domingo, 15 de março de 2020

A profunda obsessão no Cinema Maneirista

por
Catalina Sofia



Existe algo de muito especial nesse cinema nascido de um ''momento maneirista'', que não é algo exclusivo dele, mas que é essencial para a concepção e compreensão dessas obras, que é a curiosidade latente e a consciência inerente do que veio antes. 

E do que vem antes até mesmo do cinema. Com a pintura, das imagens estáticas, com ilusão de movimento, com profundidade e perspectiva. Com a fotografia, as imagens aproximadas a uma cápsula de aprisionamento cada vez mais próximo do real. E por fim, com o cinema de fato, trazendo consigo uma nova concepção de imagem que tanto carrega ideias dessas anteriores, como também trás consigo muitas questões que lhe são próprias, assim como toda arte. 

Mas por qual motivo falar disso? Como eu disse acima, isso faz parte da curiosidade, da investigação. Bazin, em seu texto ''A Ontologia da Imagem Fotográfica'', diz que o pecado original da pintura se inicia quando há a descoberta da perspectiva, uma vez que isso faz com que a pintura queira cada vez se aproximar de uma representação real do mundo e com isso, a liberdade na realização das obras de alguma forma se limitaria. 

Bom, nesse mesmo texto, ele diz que logo em seguida viria a fotografia para enfim libertar a pintura dessa fidelidade com o real, com a obsessão de manter vivo um fragmento do que se vê e se quer rever, considerando isso um grande acontecimento nas artes plásticas. A imagem que vamos obter a partir disso é a imagem do que estamos vendo simultaneamente ao fazer esse registro, algo que era questionado na pintura. 

A partir disso, podemos pensar nas inúmeras possibilidades de modificar a imagem fotográfica e até mesmo cinematográfica, que viria ser talvez a consequência de uma longa relação com a imagem. Aqui podemos questionar até onde vai essa objetividade nessa concepção da imagem e aqui talvez entre uma das principais investigações, dentre as quais desde o começo do texto estamos precisando fazer. 

Esse cinema tem uma obsessão em testar os limites que essa imagem aparentemente objetiva pode ter, um plano cinematográfico pode muito ter a ver com um quadro em vários aspectos, poderíamos citar muitos e é uma tarefa, pelo menos pra mim, muito interessante. Mas a ranhura que existe entre essas é o que está em destaque aqui, no cinema existe a possibilidade de trabalhar com a imagem em movimento real, não somente isso, uma, duas, três, inúmeras imagens oriundas não somente do uso da perspectiva e profundidade (naturais a esse tipo de registro), mas da junção que o corte permite. E aqui já temos anos de história do cinema, que espero, já termos passado pelos primórdios e a ideia de que aquele cinema faria apenas um ''mero registro''. 

Entender isso é primordial para entender a riqueza do que se é possível, é a consciência que cito no início do texto. Em Profondo Rosso (1975), de Dario Argento, lidamos exatamente com a investigação, isso se inicia na narrativa quando somos inseridos na investigação de um crime e isso se estende à forma. De maneira a trazer uma sensação completa de pensamento da imagem, o personagem investiga junto ao espectador, somos guiados. 


O personagem principal, Marcus Daly, ao ensaiar sua banda de jazz nos diz: ''É, está muito bom. Muito bom. Talvez até bom demais. Muito limpo, preciso, muito formal… precisa ser um pouco mais ''sujo'', entendem o que eu digo?''. E isso certamente dará o tom do resto do filme. Não por acaso, logo em seguida somos apresentados à Helga Ullman, uma vidente. E aqui a narrativa nos apresenta essa personagem que prevê o que irá acontecer, fato minimamente capcioso dentro dessa lógica incansável de lidar com a imagem. 

A investigação aqui consiste não apenas em acompanhar a narrativa de um crime, mas de também ser cúmplice do que as imagens podem nos presentear e trapacear, então talvez aqui a previsão possa não ajudar muito e talvez seja por isso também que nos despedimos tão cedo de Helga. É interessante notar que nos minutos iniciais já temos a resolução do mistério, que também ''resolve'' o filme com seu fim, isso só explicita que o interesse está em explorar os meios em que chegaremos a esse tal fim. A imagem pode enganar, se é isso que quem a produz quer. 

Não é à toa que venho acreditando de que o cinema maneirista é um dos momentos da história do cinema e do desenvolvimento da linguagem cinematográfica mais didáticos nesse sentido que existe até então. Em filmes como Profondo Rosso (1975), nós podemos nos  dar um trabalho minucioso de debruçamento na forma, a investigação dificilmente surge de um fenômeno inexistente ou inexplicável. Inclusive, a ideia que defendo neste texto é o mote do que consiste o filme, a ideia, o conteúdo e a forma neste caso em especial são insolúveis. 

Argento, declaradamente interessado e inserido nesse contexto da investigação da imagem, nascido no importante berço ocidental da produção artística, irá entrar em um constante jogo de dar e retirar informações. Retrabalhando, reconstruindo e, por isso, deformando as imagens, para que no fim elas não sirvam somente a um objetivo meramente ilustrativo. E aqui entramos no mérito do prefixo utilizado, ''re'', que nos dá a ideia de algo que já existe, elemento importante para falar de maneirismo, a consciência da existência de uma aparente maturidade alcançada e o que se faz a partir disso. Entraremos com mais detalhes no texto que irá suceder este (texto da próxima sessão, com Obsession (1976)). No filme ele não se limita a lidar com as imagens que concebe, mas também com outras imagens, vemos em diversos momentos esculturas, pinturas e até mesmo a duplicação e reflexão dessa imagem, com espelhos. 



Então além de termos algo pré-existente, lidamos com a construção de sentido para além da imagem cinematográfica, porém, inserida nela mesma. É o maneirismo por excelência. O Maneirismo quando nasce, ainda na pintura, vem seguido do que seria o auge da pintura ocidental, o Renascimento. Se existiu o auge, o cânone, como lidar com a forma e o pensamento artístico tendo, aparentemente, alcançado a plenitude naquele momento? 

Utilizando o exagero, a profusão e também, o referencial, retrabalhando e repensando. É muito interessante pensar que Vasari, pintor e estudioso do século XVI, sendo maneirista, ajuda a fundar a Academia das Artes de Desenho. O que isso nos leva a pensar? Que o momento de crise da forma, da representação e do pensamento artístico, impulsiona esse mesmo pensamento, o fortalecimento da academia, dos estudos. 

E o cinema maneirista, que se inicia em meados dos anos 70 e explode nos anos 80, nasce de uma crescente crise da mise-en-scène, passado o cinema clássico hollywoodiano e todas as obras que se imaginam intocáveis e irretocáveis. Não é curioso que a grande obsessão desses realizadores é Hitchcock, sendo o próprio, um grande precursor da investigação da e na imagem cinematográfica. 



Aqui acredito que amadurecemos um pouco a ideia de que então esse cinema seria movido pela curiosidade, investigação. 

Tanto em Profondo Rosso como nos demais filmes realizados por Argento, parece haver um fator em comum que nos ajuda a tentar concluir esse raciocínio, que é a existência do mistério, do oculto. 

Podemos dizer que em todas as narrativas a graça seria em não saber seu desfecho, em ter esse prazer da descoberta, mas pensar isso me parece empobrecer muito os caminhos pro tal desfecho, os meios que se chegam a essa finalidade por assim dizer. Tanto nos filmes que aqui me debruço, quanto nos que não falo aqui. Pois falo de uma ideia sólida de resolução que é baseada na investigação desse mistério, pensado em cada imagem, não somente pensando na tridimensionalidade do plano cinematográfico, mas também na montagem e o que nasce a partir disso. Isso cria uma intensa comunhão de todos com o filme (não é nada curioso que tenhamos citado Hitchcock), com cada parte, com cada peça que compõe a forma desse filme. É de fato também, uma obsessão, não sendo por acaso Obsession (1976), de Brian de Palma, o filme que irá concluir este texto, que não dou por totalmente finalizado e o recorte feito para esse ciclo do História(s) do Cinema: Cineclube do Atalante.


quinta-feira, 12 de março de 2020

Cineclube do Atalante: Prelúdio para Matar

Neste sábado, o Cineclube do Atalante exibe Prelúdio para Matar, de Dario Argento.



O pianista inglês Marcus Daly, testemunha o brutal assassinato de uma famosa médium, mas não consegue identificar o criminoso. Ele se une à repórter Gianna Brezzi e decide investigar o caso, mergulhando num submundo perigoso, onde cada passo pode ser fatal, sempre observado pelo assassino desconhecido. Dirigido por Dario Argento.

(Profondo Rosso, Itália, 1975, 127 min. Com David Hemmings, Daria Nicolodi, Gabriele Lavia. Recomendado para maiores de 14 anos). 

Serviço: 
Cineclube do Atalante: Prelúdio para Matar 
Sábado, 14 de março 
Às 16h Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Coletivo Atalante, Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura de Curitiba. 

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

terça-feira, 10 de março de 2020

Sobre viver a Nouvelle Vague

por Giovanni Comodo


É inegável: os franceses entendem de revolução. Na virada dos anos 1950 para 1960, uma nova geração de realizadores tomou a frente do cinema de seu país. Esta geração, jovem demais para ser convocada para a 2ª Guerra Mundial, passou a Ocupação e seus anos imediatamente posteriores dentro das salas de cinema. Lá, todo um mundo: a justiça dos westerns, as cores dos musicais, as trevas do noir, as paixões dos romances. Na saída das salas, novas amizades e disputas sobre qual o melhor filme, qual cinema mais encantava. Os discursos tomavam os cafés e as ruas e em pouco tempo também jornais e – como já não eram suficientes – revistas criadas para discutir o assunto mais pulsante destes dias: o cinema.

Enquanto isso, qual cinema a França tinha a oferecer? Filmes repletos de “muito bom gosto”, gravados dentro de estúdios, figurinos e textos empolados de adaptações literárias para agradar “papai e mamãe”. Um cinema seguro, afastado da vida e do verbo das pessoas que frequentavam as salas de cinema.

Ao mesmo tempo, um salto tecnológico: chegavam ao mercado novas câmeras e microfones, muito mais portáteis, intuitivos, baratos. Formaram-se as condições ideais para que em pouco tempo esses jovens obcecados por cinema tomassem as câmeras para si e saíssem para o estúdio/ateliê mais barato disponível: as ruas, en plein air. Atores? Seus amigos ou amigos de amigos. Estes novos filmes, insolentes ao bom gosto nacional vigente, contestadores de formas e conteúdos, ecoaram nas salas de cinema e inspiraram outros tantos jovens através dos anos em todo o mundo: é possível, afinal, fazer (e viver) um cinema urgente e que fale de nossos dias com poucos recursos. A esta revolução chamou-se Nouvelle Vague [Nova Onda]. Assim diz a lenda, impressa aqui.

Como todas as lendas, há muita coisa inventada ou simplificada. Ou mentirosa. Nem todo este “novo cinema” era novo: estes jovens cineastas tinham sua filiação espiritual: Rossellini (e todo o neo-realismo italiano, que ensinara o caminho de fazer muito com pouco), Hitchcock, Bergman, Jean-Pierre Melville, Jean Grémillon, Jean Renoir, Max Ophüls. 

De Ophüls, com sua suntuosidade, decadência e sensualidade, não houve filho maior que Jacques Demy. Muitas linhas já foram escritas sobre a Nouvelle Vague, mas poucas ainda sobre Jacques Demy (mesmo com João Bénard da Costa dizendo ser ele um dos raros e mais belos mozartianos do cinema) e menos ainda sobre “A Baía dos Anjos”.

Após uma estrondosa estreia com “Lola” (1961), dedicado não por acaso a Max Ophüls, Demy retorna em 1963 com “A Baía dos Anjos”, uma história de amor louco, tão intenso como breve, passada nos cassinos da Riviera Francesa: um rapaz, Jean (Claude Mann), conhece o jogo e a paixão com uma mulher mais velha, Jackie (Jeanne Moreau). Tudo vício, tudo destrutivo, tudo repleto de beleza.

Uma beleza desde o primeiro instante de filme, em sua cena de créditos. A íris da câmera se abre, vemos Jeanne Moreau (com um cigarro, o vício, nos lábios) absolutamente platinada, resplandecente. A câmera se põe em um movimento acelerado, revelando a sua solidão, como a ela pertencesse toda a cidade e o mar. A música de Michel Legrand, que dará a tônica deste filme, também começa doce e ganha velocidade e força, cada vez mais, até sumir como Jeanne, com as imagens da Baía dos Anjos. Fim dos créditos. Estamos em Paris, interior de um escritório de um banco. Sem música, sem vento, sem velocidade. Apenas então tem início a história de como Jean descobre a vida e seus perigos – em uma série de escolhas difíceis de serem contestada pela plateia, não só por Moreau, mas em razão da maneira pela qual o filme revela o tédio absoluto do trabalho urbano, um tema recorrente na Nouvelle Vague e que passava longe do cinema de então.

Em um preto-e-branco de alto contraste, Demy já se encontra aqui no topo de suas capacidades, não apenas pictóricas, mas em encenação – o uso recorrente de espelhos diversos durante a projeção ou como Jackie quase sempre é emoldurada por um fundo negro, destacando sua alvura, já são exemplos do domínio e da elegância do realizador – e, especialmente, ritmo: o filme se realiza em plena potência na montagem, nas diversas fusões entre os rostos do casal e o giro da roleta, em cenas em que o prazer do jogo e do amor são uma só coisa, tornada física pelo cinema.

Demy sempre afirmou que seu desejo no filme era mostrar a paixão como uma droga ainda maior e mais viciante do que o jogo e as roletas dos cassinos em que se passa a narrativa. É com esta febrilidade, embalada pela música de Legrand, que vamos sendo cada vez mais capturados na relação entre Jean e Jackie. Contudo, no filme e na vida, a casa sempre vence.

Quão verdadeira é a felicidade de nova aposta no final do filme? Seria a cena de abertura o real desfecho de “A Baía dos Anjos”? Quem sabe fosse o dia seguinte àquele abraço dos amantes, com Jackie praticamente como uma aparição fantasma daquela cidade viciosa?

O desencanto é uma das maiores marcas deste realizador, talvez um dos motivos de ser ainda pouco celebrado – contudo, sua esposa, Agnès Varda, dedicou-lhe uma das mais belas cartas de amor do cinema, o filme “Jacquot de Nantes” (1991). O amor continua para sempre, quem sabe.

A nós, cabe girar a roleta mais uma vez.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Cineclube do Atalante: A Baía dos Anjos

Neste sábado, o Cineclube do Atalante exibe "A Baía dos Anjos", de Jacques Demy.

Entrada franca, sempre!



Jean é secretário em um banco. Seu colega é um apostador e o vicia no jogo. Nos cassinos de Nice, Jean conhece Jackie, uma parisiense de meia idade que deixa seu marido e filhos para se aventurar no mundo das apostas. O caso de amor dos dois se desenvolve em jogos de sorte e azar, sempre ao redor de uma roleta. 

Dirigido por Jacques Demy.

(La Baie Des Anges, França, 1961, 90 min. Com Jeanne Moreau e Claude Mann. Recomendado para maiores de 14 anos)

Serviço:
Cineclube do Atalante: A Baía dos Anjos
Sábado, 7 de março
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174- São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante, Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura de Curitiba.

Projeto realizado com o apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura | Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Entrevista com Helena Ignez

''Eu acredito muito no cinema, acredito fortemente, nesse mistério transformador e fortíssimo.''- Helena Ignez.  


Não é possível escrever a história do cinema brasileiro sem o nome de Helena Ignez. Atriz, diretora, produtora, autora, Helena abriu caminhos e redefiniu-se diversas vezes, sempre independente, indomável. Em junho do ano passado, durante o 8º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba, o Coletivo Atalante - composto por Catalina Sofia, Waleska Antunes e Giovanni Comodo - teve a oportunidade de realizar uma entrevista exclusiva com Helena Ignês na qual esteve presente também sua filha Sinai Sganzerla - diretora de "A Mulher da Luz Própria", documentário sobre a trajetória de sua mãe exibido no festival. A força criativa da atriz, suas influências pessoais, os mistérios da criação na arte e várias outras histórias estão presentes no texto a seguir, o primeiro de uma série de entrevistas com diretores a serem publicadas pelo Atalante nos próximos meses.


Atalante: A mostra de 5 anos este ano foi com o tema ''Política das Atrizes'', que contou com filmes das atrizes Barbara Stanwyck, Ingrid Bergman, Gena Rowlands e Isabelle Huppert. Essas atrizes são inquestionáveis criadoras com suas presenças e performances nos filmes. Aqui e agora temos a oportunidade de conversar com você, uma atriz que com toda certeza entra nessa questão. Sendo assim, como se dá essa tomada de consciência dessa criação como atriz? Uma vez que você defende seu lugar como criadora nos filmes em que participou. Como acontecia essa criação? 

Acho que o começo desse processo é a própria existência, né? A experiência, daí o experimental, "experience" tal como Jimmy Hendrix, um dos ídolos da minha geração, exatamente por essa liberdade de criação. No meu caso o processo começa antes, já que eu falo na existência e na experiência, com estudo, principalmente com estudo, eu sou uma atriz estudiosa, que conhece métodos e processos. Os processos acho que definem melhor esse trabalho do que o método, que de uma certa forma pode aprisionar e no set a coisa acontece, se estivermos falando de cinema. No set é que existe realmente essa criação, antes é uma preparação para que ela aconteça, para que ela surja espontaneamente. Com esse "click", porque sem esse "click" a coisa não existe. Antes e durante, o depois é uma constante no trabalho, uma constante busca dessa criatividade, mas também tive sorte nesse sentido de poder exercer isso nos filmes que fiz, alguns de forma mais restrita, com esse trabalho talvez menos claro para o espectador e outros não, ele realmente explodia. Acontecia com muita força, havia esse espaço, vamos dizer tal como um vazio que podia ser preenchido pela criação da atriz.   

Atalante: Existe alguma atriz que tenha te inspirado ou que te remeta a essa postura mais autoral nos filmes? 

Você cita essas atrizes da mostra, são grandes atrizes... um trabalho digno de uma observação e de um estudo, começando por Barbara Stanwyck, a mais antiga de todas, que tinha uma personalidade diferente dentro de Hollywood, tinha uma masculinidade e não era exatamente bela, como Ava Gardner, por exemplo. Mas existe sim uma atriz que me inspira continuamente desde meu começo, desde a minha primeira vontade, desejo de ser atriz, que é a Marilyn Monroe. Ela é o principal exemplo de luz, criatividade e conhecimento dessa relação com a câmera. Seria ela a minha mestre. Ela é a atriz do olhar, ninguém olha melhor que Marilyn, dança, se expressa, movimenta aquele corpo. Ninguém é mais extraordinária que Marilyn Monroe. 



Atalante: É possível algum trabalho de atuação ''não autoral'' no que diz respeito à obra? Como se dá essa relação com a direção uma vez que é a partir daí que se idealiza a forma do filme e os caminhos para que se concretize essa forma. 

Existe uma relação fortíssima entre o intérprete e o diretor, sem essa conjunção não sai nada, não acontece. Você precisa desse espaço dado pela direção pra ser também autoral, nisso eu tive companheiros incríveis. Me convidavam pra fazer filmes, tal como "O Bandido da Luz Vermelha", primeiro filme que eu fiz com Rogério, porque eu sabia dessa possibilidade de espaço. Também cito Júlio Bressane, que me deu um espaço enorme no filme dele, que foi possível criar personagens tão incríveis, como em "Barão Olavo, o Horrível", que é uma loucura total, que sem um diretor, sem ele, não surgiria. No caso de "A Mulher de Todos", também... e de outros filmes também que eu fiz com Rogério, que eu fico sem saber de onde ele tirou, fico pensando se aqueles diálogos seriam intimamente meus, apesar de escritos por ele. De onde ele tirou ideias, frases icônicas como "tenho horror à velhice". Então a questão é ter uma conjunção muito forte. Se não tem, a coisa fica fechada, tal como em um filme comercial, com um ator criativo, quando ele consegue exercer sua função, seu trabalho, no caso da Gena Rowlands, tinha o Cassavetes, que era tão criador quanto ela, que fez filmes quase sem profissionais no começo. Acredito que a criatividade está no mistério, é como ouvimos hoje, no livre arbítrio e na predestinação. Existem coisas entre o céu e a terra que não conseguimos explicar.




Atalante: Interessante você falar dessa mística, do inexplicável, da predestinação... no filme de Sinai Sganzerla, que você protagoniza ''A Mulher de Luz Própria'', você fala da leitura de mãos. Você ainda faz? Poderia falar um pouco disso?  

É difícil, existe um estudo milenar, então são 5 mil anos de estudo que falam das relações das linhas da mão com a mente, é mais que ver o futuro. Isso já foi uma vulgarização desse conhecimento. Não é apenas pensar no futuro através das linhas das mãos, é autoconhecimento, saber suas possibilidades, é muito interessante. Há 20 anos que não leio mãos. Tenho noções, mas é muito assustador esse tipo de conhecimento, primeiro porque pode lhe enganar, lhe colocar em uma categoria especial de pessoas, que é muito perigoso. E também na confiança enorme que as pessoas depositam nisso, na gente. Eu tenho experiências nesse sentido fortes, da leitura de mãos de um rapaz, que inclusive é algo muito marcante, eu vi que tinha uma forte possibilidade de suicídio e de autodestruição, extrema, fortíssima. E aí falei e ele começou a chorar, dizendo que na semana passada ele tinha aberto o gás e tentado se matar. Era uma coisa escandalosa, era uma linha que você fosse fotografar e estudar, era idêntica a de um suicida. Então essa pessoa ficou imensamente grata, é perigosa essa situação, mas aconteceu de ser benéfica, mas pode não ser também... As pessoas que procuram isso são pessoas carentes, em geral que querem uma orientação e se apegam muito a você. Ficam apegadas, dependentes e isso também esgota, cansa, adoece. Tive uma experiência também de uma tarde com leitura de mãos, que fiz bastante e no dia seguinte eu estava péssima e fui a um médico homeopata, porque eu sempre me trato com homeopatia e ele me falou que eu estava como se estivesse envenenada. Em um processo de envenenamento, então é isso, é uma carga muito pesada, muito forte.  

Atalante: O trabalho como atriz também tem essa carga, esse peso? Vivendo tantas vidas, experienciando tantas coisas...  

Ele tem uma carga e ontem me referi a isso, eu não consegui, depois dos filmes da Bel-Air continuar normalmente com meu trabalho de atriz. Eu achei insuportável, em primeiro lugar porque nada substitui aquela experiência extraordinária de fazer aqueles filmes, pra um ator, uma atriz é uma experiência inacreditável, de entrega, de criatividade, muito psicodélica. Era uma época psicodélica, totalmente e ela cansou também. Eu tive uma espécie de intoxicação, também foi necessário esse vazio, essa procura. Me impressionava também muitos diálogos fortíssimos que foram ditos por mim no próprio "Copacabana Mon Amour", diálogos do filme, as perguntas de Rogério, "o que estamos fazendo aqui na terra?", "qual o destino do homem?". Isso introjetou de uma forma muito forte, Rogério foi também um companheiro fortíssimo, extremamente forte, que desarticulou, ajudou a desarticular minha mente pra surgir uma criação.  

Atalante: É como brincar com o destino, ter a certeza que os personagens que você viveu, essas mulheres, de fato vivem em algum canto pelo mundo.  

Isso, eu poderia ficar muitos minutos por exemplo, olhando uma foto, mergulho naquilo, vou longe. Personagens femininos, masculinos. As pessoas me interessam muito, existe algo também na Marguerite Duras que gosto de citar, é muito interessante que ela ia aos restaurantes e ficava em silêncio com o namorado dela ouvindo as pessoas. Eu também tenho isso, eu entro em outras vidas, observo, muito, realmente muito. Eu tenho uma natureza apropriada, é isso. O trabalho de observação seria como o processo.

  

Atalante: Você tem algum tipo de revisão dos papéis que fez, em relação à visão do que se tem do feminino naquela época, com a representação?  

Eu fico assustada com essa representação, mas não poderia ter feito diferente. A potência e a anormalidade que isso tinha, eu trabalhei com a anormalidade, com a ruptura e isso não é fácil. Não era um afago, tinha um prazer, mas um prazer estranho. Por exemplo, o que me interessou, pelo meu último filme chamado "Fakir", foi exatamente isso, essa anormalidade e essa mistura de prazer e dor, enfrentamento. Eu acho bem próximo a isso. A auto violência, porque violência mesmo, digo que eu sou incapaz de matar um mosquito, completamente incapaz. A gente consegue procurar nessa dor, nessa mágoa um afago, um prazer.  Mas acredito que revisão não, inclusive no meu último roteiro eu trato disso. O ponto do desejo feminino é o orgasmo, eu acho que o orgasmo, se você falar de desejo, é o orgasmo que satisfaz. É encontrar o orgasmo e isso se chega nos filmes pela verdade, pelo autoconhecimento, com seu próprio corpo, das suas possibilidades. Talvez até agora eu pensaria que eu sou uma atriz orgástica, isso que acontece, essa explosão, é algo altamente individual, não existe somente um desejo feminino. Existe um órgão de desejo, que é o clitóris, se vamos falar de desejo temos que falar de corpo e como observar esse desejo, como chegar a ele. Não é nada romântico, está em outra linha, uma linha mais fisiológica, carnal, mental. O orgasmo a gente não pode dizer que é somente carnal, requer uma energia especial e extremamente forte, de uma maneira que por exemplo, dentro de algumas especialidades, tal como o Taoísmo, no qual fui estudiosa e dedicada, tal como fui ao Hinduísmo, você se conhece o desejo não poderá ser uma mulher mística, porque de tal forma que é tão forte esse desejo, o orgasmo, de tal forma que ele mexe com toda a estrutura mental, que era impossível você ter uma espiritualidade, seria uma contradição misteriosa. Eu acho que o desejo é isso, o amor é outra coisa.  É estranho, a  gente não pode ser nem leviana, nem ingênua.

  

Atalante: É desafiador pensar em como apresentar o desejo nos filmes de uma forma menos psicológica e mais visual, tendo em vista a existência de uma vulgarização da imagem como um geral, mas em especial do corpo e do corpo feminino, que como falamos, está intimamente ligado ao desejo, à sexualidade. Como apresentar isso em tela? Temos alguns exemplos fantásticos disso, como em ''Humoresque'', de Jean Negulesco, nos repetidos instantes em que a personagem de Joan Crawford coloca os óculos para apreciar a imagem do homem que ela à primeiro momento deseja e posteriormente, se apaixona. Esses momentos em que ela enxerga, são de transe. Ou um outro exemplo um pouco diferente, em um filme que exibimos recentemente ''Lola Montes'', de Max Ophuls, em que ela se despe para lutar contra o que afirmam veementemente em relação a ela dançar terrivelmente mal. Naquele momento ela não tem pudor nenhum de jogar seu corpo e se movimentar e isso gera muita movimentação e catarse no momento do filme, talvez nesse caso seja a sedução em jogo. Seria a sedução essa forma mais visível de mostrar o desejo?  

É a sedução, mas o desejo e a sedução seriam iguais? Acredito que não, não sei. Sedução acho que faz parte do social, faz parte das relações, dos costumes, é diferente.  

Atalante: Em que grau se modifica a relação de criação e autoria em um filme como atriz e como diretora? 

Existe uma diferença, enorme. O processo é diferente, o processo da direção não é orgástico. Não me parece, ele é mais organizado, mais intelectual, está mais em outro tempo. O trabalho do ator é uma entrega maior a esse mistério, a essa situação orgástica e são trabalhos que se dão muito bem juntos, mas são diferentes.  

Atalante: A Helena Ignez que dirige é muito diferente da que atua?  

Não, não... sou muito a mesma coisa, tenho uma relação muito amorosa com os atores e atrizes, se torna uma relação de confiança imensa. Me coloco no lugar deles, detesto filmar mais de uma vez , o que é típico de diretor, três, quatros vezes, cinco, seis, por causa da luz ou seja lá mais o que. Eu priorizo totalmente o ator, se ele estiver bem jamais repetir porque eu sei que não será igual a segunda vez. Mas eu imagino, em um processo de primeiro dia de filmagem que você tem que falar com inúmeras pessoas, ter uma harmonia. Esse trabalho é mais corriqueiro, mais ligada ao comum, dirigir. O ato da direção,  mas a obsessão é a mesma, tal como quando eu monto um filme, eu tenho um montador que eu adoro, que tenho trabalho com ele nos meus quatro últimos filmes, ele é um ótimo técnico, mas ele não faz absolutamente nada sem mim. Eu passo as noites conversando com os personagens, essa história do "Fakir" é incrível, porque eu tava entrando em um mundo que eu não conhecia, tão absurdo. Coisas como acordar no meio da noite com uma ideia e gravar pra no dia seguinte falar, então é um outro processo.

  

Atalante: Pensando no que estamos conversando, você teve um movimento de satisfação na atuação e a partir disso quis ter uma experiência na direção? 

Foi isso, eu achei que tinha chegado a uma plenitude como atriz e que já me satisfazia de uma certa forma e precisava ampliar aquilo. Mas o que me deu isso foi a morte de Rogério, apesar de ter feito meu primeiro filme como diretora antes dele morrer, ele foi montador. Mas não sei se ele estivesse vivo se eu teria feito esses filmes, muito possivelmente não, possivelmente não. Eu senti uma urgência de me expressar, de seguir aquele pensamento, eu sou discípula de Rogério. Esse cinema, trabalhar com esses diálogos, ele era um dialoguista extraordinário, com essa invenção dele. Então foi a perda que me fez, mas também não sei, porque o que me moveu antes foi também a indignação, porque com a morte dele houve uma indignação, houve uma indignação por essa morte. Então essa indignação é o que impulsiona também e que também está presente na atriz.  

Atalante: Como foi montar o último filme de Sganzerla? 

Eu tinha 700 páginas na mão e estudo de todos os personagens, não era um roteiro que estava completo, ele estava estudando e ele é escritor, ele preenchia a dificuldade em filmar, porque dinheiro não havia, as produções não apareciam. Ele estava muito à frente, então não apareciam essas possibilidades dele filmar o que ele queria, então ele escrevia muito. E meu trabalho foi exatamente conhecer os personagens e adaptar determinadas falas, daquele personagem, do Mão de Onça, daquele delegado... depois desse trabalho, seis meses, eu conhecia muitíssimo bem aquele roteiro. Depois pra montar o filme, eu montei junto com "A Volta do Bandido da Luz Vermelha", com um grande montador, que é o Rodrigo Lima, um grande montador. Não houve mistério. Foi um processo natural, Sinai entrou bastante também na montagem do "Luz nas Trevas",  ela ia sozinha ou eu ia com ela e ela foi extremamente valorosa, ela também foi extremamente valorosa com as imagens do "A Volta do Bandido da Luz Vermelha", é foi por aí... um pouco diferente da montagem do "A Moça do Calendário", que eu mesma fiz. Eu adoro esse filme, é meu melhor filme, é lindo. Eu estava falando com a Sinai que eu tinha pouco a "A Moça do Calendário" no filme dela ("A Mulher da Luz Própria"), de repente ainda tá lá "A Moça" pra gente estudar e trabalhar. Tem uma coisa muito interessante, que ela trouxe as ligas camponesas ao filme, mas se realiza totalmente essa ideia da "moça", que é a própria personagem de ficção, a moça, falando sobre a Reforma Agrária. Se completa ali. 

Atalante: É muito interessante como são trabalhos muito intimistas, familiares e que por isso também pedem essa conexão que temos conversado até então, a atriz de ''A Moça do Calendário'' é sua filha.  

A atriz é a Djin, minha filha. Eu sempre trabalhei com ela, desde muito cedo ela fazia teatro com outras pessoas. Pra mim ela é uma inspiração, uma grande atriz.  

Atalante: Bom, nós conversamos na ocasião do 8º Olhar de Cinema- Festival Internacional de Cinema de Curitiba e o filme de abertura é um filme sobre o Coutinho. A respeito de Coutinho então, dizemos algo que nos faz pensar muito no cinema que você faz e pensa, que é a crença dele no momento único e especial do acontecimento da/na filmagem ao escolher na maior parte das vezes, pessoas pra participarem de seus filmes que ele nunca viu na vida antes de então, como você diz, dar o ''click''.  

Eu acredito que é exatamente isso, eu tenho isso com os atores que dirijo. O Mário Bortolotto por exemplo, pra mim ele é um mistério, um símbolo. Eu não tenho nenhuma intimidade com ele, no entanto nos filmes acontece maravilhosamente, eu não me interesso também pela intimidade do ator, pela psicologia dele, não é por aí que entra nossa intimidade. É através do personagem e da observação. Ali tem que acontecer, a gente sabe que vai acontecer. Eu acredito muito no cinema, acredito fortemente, nesse mistério transformador e fortíssimo.



Esta entrevista foi também um dos textos de apoio e distribuída na sessão de ''O Bandido da Luz Vermelha'', de Rogério Sganzerla, que ocorreu no último dia 29 de fevereiro de 2020 pelo projeto ''História(s) do Cinema: Cineclube do Atalante''.

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