quinta-feira, 28 de março de 2019

Cineclube do Atalante 5 anos: Mostra Política das Atrizes em abril

Para comemorar o nosso aniversário de 5 anos na Cinemateca de Curitiba, o Cineclube do Atalante realiza em abril uma mostra dedicada ao trabalho de quatro grandes atrizes cuja criatividade, inteligência e presença ultrapassam o rótulo de musa para inscrever o seu nome em uma autoria tão determinante para o filme quanto o diretor. Sempre com entrada franca!


13/04 - SÁBADO: Barbara Stanwyck

15h (13/04): Stella Dallas, mãe redentora, de King Vidor


 
(Stella Dallas, EUA, 1937 - 105 min. 12 anos. Com Barbara Stanwyck, John Boles, Anne Shirley.)

Stella Dallas, jovem vinda da classe trabalhadora, casa-se com homem rico e sofisticado. O casal tem uma filha, mas ele pede o divórcio por considerar o comportamento de Stella vulgar. Ela passa a dedicar sua vida à filha, por quem tudo sacrifica e tudo enfrenta, inclusive o desprezo da comunidade. 

18h (13/04): Bola de Fogo, de Howard Hawks


(Ball of Fire, EUA, 1941 - 110 min. 10 anos. Com Barbara Stanwyck, Gary Cooper, Dana Andrews.)

Preocupado com um verbete sobre gírias de uma nova enciclopédia do qual participa, um professor de gramática conhece uma extrovertida cantora de boate, fonte inesgotável de termos popularescos. Procurada pela polícia por seu envolvimento com um gângster, ela se abriga no escritório da equipe de acadêmicos sem contar a eles seu real motivo, provocando diversas confusões.

14/04 - DOMINGO: Ingrid Bergman

15h (14/04): Sob o Signo de Capricórnio, de Alfred Hitchcock


(Under Capricorn, GB, 1949 - 117 min. 12 anos. Com Ingrid Bergman, Joseph Cotten, Michael Wilding.)
 
Em 1831, um irlandês vai parar na Austrália para recomeçar sua vida com a ajuda do primo, eleito governador. O homem acaba por ir trabalhar na casa de um fazendeiro, cuja bela e estranha esposa surge para dar às coisas um rumo inesperado.

18h (14/04) (Sessão dupla): Ingrid Bergman ou The Chicken, de Roberto Rossellini e Joana D'arc de Rossellini, de Roberto Rossellini 


(Ingrid Bergman AKA The Chicken, ITA, 1953 - 16 min. 12 anos)
 
Em um curta integrante do filme "Nós, as mulheres" ("Siammo donne"), Rossellini filma a esposa em casa diante de um dilema: o frango da vizinha insiste em estragar suas rosas. Bergman enfrenta a natureza mais uma vez em um filme do diretor.


(Giovanna d'Arco al rogo, ITA/FRA, 1954 - 80 min. 12 anos)
 
Realizado inteiramente em estúdio, Rossellini filma Bergman no papel de seus sonhos: Joana D'arc. E é como um sonho que são mostrados os instantes finais, medos e ansiedades da vida da santa guerreira da França.
 
27/04 - SÁBADO: Isabelle Huppert

15h (27/04): Elle, de Paul Verhoeven


(Elle, FRA, 2016 - 130 min. 18 anos. Com Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Cosigny.)

Michèle aparenta ser indestrutível. A mente por trás de uma inovadora empresa de video games, ela tem a mesma postura controladora tanto na sua vida pessoal como profissional. Mas a vida de Michèle muda para sempre quando ela é atacada em sua própria casa por um criminoso desconhecido.
 
18h (27/04): Um Amor tão Frágil, de Claude Goretta


(La Dentellière, FRA, 1977 - 107 min. 16 anos. Com Isabelle Huppert, Yves Beneyton, Florence Giorgetti.)
 
Jovem tímida e de origem simples conhece durante suas férias um rapaz intelectual de classe alta. Pode o amor deles sobreviver às suas diferenças?
 
28/04 - DOMINGO: Gena Rowlands

15h (28/04): Noite de Estreia, de John Cassavetes


(Opening Night, EUA, 1977 - 144 min. 16 anos. Com Gena Rowlands, John Cassavetes, Ben Gazzara.)

Celebrada atriz entra em crise às vésperas da estreia de uma nova peça que protagoniza, devido ao acidente de carro de uma fã. Morte, casamento, maturidade, arte e verdade são colocados em dúvida por ela.

18h (28/04): Uma Mulher sob Influência, de John Cassavetes


(A Woman under the influence, EUA - 1974, 135 min. 14 anos. Com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper.)

Mabel, dona-de-casa da classe média baixa americana, mãe de três filhos, é casada com Nick, um trabalhador da construção civil. Fragilizada mental e emocionalmente, questões domésticas se acumulam de forma dramática para Mabel.

Serviço:
Em abril, dias 13, 14, 27, 28.
Sessões às 15h e às 18h (excepcionalmente)
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

sábado, 23 de março de 2019

O charme discreto de Whit Stillman (trechos)

por Frédéric Majour



(...) Com Os Últimos Embalos da Disco (1998), passamos do preppy [de seus primeiros filmes] para o yuppie, através das personagens de Charlotte e sobretudo de Alice, a qual, quando estudante em Harvard, mostrava-se arrogante aos olhos dos rapazes com quem poderia sair. É o que lhe conta sua colega de trabalho (em uma editora), de apartamento e de dança nas noites do Club, uma discoteca de Manhattan (inspirada no Studio 54, templo da cena Disco no final dos anos 1970, famoso por seus esplendores, seus excessos e a efervescência que reinava em sua porta todas as noites, devido à seleção da entrada). Quando é questionada sobre qual livro gostaria de publicar, Alice responde: “Uma antologia de contos inéditos de J. D. Salinger, mais na linha de ‘O Gargalhada’ que de 'Seymour – Uma introdução"''. Assim, ela se opõe aos rapazes que só leem quadrinhos como Homem-Aranha e cultuam Carl Barks, criador do Tio Patinhas, o pato mais rico do mundo. Walt Disney é também uma das principais referências do filme. Além do Tio Patinhas, fala-se do filme Bambi – cujo lançamento no fim dos anos 1950 teria favorecido o movimento ecologista por traumatizar os baby-boomers com a morte da mãe de Bambi pelos caçadores – e sobretudo de A Dama e o Vagabundo, em uma cena chave em que se enfrentam os dois pretendentes de Alice, Josh (o bipolar assistente do promotor) e Des (o gerente cocainômano do Club), cada um se identificando sem admitir com um dos  personagens do desenho animado: Josh com o fiel Joca [Scotty], Des com o fanfarrão Vagabundo, e Alice com a “loira” Lady (1). Criar personagens simpáticos com os quais o leitor se identifique e os fazer passar por uma série de problemas é a receita para um best-seller segundo Scott Meredith (célebre agente literária), como é mencionado no começo do filme, uma receita que se aplica perfeitamente a Walt Disney. Na falta do sucesso, permite-se pelo menos multiplicar a ficção. Como em Salinger – pensemos nas aventuras extraordinárias de O Gargalhada –, como em Whit Stillman: através não do que vivem os personagens, mas do que eles dizem. A aventura está ali: é nos diálogos em que se exprime toda a vida do cinema de Stillman. Em Barcelona, Chris Eigeman, o ator stillmaniano por excelência, explica que cada conversa tem seu próprio ritmo, que quem fala está mesmo em uma espécie de ímpeto em que se pode muitas vezes dizer coisas que não deveriam ser ditas. Este descompasso no discurso é típico nos diálogos de Stillman, seja qual for o assunto (de corrida de barcos à crítica mais ácida), até o ponto de fervura a exceder o outro interlocutor (“Oh, give me a break!” é uma das expressões favoritas de Stillman). (...)

Como se trata da Disco, as coisas são aparentemente mais simples, o declínio está sugerido no título, The Last Days of Disco. O filme supostamente se passa em 1979, ano das primeiras grandes manifestações anti-discoteca (“Disco Sucks!”). Porém, Stillman não está interessado na oposição pró e anti-discoteca, mas sim nas que estão dentre os frequentadores da noite. E sobretudo, entre os yuppies e os outros. A fronteira é a entrada do Club. Impossível de ser ultrapassada quando se é um yuppie – um leão de chácara, verdadeiro Cérbero, vigia a porta –, ainda pior se trabalhar com publicidade, a menos que se disfarce para entrar pela porta dos fundos. Mas o mais importante, claro, são as ligações dos yuppies entre eles, através de seus olhares na discoteca. Alice e Charlotte, evitando sair com alguém que trabalhasse na mesma área que elas, veem o Club como o ponto social por excelência, o único lugar onde podem se divertir esperando por encontros verdadeiros. Para Charlotte, encontros principalmente sexuais, prolongando seu prazer na dança – “antes da Disco, não se sabia dançar neste país”, diz –, mesmo sob risco de pegar uma DST (outro acrônimo, uma marca de Stillman), o que não é totalmente desinteressante, já que permite voltar a falar com ex-namorados. Para Alice, encontros mais amorosos, sendo que após uma primeira tentativa frustrada por um comportamento sexy demais encontrará o amor em Josh, o assistente do promotor cuja condição mental é o reflexo da discoteca: Josh é maníaco-depressivo. Ele descobre o Club, onde “pode-se beber, dançar, bater papo, trocar opiniões e ideias”, em plena fase de euforia, que corresponde aos últimos momentos gloriosos da Disco. Participando da investigação que levará ao fechamento do Club, precipitará sem saber o fim do movimento. E possivelmente, para ele, uma fase depressiva... O epílogo se situa alguns meses depois. A Disco morreu, todos desempregados (exceto Alice, que, como Audrey, de Metropolitan, brilha como editora (2)). Mas para Josh, sua bipolaridade vindo à tona, “a Disco nunca acabará. Viverá sempre nas nossas mentes e corações. Algo assim, que foi grande, importante e maravilhoso, nunca morrerá. Durante alguns anos, talvez muitos, será considerado obsoleto e ridículo. Será deturpado, caricaturado e ridicularizado, ou pior, completamente ignorado. Vão rir do John Travolta e da Olivia Newton-John, dos ternos de poliéster branco, dos sapatos de plataforma e de gestos assim [imita Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite]. Mas isso não tem nada a ver. Quem não entendeu nunca irá entender. Ela voltará um dia. Só espero que seja durante as nossas próprias vidas.” O final no metrô, onde Josh, Alice e todos os passageiros dançam, faz lembrar Fama, mas também, pela canção escolhida – “Love Train” de The O’Jays – que o R’n’B é a base da Disco, a qual não era, afinal, frívola e mercenária. Sua morte não será definitiva. Enquanto não retorna, sobreviverá através de outras músicas. “A esperança faz viver”, poderia ser a conclusão de Os Últimos Embalos da Disco, “mas como em uma corda bamba”, devemos adicionar, parafraseando Paul Valéry. Viver na esperança por sucesso e poder cair a qualquer momento é o destino do yuppie. (...)


O cinema de Whit Stillman, verdadeiro tratado sobre os clichês, é um cinema tipicamente americano – no sentido de, além dos temas que abrange, delimita territórios, com suas fronteiras a cruzar, para ter acesso a um mundo de belezas de uma boate, suas barreiras a vencer, como as da língua ou da instrução, seus espaços a atravessar, uns mais íntimos que outros, como o apartamento-vagão de Os Últimos Embalos da Disco – e ao mesmo tempo bastante atípico. Nos créditos finais de Descobrindo o Amor (2011), lê-se “The spelling of “doufi” is non-standard, but preferred”, ecoando a cena na qual Lily pergunta à Violet o plural de “doofus” (estúpido) e tem como resposta “’Doufi’, porque respeita a raiz latina e “doofuses”, apesar de correta, não é muito elegante”. A diferença não é apenas ortográfica, mas de pronúncia também (há todo um trabalho sobre as pronúncias em Stillman, e este filme é dedicado à Sam Chwat, célebre dialect coach falecido). A arte de Stillman reflete a palavra “doufi”: não convencional. Mas menos em sua escrita, que termina por “respeitar” as regras da comédia (inclusive o happy end), e mais na pronúncia particular de Whit Stillman, a qual confere à sua obra, além da originalidade, uma doçura melancólica.

Notas:
(1) Para Josh, o filme não passa de um manual sobre o amor e o casamento para ensinar às crianças de que os vagabundos bons de papo (como o Vagabundo) são bons partidos para garotas gentis de boas famílias (estilo Lady), enquanto que para Des,
o que importa é que o Vagabundo mudou ao descobrir o amor, que ele se tornou um homem de família modelo. Alice, que acha o filme deprimente, é seduzida pelas palavras de Josh, a ponto de concluir: "Joca é o personagem mais belo, o filme teria sido muito melhor se Lady tivesse terminado com ele", uma fórmula que obviamente antecipa os últimos momentos do filme.
(2) Audrey, personagem de Metropolitan (1990), reaparece em Os últimos embalos da Disco como uma editora-chefe prodígio.

"Le charm discret de Whit Stillman" foi publicado na revista Traffic nº 86 (primavera de 2013). Seleção dos trechos e tradução por Giovanni Comodo.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Cineclube do Atalante: Os Últimos Embalos da Disco


No início dos anos 80, fim da era disco, duas jovens recém-formadas que trabalham numa editora dançam e se divertem à noite em uma boate chique de Nova York. Uma é tímida e conservadora; a outra, sexy e extrovertida. Aos poucos, começam os conflitos.

Dirigido por Whit Stillman.

(The Last Days of Disco: EUA, 1998 - 115 min. Com Chloë Sevigny, Kate Beckinsale, Chris Egelman. 14 anos.)

Serviço:
Sábado, 23 de março
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

terça-feira, 12 de março de 2019

Clube do Filme: Hiroshima, meu amor


O Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias continua em março. À semelhança de um clube do livro, toda quarta quarta-feira do mês  nos encontramos para a discussão de um filme e textos relacionados. Com foco na Nouvelle Vague, o Clube se propõe a discutir as renovações técnicas, temáticas e filosóficas propostas pela crítica da época e seu cinema, que tomou de assalto a França e o mundo.

Neste mês, o ponto de partida é "Hiroshima, meu amor" (1959) de Alain Resnais.

Rohmer: Mas uma vez que se trata de um equivalência profunda, talvez Hiroshima seja um filme completamente novo. (...) E tenho algumas reservas, na medida em que certos elementos de Hiroshima não me seduziram tanto como outros. Nas primeiras imagens havia algo que me incomodava. De seguida, rapidamente, o filme faz-me desaparecer esta sensação de incômodo. No entanto, compreendo que se pode amar e admirar Hiroshima e, ao mesmo tempo, considerá-lo irritante em certos momentos.

Doniol-Valcroze: Moralmente ou esteticamente?

Godard: É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral.

O trecho acima pertence a uma mesa redonda realizada na época, "Hiroshima, notre amour", na qual alguns dos principais críticos (e futuros realizadores) tentavam compreender os impactos imediatos do filme. A ética na arte, horror e beleza, modernidade e iconoclastia, esquerda e direita são alguns dos temas abordados.

Os textos para leitura (recomendada, não obrigatória):
1) "Hiroshima, notre amour" (disponível em português em https://cine-resort.blogspot.com/2012/11/hiroshima-notre-amour_15.html)

Serviço:
Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias
"Hiroshima, meu amor" (Hiroshima, Mon Amour, 1959), de Alain Resnais
Dia 27/03 (quarta quarta-feira do mês)
Das 19h15 às 21h45
Na Casa do Contador de Histórias
(Rua Trajano Reis, 325, São Francisco - Curitiba)
ENTRADA FRANCA
*
Devido ao horário, não será exibido o filme na íntegra, mas alguns trechos (do filme indicado, de outros) ou mesmo curtas devem ser apresentados como pontos relevantes para a conversa.

Realização: Coletivo Atalante e Casa do Contador de Histórias

sábado, 9 de março de 2019

Noites de Lua Cheia, de Eric Rohmer

Por Serge Daney

Eric Rohmer, com seu humor sóbrio, seduz seu espectador, arma para sua heroína e coloca seu cinema em um alto nível de maestria.



Não há somente prazer em ver um filme de Éric Rohmer, há prazer em vê-lo suceder tão rápido outro filme de Éric Rohmer. Este prazer, tornado tão raro, da série. Nesses tempos em que o cinema francês perde-se em busca de “nichos”, um cineasta que combina uma vez por ano os elementos de um mundo que é somente dele é, de todo modo, um homem precioso. 

Seu nicho, Rohmer encontrou-o há muito tempo e é suficiente ler a apaixonante coletânea de seus antigos artigos (Le Goût de la beauté, publicado pela Cahiers du cinéma) para entender que ele fala sério. Rohmer começou por trabalhar para fixar alguns princípios (advindos de um bazinismo muito rigoroso), depois ele desobstruiu uma cena para fazer aparecer (comparecer seria mais exato) os personagens. Ele balizou seu território, teoricamente no começo, eroticamente em seguida. Um autor? Um homem que conseguiu filmar apenas aquilo ou aqueles que lhe interessam. 

Como é o último Rohmer? Como os outros, diríamos (e teríamos razão: nosso homem é repetitivo). Muito diferente dos outros, diríamos (e teríamos ainda razão, já que nós aprendemos a perceber – e a provar– a mínima variação dentro do coração da série). A série (depois dos Contos Morais, as Comédias e Provérbios) nos liberta do fardo de julgar cada filme como se ele fosse o último e nos deixa livres para “escolher” aquele que melhor nos convém. Prestidigitador e moralista, Rohmer não pode mais “falhar” em um filme. Seu sistema é muito pensado, muito ponderado, muito perfeito. É por isso, depois do fracasso de Perceval, o Galês (que é para Rohmer o que A Terra dos Faraós foi para seu mestre Howard Hawks: um passo muito grande, lá onde ele não conseguia dar pé, no turbilhão dos figurinos de época), nos colocamos cada vez menos a questão de saber se “o último Rohmer” é bem sucedido ou não e cada vez mais de saber se ele irá nos agradar, pessoalmente. 

Noites de lua cheia é, à primeira vista, um filme grave, áspero, pouco divertido, um pouco cruel e, obviamente, irrefutável, Rohmer, ninguém há de negar, continuará o etnólogo número um da sociedade francesa de seu tempo. Como todo etnólogo, ele vive de uma contradição: ele só ama seus selvagens mas ele os vê sempre “do exterior”, como a soma perfeita dos gestos que eles são capazes, das palavras que eles vestem e dos hábitos dos quais eles se cobrem. Este etnógrafo não ama todas as tribos, quase nenhuma na verdade. Ele estuda apenas uma (a chamaremos “burguesia francesa”) e ele é especializado em dois subgrupos (os chamaremos de “grande” e “pequena burguesia”). São grupos tagarelas que usam as palavras da língua francesa não somente para dizer não importa o que, mas para “fazer cinema” sobre a natureza de seus desejos. Trata-se, em geral, de um desejo de liberdade (no sentido restrito de “livre arbítrio”). Impávido, Rohmer os prende na armadilha de suas palavras e lembra-os secamente que seus desejos não existem para além dessas palavras que eles gargarejam. Cada pequena narrativa se fecha sobre a punição daquele (daquela, geralmente) que tomou a bexiga do seu discurso pelas lanternas do real. E como dizia Chandler: “There’s no trap so deadly as the trap you set for yourself.

Quando ele filma os burgueses (aqueles que não trabalham de verdade, que não estão cansados, que são elegantes), Rohmer adota um tom veranista e sensual e pisoteia os canteiros de flores de Marcel Dassault (Pauline na praia). Quando ele filma os pequenos burgueses (aqueles que têm problemas de horário, de transporte, de trabalho, que têm que dar duro apesar do nariz empinado), Rohmer adota uma luz fria, com azuis fracos, corpos desossados, cenários feios, sem pena para aquilo que tem de naif e de apático em seu mundo. 

É a esta tribo ingrata que pertencem os personagens de Noites de Lua Cheia. A ação gira em torno de um apartamento, aquele que Louise (Pascale Ogier, simplesmente impressionante) quer morar também, já que ela já vive com Rémy (Tcheky Karyo, sim, um ator a ser seguido) na região parisiense. Louise acredita que sua liberdade de mulher depende da sua possibilidade de escolha entre essas duas “casas”, uma para ela em casal e uma para ela solteira. Evidentemente, ela engana-se e toda a história do filme será a demonstração desse erro de partida. 

Não podemos contar o filme. Podemos somente dizer que Rohmer não deixa nada ao léu, como se ele experimentasse um prazer soberano em mostrar o mínimo mecanismo da armadilha que vai se fechar sobre Louise. E um prazer ainda maior (beirando a perversão) de fazer crer que, quem sabe, a armadilha talvez não se feche. Ele sabe, melhor que qualquer um, fazer o espectador aceitar um ponto de partida artificial para melhor lembrá-lo, no fim do percurso, que ele fez mal em aceitá-lo.

Mas como tudo é irrecusável, rápido e preciso no detalhe da mise-en-scène, esquecemos de nos perguntar onde se encaixa o conjunto. É a ilusão do movimento verdadeiro que nos faz perder de vista a realidade dos sentimentos simulados. Aí está a armadilha. Deliciosa e amarga, conforme nos identificamos com os personagens rohmerianos ou ao Rohmer marionetista (e comigo, eu admito, é assim, mas eu gosto ainda mais dos filmes de Rohmer em que eu também gosto dos personagens: A Marquesa d’O, A Mulher do Aviador). 

Ao longo dos seus ires e vires Paris-subúrbio, Louise frequenta diversos personagens. Mas há uma diferença entre ela e eles. Louise mente a ela mesma (sua segunda casa não é a que a aproxima da sua liberdade mas a que a joga para a solidão) e isso porque ela é de uma só vez patética e irritante. Os outros se contentam em mentir para ela. É porque são medíocres. Há também dois retratos dos homens em Noites de Lua Cheia que não são exatamente a propaganda de “homens de verdade”, mas duas destruidoras pinturas dos machos como eles são. Rémy, o bom Rémy, que construiu cidades novas perto de Paris e que, cobaia caseira, aceita viver nelas, o Rémy possessivo que diz ter achado em Louise “um absoluto” e que a trairá no momento em que ela virar as costas. Octave (Fabrice Luchini, de uma fanfarronice assustadora) o companheiro-melhor amigo que, subitamente incapaz de se segurar, fará uma cena pífia a Louise. 

Há uma acentuação da duração no filme. As relações homem-mulher não se ajeitam. Mulheres que fazem joguete com a ideia da sua liberdade (não se trata jamais de “liberação” que, por uma trapaça assaz hipócrita, Rohmer supõe já ter sido conquistada) e homens que se colocam como agradáveis companheiros-amorosos gélidos e que retornam durante o filme a um estado bestial (o estupro, a possessão doentia) que Rohmer, certamente, não filma nunca (é muito sujo) mas que ele tangencia às vezes. Há violência neste Noites de Lua Cheia, e não somente no incansável bate-pronto dos diálogos. Violência do tapa que não sai do braço de Rémy (ele bate o cotovelo, o que se torna uma gag), violência do interrogatório de Octave, ciumento e obstinado, quase um estupro. Louise sozinha em cena, sonhando em voz alta, escrava de seu capricho, presa na rede inócua dos homens, Louise, pensando bem, é heroica. 

Rohmer é, em certo sentido, o cineasta contemporâneo do feminismo e se ele é visto hoje como um cineasta tão atual – ele que é resolutamente estrangeiro às modas e que passa sua vida a se bater com a ideia de “modernidade” – é porque seus filmes mais recentes coincidem com o desaparecimento do discurso feminista. É o velho tema literário da “mulher livre” que já havia tratado, de uma maneira muito final do século XIX, em Minha Noite com Ela, que retorna, sob formas mais “antenadas” nas Comédias e Provérbios. Perceval, o ingênuo místico, foi o último personagem masculino e rohmeriano ainda capaz de cometer equívocos sobre seu desejo. Depois, todos os homens (mesmo os jovens) se dedicam à covardia daqueles que sabem muito bem o que eles querem conseguir. Sobram as mulheres. Somente elas se “beneficiam” desse grande privilégio, o de não confundir o desejo com a satisfação do desejo. 

É porque o etnólogo é, mais fundamentalmente, um teólogo, em que o enredo de predileção será o da imaculada conceição. As mulheres “se fazem ter” (em todas as acepções do termo) justamente onde elas não estão (a Marquesa d’O durante seu sono, Louise depois que ela se ausenta do domicílio conjugal) e nunca onde elas estão. E as mulheres “livres” sonham apenas em guardar por mais tempo possível seu quarto de moça. Não esqueçamos a dolorosa precisão com a qual Rohmer já cartografou um bom número de quartos de moças (o de Marie Rivière em A Mulher do Aviador, o de Béatrice Romand em O Casamento Perfeito). O etnólogo que se camufla toma então um ar de confessor sadiano ou de educador amoroso. 

O charme oblíquo dos filmes de Rohmer tem uma razão simples: é muito difícil de se identificar com seus personagens. Patéticos e irritantes, como crianças mimadas. É porque Rohmer pratica uma forma de brechtianismo perverso. No começo, quase que por convenção, ele nos propõe nos “aproximarmos” do personagem que, por seus caprichos, coloca em movimento a ficção. Mas o momento em que nós entendemos que esse personagem está indo em direção a uma punição merecida e que somos obrigados a largá-los (para vê-los “mais de longe”) é precisamente aquele que o autor esperava para ficar frente a frente com o seu personagem, para o consolar e para gozar com suas lágrimas. 

Não protestemos muito. Aí está a própria definição do “filme de autor” no cinema moderno. O autor “clássico” (diríamos Renoir) doaria a nós seus personagens e nem pensaria em repreendê-los. Era a sua generosidade. O autor moderno tem ciúmes de seu espectador. Sua arte, no máximo, consiste em nos conduzir à porta do quarto. Podemos chamar isso de “distanciamento”. De todo modo, ele engoliu a chave. 

4 de setembro de 1984


Les nuits de la pleine lune
foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 157-162. Tradução de Cauby Monteiro. Retirado de https://vestidosemcostura.blogspot.com/2017/10/noites-de-lua-cheia-de-eric-rohmer.html