sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Oficina de crítica cinematográfica


Cinema é a arte das imagens em movimento. Como arte é o canal de expressão de homens e mulheres que concebem o mundo sob um prisma poético. Como imagens é o espelho da humanidade nos últimos 120 anos: suas ilusões, vergonhas, vitórias e medos projetados em 24 quadros por segundo. E como movimento é a música da luz, a montanha russa nas mais impressionantes paisagens do inconsciente.

Tudo isso, porém, quase sempre passa batido na nossa convencional fruição de filmes. A dieta viciada de audiovisual imposta pela grande e pequena indústria de imagens nos impede de observar o universo por trás dos "roteiros e atuações".

Nesse sentido a Oficina de Crítica Cinematográfica, ministrado por Miguel Haoni (do Coletivo Atalante), propõe, com a ajuda da História Contemporânea e da Filosofia da Arte, lançar outro olhar sobre o fenômeno audiovisual artístico.

A oficina pretende observar como diferentes cineastas concebiam a arte em contextos chave de sua história. A partir do debate crítico, leitura de textos e análise de filmes investigaremos de que maneira esta linguagem de imagens é tecida na construção de discursos e sensações, configurando parte fundamental de nossa experiência no mundo contemporâneo.

1° Unidade - O neo-realismo de Roberto Rossellini: Uma investigação sobre o percurso do mestre italiano e seu amadurecimento ético-estético no pós-Segunda Guerra Mundial;

2° Unidade - Tempo e memória no cinema moderno: O estudo dos mecanismos cinematográficos para a representação da experiência e dos abismos temporais do indivíduo e suas sociedades;

3° Unidade - O cinema político de Claude Chabrol: A análise dos retratos ácidos da burguesia e da luta de classes nos dramas criminais do mestre francês do suspense .

Sobre a oficina:
Oficina de crítica cinematográfica (ministrada por Miguel Haoni do Coletivo Atalante) oferecerá uma abordagem teórica do cinema a partir do estudo de textos fundamentais e da apreciação de filmes. Filmes e textos, permitirão um percurso geral e específico em alguns capítulos essenciais da história recente do cinema.

Começaremos estudando a pequena revolução moderna perpetrada por Roberto Rossellini em seus filmes sociais e íntimos, católicos e existencialistas. Na sequência introduziremos a reflexão sobre a expressão cinematográfica da dimensão temporal e de como ela se completa na relação entre filme e espectador. Por fim, uma abertura sobre os pontos de interação entre o thriller e a reflexão política no cinema de Claude Chabrol.

Com este recorte, ao mesmo tempo amplo e restrito, a oficina pretende a formação do olhar crítico com embasamento histórico sobre a arte cinematográfica e suas diversas dimensões.


Programa:

Sobre o neo-realismo de Roberto Rossellini:
"Rossellini foi realmente e ainda é neo-realista? Parece-me que você lhe concederá o ter sido. Como contestar, com efeito, o papel desempenhado por Roma cidade aberta e Paisá, na instauração e no desenvolvimento do neo-realismo? Mas você descobrirá sua 'involução', já sensível em Alemanha ano zero, decisiva, segundo você, a partir deStromboli e de Francisco arauto de Deus; catastrófica com Europa 51 eViagem á Itália. Ora, de que acusam essencialmente tal itinerário estético? De abandonar cada vez mais aparentemente a preocupação do realismo social, da crônica da atualidade em prol, é verdade, de uma mensagem moral cada vez mais sensível, mensagem moral que podemos, conforme o grau de má vontade, solidarizar com uma das duas tendências políticas italianas. Recuso de saída deixar descer o debate para esse terreno por demais contingente. Mesmo se houvesse simpatias democratas-cristãs (da qual não conheço nenhuma prova pública ou privada), Rossellini não seria por isso excluído a priori como artista de qualquer possibilidade neo-realista. Deixemos isso. É verdade, todavia, que se tem o direito de recusar o postulado moral ou espiritual que cada vez mais claramente se mostra na obra, mas tal recusa não implicaria a recusa estética na qual se realiza a mensagem, a não ser se os filmes de Rossellini fossem filmes de tese, isto é, que se reduzem a dar uma forma dramática às ideias a priori. Ora, não há diretor italiano cujas invenções possam ser menos dissociadas da forma, e é justamente a partir daí que eu gostaria de caracterizar seu neo-realismo"
(André Bazin, Defesa de Rossellini)

Sobre o cinema moderno:
"Nos Cahiers, o bazinismo modernizado é substituído por um retorno a Eisenstein e Vertov, e o cinema de montagem retoma a palavra decisivamente. A crítica à 'fascinação pela imagem' e ao reinado da continuidade é feita através de uma ostensiva defesa da manipulação do material sonoro e visual - nesta manipulação está localizado o trabalho produtivo essencial. Mesmo o elogio de Jean-Louis Commoli ao cinema direto é feito em outros termos, não mais apoiado na ideia de uma verdade registrada (extraída do real), mas na ideia de que os métodos do cinema direto desafiam a 'representação' (projeção na tela de uma significação que pré-existe ao discurso) e afirmam a ideia de 'produção de significado' pelo trabalho de transformação e desrealização que a filmagem/montagem opera. No texto coletivo, 'Questão teórica' (n.210, 3/1969), Silvie Pierre, Commoli e Narboni, entre outros, afirmam a montagem descontínua, (portanto, algo que rompe com a decupagem clássica e com o bazinismo) como única forma 'não-reacionária' de fazer cinema. Contra o óbvio e o filme 'pleno de sentido', como Garroni, defendem a 'linguagem obscura' de Straub, o discurso de Godard, as experiências da vanguarda americana e o cinema da 'interdição do sentido' de Jean Daniel Pollet."
(Ismail Xavier, A desconstrução)

Sobre Claude Chabrol:
"Poucos terão reunido o unanimismo que ele conseguiu. O último dos críticos, convidado a pronunciar-se sobre a sua obra, dirá: prolífico e irregular. E ninguém levantará um dedo para contestar. Todavia, debaixo dessa ponta do 'iceberg', as constantes são inúmeras e, julgo eu, surpreendentes: os seus quarenta filmes são um permanente jogo com as leis do mercado, apostando nas regras da produção estabelecida (nem sequer se furtando ao confronto com a grande maquinaria televisiva); os atores formam uma família que regressa em cada filme (Stéphane Audran, Bernadette Lafont, Jean-Claude Brialy, Michel Bouquet), dando corpo a séries cuja regularidade e coerência começam a levantar a suspeita de que a visão global da obra - da obra enquanto construção, naquele sentido languiano que Chabrol tanto defende - é mais do que a simples soma das partes; o mesmo vale ainda para as 'séries' que Paul Gégauff, enquanto argumentista, e Jean Rabier, seu eterno diretor de fotografia, poderiam encabeçar; por fim há esse seu regularíssimo uso dos gêneros e das convenções sob a qual invariavelmente se descobre a mesma figura de desdobramento (Charles e Paul), o mesmo triângulo afetivo aproximando-se perigosamente da explosão irracional e do crime"
(M. S. Fonseca, De Paul a Charles passando por Hélène)

Referências bibliográficas:
BAZIN, André. O cinema - Ensaios. Brasiliense: São Paulo, 1991.
Blog Dicionários de Cinema: http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/
Foco revista de cinema: http://focorevistadecinema.com.br/
FONSECA, M. S. Claude Chabrol. Cinemateca Portuguesa: Lisboa, 1987.
OLIVEIRA JR, Luiz Carlos. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno. São Paulo, 2015.

Referências fílmicas:
A flor do mal. Claude Chabrol. FRA. 2003. cor. 104 min.
Europa '51. Roberto Rossellini. ITA. 1952. p&b. 113 min.
La Jetée. Chris Marker. FRA. 1962. p&b. 29 min.
Mulheres diabólicas. Claude Chabrol. FRA. 1995. cor. 112 min.

Serviço: Carga horária: 24 horas
dias 4, 5, 6, 7, 11, 12, 13 e 14/04 (primeira quinzena de abril)
(de segunda a quinta)das 19 às 22 horasno Núcleo Cine(Rua Belém, 888 - Cabral- Curitiba/PR)
Inscrições pelo email: coletivoatalante@gmail.com
Investimento: R$120,00
VAGAS LIMITADAS
Realização: Núcleo Cine e Coletivo Atalante 

Cinefap: "Depois do Vendaval", de John Ford


O Cinefap realiza sua primeira sessão do ano com "Depois do Vendaval" (The Quiet Man, 1952), de John Ford, em homenagem a Maureen O'Hara. Depois da sessão, debate mediado por um dos integrantes do cineclube.

Sessão:
dia 29/02 (segunda)
às 19h
na Faculdade de Artes do Paraná, auditório Antonio Melillo 
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral) 
ENTRADA FRANCA

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Eric Rohmer, por Serge Daney


Primeira qualidade do cinema de Rohmer: a paciência. Não somente no caso de um homem seguro de si o suficiente para se impor- ao termo de um longa-metragem e de alguns filmes pedagógicos- como um dos “grandes” do jovem cinema francês. Mas também em uma obra onde tudo nos leva a esta virtude primordial: saber esperar, aprender a ver; ambas as atitudes são, graças ao cinema, uma única e mesma coisa. Como se o mundo não passasse de um imenso repertório de lições de coisas, repertório este do qual nunca se fez realmente o inventário.
O primeiro olhar não ensina nada. Mas há por detrás da neutralidade das aparências – em Rohmer, nada é sublinhado, e ainda menos privilegiado- uma lição a merecer, uma ordem a descobrir, uma verdade a pôr em evidência. Esta lenta maturação constituirá o próprio tempo do filme, ou seja: ela, longe de excluir os tempos mortos e os detalhes, apenas será possível por meio destes.
O princípio é simples então: catapultar idéias contra experiências, observar escrupulosamente e ver o que resulta daí. A experiência é para Rohmer um pouco o que foi para Hawks: a única realidade, que nos informa onde estão o possível e o impossível, recusando o segundo, buscando esgotar o primeiro. Toda idéia que não foi experimentada- ou seja: encarnada, filmada- não existe. A mesma coisa com os personagens: para que lhes seja consentido “ver” alguma coisa, é-lhes necessário um périplo, uma iniciação, uma prova ao termo da qual eles terão merecido o que já possuíam, mas que deveria tornar-se mais interior ( devenir plus intérieur), melhor assimilado por eles. No Signo do leão, é preciso merecer a riqueza por meio de um teste de pobreza que o obriga a redescobrir tudo; logo, a ver melhor. A mesma situação, só que num registro menos grave em La Boulangère de Monceau.
A experiência exige a maior honestidade possível, muitos escrúpulos e meticulosidade. Mas Rohmer é o cineasta assombrado pela geografia, as cidades, os mapas, as pedras, tudo o que pode oferecer esta resistência impessoal que torna as aventuras humanas mais exemplares.
A ficção, contudo, é sempre uma fraude; é preciso dissimular, gerir seus efeitos. É justamente o contrário que ocorre com os filmes pedagógicos, onde Rohmer reencontra a paixão da precisão, o ódio do “flou” e da entropia, a beleza de um raciocínio e o caráter inelutável de toda experiência. Nos Cabinets de physique au XVIII siècle, que é talvez sua obra-prima, é-lhe suficiente filmar uma experiência de Física, passo a passo, para que nasça a emoção mais simples. E a mais estranha também, pois nascida unicamente da exatidão.

Dictionnaire du cinema, Éditions universitaires, 1966
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Texto original: http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2008/12/eric-rohmer-por-serge-daney.html

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "A árvore, o prefeito e a mediateca" de Eric Rohmer


1992. Julien Dechaumes (Pascal Greggory) é o prefeito socialista de uma pequena cidade francesa. Com a ajuda de seus contatos em Paris, ele conhece a quantia necessária para a construção de uma grande casa multimídia que, segundo ele, será a grande realização de sua administração. Porém ocorrem as eleições parlamentares e o Partido Socialista perde a maioria que obtinha. Este e outros problemas inesperados atrapalham os planos do perfeito e sua intenção de construir uma mediateca.

Serviço:
20 de fevereiro (sábado)
às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A BELA INTRIGANTE, Jacques Rivette, 1991


por João Bénard da Costa

Começo pelo título. Que quer dizer “noiseuse”? A palavra há muito deixou o léxico habitual e as próprias personagens do filme se interrogam sobre o seu significado. Marianne (Emmanuelle Béart), a personagem que vai servir de modelo durante quase todo o filme, traduz “noiseuse” por “chata” (“emmerdeuse”). Em Portugal, traduziram por “impertinente” (A Bela Impertinente foi o título que por cá lhe deram, em 1992) o que não me parece nada pertinente. Marianne não é chata e nunca é impertinente. Não é isso. Checher noise, aprende-se no dicionário, é procurar questões ou disputas por coisas pouco importantes (noise é corruptela popular de nausée). Em que ficamos? Enjoativa? Embirrenta? Por mim, prefiro quezilentaA Bela Quezilenta parece-me título bem mais fiel.

Marianne também não é muito quezilenta? A ver. Mas entre Frenhofer, o pintor (Michel Piccoli) e Marianne é de “chercher noise” que se trata e quezilentas são não só as relações entre pintor e modelo como as relações entre ambos e o quadro, ou as relações entre os dois casais. Quezilenta é a relação capital entre imagens e os sons neste filme. E quezilento talvez seja a melhor definição para o cinema de Rivette, desde Paris nous appartient (filmado em 1958 e estreado em 1961) até Jeanne la Pucelle (1995).

Quezilento tem ainda a “vantagem” de lembrar esquisito, esse esquisito adjetivo que em português se tornou pejorativo e em francês ou espanhol guardou o significado original de precioso, primoroso, raro. “Por que será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ela perde o jeito e fica assim esquisita?” interrogava-se Monteiro Lobato. Isto de palavras muda muito e tanto que, às voltas com dicionários, encontrei um esquisitíssimo verso de Gabriel Pereira de Castro (século XVIII) que resume mais ou menos o que passa em La belle noiseuse: “Para um retrete a leva em que detinha / A vista nas pinturas esquisitas / Da história que o pintor insigne tinha / Em viva e muda poesia escritas”. E em sentidos que já não se usam (como noiseuse) é para “um retrete” que o pintor leva o seu modelo e é “num retrete” que pinta “a pintura esquisita” que, depois, fechou para sempre num armário. E é chegada a altura de me deixar de tanta esquisitice (palavra puxa palavra), de deixar de chercher noise e de passar a outras quezílias.

La belle noiseuse é, na origem, uma livre adaptação do conto de Balzac Le chef d’oeuvre inconnu, história de um pintor que fechou a sete chaves a sua obra-prima. No filme, a ação situa-se em casa do pintor Frenhofer e da sua mulher Liz (Jane Birkin) quando recebem a visita do casal Marianne e Nicolas (David Bursztein). Há um jantar e uma aposta. Frenhofer pergunta a Marianne se esta aceita perder Nicolas por um quadro. Há uma série de quezílias nessa noite e depois desse convite. Mas antes de adormecer (cabeça tapada), Marianne diz a Nicolas “Boa noite, meu amor.” Et le lendemain matin...

E, no dia seguinte de manhã, começa a série de poses de Marianne, no “retrete” de Frenhofer, para o quadro que dá o título ao filme em que Marianne deve ser o modelo do nu feminino dele.

A primeira “sessão” é um dos exemplos supremos da quezilenta e esquisita arte de Rivette. Tempo, muito tempo. O tempo da mise en place do atelier e dos corpos nele. O tempo que demora até que ela abra o roupão e fique nua. Frenhofer não teve de lho dizer, lho pedir ou lho mandar. Os saltos no desconhecido dão-se muito depressa, mas depois de muito tempo.

Frenhofer cala-se. Marianne cala-se (ao princípio, nas primeiras sessões de pose, quase não dizem nada). Mas não se faz silêncio, mas não há silêncio. Há os ruídos quezilentos do lápis que risca, do carvão que raspa, do pincel que esfrega. Todos esses ruídos, tão quezilentoscomo uma unha que risca uma parede, dizem o indivisível, dizem que alguma coisa se pôs em marcha e não vai parar. São como o tique-taque de um relógio, medem o tempo, todo aquele tempo, dilatado e dilatador.

Ouve-se, de Stravinsky, a peça chamada Agon, que quer dizer combate. Mas os ruídos não são ruídos de combate, que ainda não existe, entre Frenhofer e seu modelo. São ruídos quezilentos, entre irritantes e exasperantes. E é a propósito deles (e porque talvez esteja consciente da quezília deles) que Frenhofer começa a falar da pintura e a dizer que, na origem dela, estão “la mer et la fôret mélées”, que é aliás uma citação de Matisse (são textos de Matisse e de Bram Van Velde que, livremente pirateados por Rivette, servem de base às longas digressões teóricas de Frenhofer sobre a pintura). “Le murmure de la fôret constant comme le bruit de la mer”. Dele nasce a pintura, ou o que está antes da pintura. Ou o que está antes da quezília entre Frenhofer e Marianne.

A quezília avança à medida que o quadro avança (horas, dias), à medida que a relação erótica ou a relação de pose se configuram. À medida que o nosso voyeurismo (em relação inversa ao do pintor) decresce, à medida que nos habituamos tanto à nudez de Marianne como ela própria se habitua. Ao princípio, esperamos para ver Marianne nua. E, se nunca nos esquecemos que estamos diante de uma mulher nua, completamente nua, o que progressivamente nos interessa não é o corpo mas o que está dentro do corpo. Mas reparamos. E reparamos que, nos dois primeiros dias, Marianne veste o roupão, no intervalo entre cada pose, e nos dois últimos deixa de o vestir, deixa-se ficar nua, como se a nudez fosse o seu estado natural, como se ela própria se esquecesse que estava nua. Nunca um filme nos deu tanto a ver de um corpo. Mas nunca um corpo foi tão visto como ocultação de outra coisa. “La possession c’est impossible. Faut tout lâcher. Et c’est ça que fait peur.

Sempre os filmes de Rivette me fizeram medo, mas nunca nenhum como este. Porque nunca é a narrativa (sempre o aspecto mais trêmulo dos filmes de Rivette, à exceção de La religieuse) o que me interessa. Não me interessa saber se Marianne vai continuar a viver com Nicolas ou se Frenhofer vai continuar a viver com Liz. Não me interessa conhecer o que se passou antes do encontro dos casais, saber, por exemplo, porque é que, um dia, Marianne se quis atirar para debaixo do metrô ou que relação existiu entre Liz e o amigo do pintor, Porbus (Gilles Arbone). Mesmo a solução da quezília (a tal história da obra-prima desconhecida) não me apaixona por aí além.

O que me fascina é o duplo jogo pintura-cinema, é o tempo que vão durar as poses, é o tempo que leva a habituarmo-nos à nudez de Marianne (e a ela a habituar-se a estar nua diante de Frenhofer e diante da câmera e a Frenhofer a habituar-se a vê-la nua e a Rivette a habituar-se a vê-la nua). É o que é dito e o que não é dito. São os ruídos, a música, a floresta, o mar. É essa quezília que me fascina. Ficar agarrado a uma beleza e a um adjetivo: belle noiseuse. E a um traço (o que é o traço?). E a um plano (o que é um plano?). E não sentir mais tempo nenhum, nem sequer o das quatro horas de projeção que o filme dura.

O tema inicial do filme (em torno de uma fotografia) é o voyeurismo. Depois, começa o tema rivettiano da conspiração. Frenhofer esqueceu-se ou não se esqueceu do convite que fez a Nicolas e a Marianne? Liz sabe do convite e das razões dele? Por que é que o pintor demora tanto tempo a vir receber os seus convidados?

E, depois, há um plano surpreendente quando todos visitam o atelier. Já tinham visto as quimeras. Já Nicolas tinha dito: “Il se passe quelque chose de bizarre”. Marianne olha os quadros do mestre. Mas olha-os com um olhar que parece não ver nada, um olhar distraído, sem concentração. Erro da atriz? Erro da direção de atores? Saberemos que não quando, muito, muito mais tarde, Marianne diz a Frenhofer que, da primeira vez que entrou no atelier, estava a pensar noutra coisa. Pensava na capela do colégio dos seus tempos de adolescente. No espaço obscuro. E é entre essa memória sagrada e a relação sagrada que se vai estabelecer entre eles que existe aquezília. A quezília que exige sangue, o sangue de que se começa a falar nessa altura e que, muito depois, surgirá na tela do pintor.

Durante as primeiras sessões de pose, de cada vez que Frenhofer toca no corpo de Marianne, há quezília também. Porque o pintor jamais a toca eroticamente, mas clinicamente, como um médico pode tocar no corpo nu de uma doente. A sensação dominante é a do esforço físico dos dois, do cansaço dos dois. Mas quando - muito mais tarde - ela protesta contra essa relação e lhe pergunta afinal o que quer ele dela, Frenhofer responde-lhe: “C’est pas moi qui veut”. E berra-lhe que não quer saber nem de mamas nem de barriga, nem de pernas nem de rabo. Não é ele. É outrem. E percebemos a mais insólita das apostas de Rivette neste filme: a mão que vemos, a mão que pinta, não é a mão de Piccoli, mas a mão do pintor Bernard Dufour, o verdadeiro autor do quadro e dos quadros. É o tema das quimeras, metade Piccoli, metade Dufour? Em parte. Mas é sobretudo a idéia que nenhum corpo é uno, ou que corpo e eu não são idéias sobreponíveis. Pelas nossas mãos escrevem (ou pintam) outras mãos, como dizia Kafka. E no fim dessa quezília (a mais explosiva cena entre os dois), Marianne adormece. E Rivette manda-nos também descansar, acordar. Intervalo.

Na “segunda parte”, a narrativa condensa-se e adensa-se, sem que nunca saiamos do atelier. Marianne e Liz confundem-se. O tempo é tempo das memórias. Por isso, deixamos de ver o quadro que Frenhofer pinta cada vez mais velozmente. Em vez dele, um nu. De costas, e sem cabeça.

“Surpreendes-me sempre”, diz Liz ao marido, no almoço final. Rivette também me surpreendeu. E surpreendeu-me pensar que a cena do pintor e do modelo é a cena da filmagem do pintor e do modelo. Piccoli e Emmanuelle Béart nus para Rivette. Nus para nós. E é tão bonito ver personagens nus, assim. Nudez de um corpo de mulher. Nudez de um ato de criação. Quanto mais vemos, mais sabemos que nada vimos. E é essa a minha quezília com este filme. Marianne c’est moi, c’était moi. Mas Moi, quem é?

Texto extraído de: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-intrigante.htm

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "A bela intrigante", de Jacques Rivette

Neste domingo, dia 14 excepcionalmente às 15h, o Cineclube da Cinemateca exibe "A bela intrigante", em homenagem ao diretor Jacques Rivette. Sempre com entrada franca!


Cineclube da Cinemateca especial: 
homenagem a Jacques Rivette

Aos 87 anos, morre em Paris um dos leões da história do cinema. Jacques Rivette não foi apenas o mais aguerrido dos fundadores dos Cahiers du Cinéma nem o mais impenetrável cineasta da Nouvelle Vague francesa. Rivette permanecerá para sempre como um autor incontornável, que fez do mistério o motivo central de um cinema críptico que só recentemente, com a atenção dos restauros digitais e das edições comerciais, começa a ser verdadeiramente visto e desvelado.
Que Jacques Rivette era esse assumido inadaptado que evitava entrevistas e aparições públicas? Que Jacques Rivette era esse crítico genial que lançou as fundações da “Política dos Autores”? Que Jacques Rivette era esse engenhoso cineasta que rejuvenescia a cada filme ? (...)(Sabrina D. Marques, In memorian: Jacques Rivette, o leão de Paris)
A Bela Intrigante

(La Belle Noiseuse,  1991/França  – 240 min)
Na região rural da Provença francesa, um pintor sexagenário chamado Édouard Frenhofer, aclamado em toda a Europa vive com sua esposa e musa. Após receber a visita de um jovem artista e sua amante Marianne, que inspiração a Fernhofer para terminar uma pintura que jamais conseguia finalizar "La belle noiseuse", usando Marianne como modelo. O filme explora minuciosamente o renascimento artístico do personagem.

Serviço:
14 de fevereiro (domingo)
excepcionalmente às 15h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Cineclube da Cinemateca: "Sparrow" de Johnnie To

Neste sábado, dia 6, o Cineclube da Cinemateca exibe "Sparrow", de Johnnie To. Sempre com entrada franca!
Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Sparrow" de Johnnie To 


Munindo-se do rigor ascético bressoniano aliado ao poder do movimento demyniano este é o filme em que Johnnie To foi mais ao âmago de suas pretensões formais, abstraindo delas qualquer ornamentação narrativa mais rebuscada que pudesse corroer aquilo que ele procura em cada plano: um estudo cinematográfico dos efeitos da câmera em produzir felicidade, a liberdade de criação, o poder de voar e o amor pelo cinema. Sparrow, em suma, é só isso: cinema. 

Serviço:
6 de fevereiro
às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante