estruturar o dramatismo da grande e perene questão, essa da fugidia dança dos anos, e sim para ziguezaguearmos pelas cristas torturadoras da perdição do homem agulha no palheiro absolvido pelo desconhecido infinito buraco. No princípio, todos juntos. Guitarradas Fordianas à luz e de volta de uma fogueira, porradas igualmente vindas do taberneiro irlandês combinadas com bailes. Violência e confraternização, a história de tudo e de todos. Atitudes resolutamente humanas e absoluto. A juventude não como mera etapa rumo a um próximo nível, mas, tudo. Ainda se largam noivas na beira da estrada se os irmãos estiverem mal, parte-se a casa toda porque sim. Mas já há quem queira casamentos e divórcios e contas para pagar...

Nos outonos os amarelos acastanhados, empalidece-se. De Oeste, agruras e desertos. Pedras nos sapatos e gripanços. Alianças já se enroscaram por alheios dedos e inseparáveis amigos de outrora já se vêem à distância, demoram-se a reconhecer, trocam socos. Matt, o que já foi a estrela maior do surf já o não quer ser, assume-se um falhado, um merda, e ao invés de pegar as águas pelos cornos decide tourear carros e provocar acidentes. Elos básicos quebraram-se, filhos nasceram, uns querem crescer, outros não. Descem e sobem o templo curvados, um peso qualquer secular e moderno que sobre eles se abate. Já nem o surf parece salvar e a guerra estoura e chama-os. Tempos de Vietnam, tempos de ver descer funéreos retângulos à terra. Uns ainda tentam mais desgostosamente do que comicamente escapar às bombas, outros abrem o peito às balas. Jack vai a ela e antes dela ganha coragem sobre a prancha. Só ela ainda injeta força. Matt fica-se pelos cemitérios dos regressados. ‘68, velamentos, névoas, solidões lacustres. Drogas, hippies, misticismos. Charles Manson. E há que ser leal e ir contra vegans e karmas, nem com tudo se convive - é a mesma moral dos socos colaterais e da violência anárquica e essencial de Conan, o Bárbaro, o primeiro assalto de John Dillinger, os vôos rasantes e ofensivas por conta própria em Intruder A-6 - Um Vôo para o Inferno. Há mais do que guerras armadas para combater e um crepúsculo esvai-se definitivamente. Não dá para pensar em Big Wednesday sem pensar na cena central dos três amigos a beberem e a falarem aos de lá de baixo circundados pelas campas alinhadas, acontece logo depois de um deles ter voltado do oriente e de ter ido em primeiro lugar à praia e seguidamente encontrado mulheres desejadas em braços de outros. Cena que se inaugura em lua cheia nublada a tons azuis, negros e inevitáveis cinzas e se fecha com um caminhar cambaleante de costas em que os temas da seriedade e dos impostos voltam sem que se acredite. Poucas vezes o cinema se deixou impregnar de tamanho desamparo e perda mas ao mesmo tempo de algo que julgamos que nem a crua morte irá vencer.

Momento para vos falar de Bear, personagem tão comovente e de olhar tão cintilante, profundo, bondoso e despido como agora só me lembro do Sam the Lion que também tão fugazmente passou pelo A Última Sessão de Cinema de Bogdanovich. É ele que de adulto condensa todas as ânsias, aflições, dúvidas, contradições de todos. Ele que também todos os tempos, fluxos e estações citadas ilude. A sua impossível resolução ou equilíbrio. Ainda nos inícios dos sessenta era o veterano das ondas que no pontão fabricava as melhores pranchas e contava e se calhar até mitificava um pouco as histórias que valiam a pena. Depois rendeu-se à estabilidade e às lojas de puro comércio e brilho, luxos e esposa. Nada contra, mas contra a natureza própria poucos conseguiram ir e regressa ao habitat natural dos grãos e das gotas e já prefere os buracos escuros aos quentes dos fogões e das famílias. Acaba irônico ou orgulhoso ou conformado a admitir-se garbageman e a admirar os seus miúdos.

Porque se por ‘74 os ventos já são outros e as suas direções diversas, o templo encontra-se anacrônico, proibido e estilhaçado, os ídolos parecidos à nova década surfam sobretudo ácidos, Matt é como Bear o exemplo da contradição ambulante, da anomalia oficial, por isso só pode ousar um radical gesto final sobre declínios que ficará para sempre como a redenção dos que amaram algo imensamente mais do que é permitido pela intelligentzia e assim mesmo viram vários fogos e vários infernos. Com essas ondas terminais, céu + chama, abismos bíblicos, inauditas vociferações, uma vida inteira justificada. Ainda como no princípio alguém de boca aberta oferece o veículo mor a Matt, mas este, só desinteresse e só comoção, passa o testemunho, permite herdeiros. Ainda os três como cola, proibidas despedidas, proibidas nostalgias mesmo que sem escape, a vida é o que é e os degraus de entrada e saída ainda se agüentam de pé. Surfersrule! grafitado, pôr-do-sol queimante de até já, Wewerefriendsthat rode thewaves / The time wespent in ouryoungerdays / Wereall in fun, oh thegood times thatwehad..., elementos do mesmo ADN e do mesmo nexo. Sem rendição.

Postura hawksiana, outro “oneofours” da santíssima trindade do Cinema Americano, ir para a frente a pé ou rio acima ao jeito de cada qual mesmo sem um dedo ou com fraturas expostas, subir montanhas e trepar ondas e matar o diabo, bem visto. “A mudança não está na praia, nas rochas, nem nas ondas. Está nas pessoas”. Foi o que António Reis nos mostrou, essa cosmologia mútua, e que Milius filmou classicamente com coração de guerreiro e mãos de filigrana, num retorno à fonte primeira que representou em plena década de setenta e seus respectivos neos-qualquer coisa, uma purificação em ingênuas águas. Tudo o que Joaquim Sapinho não entendeu pelas ondas da Caparica, nesse filme todo ele falso como Judas porque assente numa fé mentirosa de alguém que nem um segundo acredita em algo superior e que por isso se refugia covardemente em esoterismos de pacotilha ou luzes pestilentas. Um olhar de uma velhinha na igreja da minha terra e a farsa de “Deste lado da Ressureição” vinha ao de cima. Questão de criação do mundo, olhar e escala conforme, sintonia em pacto mortal, honestidade. Milius como Ford. Olhos nos olhos.

(janeiro 2013)
Texto original: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO5/bigwednesday.htm

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Cine FAP: "A Marca do Assassino", de Seijun Suzuki

O Cine FAP prossegue com a mostra de Cinema Japonês Moderno com A Marca do Assassino (Koroshi no rakuin, 1967), de Seijun Suzuki.


Depois de fracassar em sua última missão, um matador de aluguel de terceira classe com fetiche por arroz fervente se torna o alvo de outro assassino.

Serviço:

dia 23/11 (segunda-feira)
às 19 hs
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA


Realização: Cine FAP
Apoio: Coletivo Atalante

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A borboleta de Griffith, Por Jean-Claude Biette


Há quatro ou cinco momentos no Raio verde de Eric Rohmer que ultrapassam a fatura de conjunto do filme e se inscrevem na memória como impressões frescas e novas vindas do mundo e de sua realidade. O sucesso “comercial” e de estimação atingido pelos filmes de Rohmer na França e no plano internacional é o resultado da obstinação de um homem e da lógica de cineasta neste homem. O sucesso quase constante de seus filmes vem do rigor e inteligência com os quais o assunto é desenvolvido, examinado e distribuído entre os personagens. O ritmo dos diálogos, da ação e dos planos, qualquer que seja o interesse que encontremos em suas ficções ( cujo exotismo pode ser tão manifesto quanto o de certas aventuras dos filmes de Howard Hawks) é o que participa ativamente na materialização de um charme único que assombra o próprio princípio das imagens ( e dos sons), muito além da composição plástica ( ou do polimento sonoro).
Um cinema tão rigoroso- e portanto consciente de si mesmo e dos efeitos que é suscetível de produzir- não pode deixar de ver sua trajetória um dia iluminar-se com o brilho ofuscante da certeza enfim conquistada e do domínio ( maîtrise) enfim possuído. Há, na história do cinema, um número impressionante de cineastas cujas “obras-primas” são o feliz resultado de uma criação demasiado segura de si mesma para que seus filmes suscitem uma impressão durável: talvez seja necessário buscar o cinema em outra parte, então. O granulado de televisão e a partitura sonora do Raio verde são consideráveis luzes no nevoeiro americanizado dos dias de hoje.
Em muitas destas “obras-primas” , que muitas vezes não tem dificuldade em se fazer aceitas, podemos observar um traço em comum: uma identificação implícita da soma dos meios técnicos requisitados para um filme com a totalidade do filme a ser feito, como se (para dizer de uma forma bastante simplista) cada parcela do conteúdo desejado pelo realizador devesse encontrar seu exato correspondente na repartição dos diversos dóceis materiais que seriam o quadro, a luz, a focal, a gravação do som e a direção de atores.
Esta identificação, que postula uma perfeição de cada instante, é uma forma de querer fazer esquecer ao espectador que este interrompe o curso de sua vida cotidiana para ver e ouvir o que cada vez menos podemos chamar de cinema. Está implicado, nesta equivalência entre o suporte e a mensagem ( que é destruída, desde que o suporte não possa mais coincidir com a mensagem, por exemplo no fraquíssimo Fedora de Billy Wilder), um desejo secreto de afastar do filme tudo o que poderia perturbar esta harmonia: os acidentes do suporte ou da mensagem, uma espécie de brutal penetração da tela que restabeleceria a comunicação interdita entre a sala de cinema e a rua.
Belíssimos filmes foram e serão feitos com este cuidado- sempre pronto a aparecer nas declarações dos diretores, de forma raríssima em seus filmes- da perfeição. Mélo de Alain Resnais resulta desta idéia de cinema: o domínio ( maîtrise) é utilizado para canalizar todos os caminhos da consciência dos personagens , sem jamais sugerir uma possível disjunção entre os personagens e os atores. Talvez esta disjunção seja também um interdito necessário à própria consistência do cinema, ramificação do teatro que ganhou autonomia. Neste sentido, a força de Mélo advém desta insistência manifestada por Resnais em se dobrar à disciplina do teatro até o ponto extremo ( ponto de usura dos ensaios, diluição progressiva e quase natural do espaço cênico) onde o cinema vai poder, sem a inflação de sua importância, tomar a dianteira da mensagem. Resnais foi buscar, em sua modéstia de cineasta em relação ao teatro, a capacidade de estreitar da forma mais envolvente a peça de Henry Bernstein, como se encenasse uma intimidante obra-prima de Racine da qual não poderia excluir nenhum suspiro. Se ele consegue extrair da peça mais do que esta contém, é porque a confiança que estabelece com seus intérpretes permite projetar sua representação no espaço minuciosamente atento e escrutador do cinema. Uma espécie de perfeição da interpretação dos atores é atingido e fixado: o cinema, ao fixá-la, assinala o que o separa de seu predecessor, o teatro, esta arte móvel, incontrolável e efêmera.
Esta perfeição supõe a adequação exata dos atores aos personagens e dos personagens aos atores, porque é preciso no cinema, que retoma do teatro estes princípios, que o ator e o personagem façam, por assim dizer, igual e reciprocamente caminho em direção um ao outro, até atingir o ponto em que sejam indistinguíveis. Esta concepção de um cinema alavancado pela dramaturgia- à qual o suporte deve se identificar até a aderência- foi a de cineastas como Maurice Tourneur, Cecil B. DeMille ou Cukor, que não acordam nenhuma função ao acidental. O acidental distrai e diversifica ( uma borboleta que passa no campo acaba com o drama, em Griffith ou Renoir ela o ilumina); o acidental ameaça a unidade do ator e do personagem, deixando ao espectador a fadiga “suplementar” do ser humano, que não parece responder mais ao personagem. O acidental é o ouro do pobre. Estas quatro ou cinco seqüências do Raio verde são os momentos onde,- estando suficientemente garantida a "armação" do filme-, a maîtrise renuncia provisoriamente a seus direitos, a seus poderes, a sues cálculos para deixar entrar a luz do mundo, com sua linguagem inalterável.
O Raio verde é talvez menos a realização de sucesso de um projeto inicial de nos dar um retrato de Delphine que a busca modesta da confrontação de uma idéia do mundo com a matéria luminosa, sonora e carnal do mundo. A seqüência das groselhas, o passeio de Delphine entre os arbustos agitados pelo vento, a escada de pedra sob a qual o mar vem se engolfar, a discussão sobre o pequeno muro em torno do raio verde e do romance homônimo de Jules Verne, são momentos onde se exprimem a poesia do mundo e a liberdade do cinema. A identificação da mensagem e do suporte como mecânica da fabricação de um filme é um tanto quanto ausente dos filmes de Rohmer: seu cinema tira sua força do leve desequilíbrio que o cineasta estabelece ao submeter o suporte ( seus meios técnicos) a uma ascese que vai impedir, por seu turno, a mensagem de se sobrepor livremente ao suporte.
Os modos de produção e a própria linguagem da televisão, menos prestigiosos que os do cinema, menos facilmente carregados de arte, fazem parte deste arsenal ascético sutilmente tecido e acalentado por Rohmer. Este mesmo desequilíbrio, que faz a mensagem flutuar com o suporte, marca também a disjunção entre ator e personagem que favorece a aparição entre ambos do ser humano.
Por mais perfeitos que sejam os atores de Mélo- suas performances constituem uma espécie de encantamento crepuscular e tumular onde atores e personagens ardem e se extinguem, como se fossem condenados a viver suas vidas até a morte, no teatro-, eles não tem, por efeito de uma espécie de acordo tácito com seu metteur en scène, o direito de deixar escapar esta parte de si mesmos que não é o ator, e que colocaria em risco a perigosa materialização deste fantasma que é o personagem; esta parte que a câmera e o microfone do cinema da perfeição não querem deixar emergir: a inconsciência feita carne. Por mais imperfeita que possa parecer Marie Rivière- sob os rígidos critérios do profissionalismo-, ela no entanto dá ao personagem de Delphine um caráter de verdade que nenhuma atriz pode pretender reconstituir unicamente por suas forças de intérprete, pois é precisamente na disponibilidade que ela mostra em se abandonar e esquecer-se da atriz, quando o plano ou a seqüência esperam este esquecimento e este abandono, que Marie Rivière encontra a verdade do personagem: porque não há um personagem preestabelecido, cujo fantasma deveria ser materializado pela atriz. Há a vida que se organiza como que por si mesma, perto da câmera e do nagra 1, e há Marie Rivière, jovem comum dos dias de hoje, como eram comuns as jovens em Renoir ou os jovens em Hawks. Ela dispõe de seu tempo no tempo presente e, confiante, espera que seus sentimentos falem: estes sofrem por longo tempo a ascese da incerteza, que mascara de forma oportuna um caminho que a jovem arriscaria de reconhecer e de tomar à primeira vista, perdendo assim o benefício, para ela e para nós espectadores, de uma viagem caótica e imprevisível.
Os maiores momentos dos filmes de Rohmer são menos aqueles onde se desenvolve sua acuidade psicológica única ( nesta dimensão, eles participam com efeito de uma tentação que os aproxima do cinema da perfeição) que aqueles onde ele capta na natureza o movimento quase invisível do mundo. Este segredo de fabricação, que talvez não consista em outra coisa senão na transmutação de uma compreensão íntima deste mundo, reencontra certas fórmulas dos ritmos amplos de Hawks, do documentarismo noir de Murnau ( onde ele cruza com Straub), e da esperança mediterrânea de Rosselini.
O cinema da perfeição está hoje também abandonado: Mélo, por ser o único, não pode exercer o peso majoritário que Providence em seu tempo suportava injustamente. As grandes máquinas ( com exceção de Ginger e Fred, ápice poético de Fellini), sejam abertamente coercitivas ou hipocritamente espetaculares, postulam uma identificação com o mundo e tem por horizonte cada vez menos secreto o apocalipse, ou seja, a dissolução total do espectador, que hoje é apenas simbólica, e não mais a perfeição, que deixou de ser rentável. A perfeição não é terrorista. A lista é longa de cineastas ou de filmes , de Tarkovsky a Géode, que nos levam a admitir que o que apreciávamos ontem em matéria de solidão convivial nas salas de cinema do bairro, - que nos levavam a descobrir os pequenos filmes dirigidos pelos homens portadores do neologismo, nos dias atuais ultrapassado, de cineastas- , é reencontrado hoje na Televisão, e cada vez mais deve ser buscado por lá.

Nota:

1. Nagra: tipo de fita portátil para gravação do som construída a partir de 1950 pelo engenheiro suíço Stefan Kudelski. "Nagra" significa "ele vai gravar" em polonês.
  
Cahiers du Cinéma número 388, outubro de 1986. 
Extraído do livro Poética dos autores, Escritos de Jean-Claude Biette.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Texto extraído de: http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2011/03/borboleta-de-griffith-por-jean-claude.html