domingo, 30 de outubro de 2016

Entrevista com Raúl Ruiz


 

por Michel Coulombe


Raúl Ruiz é exceção na paisagem cinematográfica francesa. Exilado desde o golpe de Estado chileno, o cineasta, que filma mais rápido que a sombra, realizou, desde seus começos, nos anos 60, mais de 60 longas-metragens e inúmeros curtas-metragens. Longe, aos 60 anos, de afrouxar o ritmo, conseguiu este ano uma admirável dobradinha ao apresentar, um em seguida do outro, dois filmes em competição em Veneza e em Montreal. Enquanto os cinéfilos que assistiam à Mostra puderam ver Comédia da Inocência, interpretado por Isabelle Huppert e Charles Berling, no Festival des films du Monde descobríamos Combate do Amor em Sonho, drama amoroso mascarado por um emaranhado de histórias, justificado por uma combinatória surpreendente.
Mergulhando o espectador num universo que escapa às convenções realistas a aos códigos cinematográficos tradicionais, Ruiz empresta do Filme de Piratas - ele que se diz convencido de que todo chileno sonhou um dia em ser pirata - tanto quanto do conto de fadas, Hans Christian Andersen, nomeadamente. Aqui ele conjura um bordel de religiosas, bolsas sempre cheias de dinheiro, ou evoca de passagem o poder maléfico da internet. Em torno dos atores Elsa Zylberstein, Lambert Wilson, Melvil Poupaud, Christian Vadim e Marie-France Pisier, o cineasta propõe um filme cerrado, atípico, desconcertante ou intrigante, que encontra notavelmente suas origens num livro que ele estudou na escola, o Libro de Buen Amor, longo poema lírico escrito no século XIV por um cônego espanhol, Juan Ruiz.
Mas, em Raúl Ruiz, que tem prazer em desmontar leituras e interpretações, não há jamais uma verdade apenas. O espectador que se perder poderá sempre se debater com uma certa questão proposta por um dos personagens de Combate de Amor em Sonho: se esta história não quer dizer nada, porque contá-la?

 
Ciné-Bulles: Você filma num ritmo frenético.
Ruiz: E no entanto, tal ritmo me parece completamente normal.
Ciné: Você foi comparado a uma mãe siciliana que teria muitos filhos pois sabe que perderá vários. Logo, você tem essa consciência da fragilidade de seu cinema.
Ruiz: Em certa época, muita gente pensava assim. A grande produção musical italiana encontra sua explicação nesta convicção de que a maior parte do que foi feito vai desaparecer. Alguns de meus filmes desapareceram pois o negativo foi destruído, e deles não resta mais que algumas cópias em vídeo. Os negativos foram queimados por acidente ou por simples mal-entendidos.
Ciné: Esta tomada de consciência não é recente pois você trabalha em tal ritmo desde sempre: você escreveu muitas peças de teatro antes de assinar muitos episódios de séries mexicanas e de filmar numerosos filmes, às vezes até seis num único ano.
Ruiz: Insisto, não é o que você pensa. Não me sinto nem um pouco estressado. Um festival me cansa mais que uma filmagem.
Ciné: No caso de Combate de Amor em Sonho, você escrevia à noite e filmava de dia.
Ruiz: Sim, mas conhecia bem os temas. Eu trabalhava a mecânica, fazia vir as coisas por combinação criando pontos entre os temas, que eram nove, distantes um do outro. O filme está a meio-termo do sonho e ainda assim submetido a uma rígida combinatória. Isto é o que na música se chama de sistema serial. Tal sistema permite a abertura, não se deve tomá-lo de maneira tão rigorosa, pois há o risco do resultado se aparentar a algo da Oulipo. O mecanismo terminaria assim por sobrepujar a matéria e isso dá no vazio. Numa palavra, à força de utilizar a combinatória, é o espírito das Mil e Uma Noites que se instala.
Ciné: Você possui uma abordagem bastante lúdica do cinema.
Ruiz: Como a maioria dos que praticam a arte do cinema.
Ciné: Você crê realmente que os realizadores de grandes produções americanas são animados por tal espírito?
Ruiz: Esses não praticam a arte do cinema, mas uma forma de arte aplicada. Antes deles, antes de todos os cineastas formados nas universidades, os Howard Hawks, os Samuel Fuller davam o jamais visto através do que víamos todos os dias.
Ciné: Porque você se coloca em tal situação extrema de não saber jamais, durante a filmagem, o que te espera no dia seguinte?
Ruiz: Na escola, preparava sempre as lições no último minuto. Este hábito permaneceu. O que é preciso, para filmar como filmo, é estar bem preparado, não especificamente para o filme, mas colecionando as possibilidades. Um pouco como os esportistas que se submetem a longas temporadas de treino para serem capazes de correr em tal ou tal competição onde tudo no fim se passa muito rápido. No cinema, mesmo quando nos preparamos longamente, mesmo quando o roteiro está escrito, muitas decisões se tomam no último minuto. Mesmo no caso dos filmes americanos tão bem planificados, como pude constatar ao seguir de perto algumas filmagens. Eu mesmo realizei um pequeno filme americano, The Golden Boat, e sei bem porque não quero mais filmar assim. O lado industrial não me convém. Pora obter qualquer coisa no sistema americano é preciso ser realizador e produtor ao mesmo tempo, de modo que só se filma de cinco em cinco anos. Neste caso se é, forçosamente, um amador. Há alhures filmes onde todo o mundo é profissional, menos o diretor!
Podemos fazer filmes como um músico cria uma ópera e depois uma sonata. Não há vergonha em compor uma sonata. No cinema pode-se filmar um filme caro e depois um pequeno, o que não muda nada, a sério, a invenção. Quando filmei O Tempo Redescoberto, como temia passar por maus bocados - o que não foi o caso - o produtor, Paulo Branco, me prometeu, em troca, um filme no qual eu seria inteiramente livre, e esse filme foi Combate de Amor em Sonho. Agora, preparamos juntos uma adaptação do último romance de Salman Rushdie, O Chão que Ela Pisa, um projeto bastante pesado, custoso. E desta vez obtive dois filmes livres, o que quer dizer dois filmes que custam juntos no máximo três milhões de francos. Meus filmes não são, no conjunto, sucessos comerciais, mas respeito uma certa lógica econômica. Assim, gasto dois milhões de francos na filmagem se sei que o filme, vendido para tal distribuidor, para tal canal de TV, pode cobrir seus gastos.
Ciné: O que corresponde à lógica de produção, nomeadamente, de Éric Rohmer.
Ruiz: Absolutamente. Logo, é preciso preparar o filme mais livre, mais interessante dentro de tais limites.
Ciné: A você foi necessário encontrar uma família cinematográfica pronta a jogar o jogo, a investitr tempo e talento em seus projetos.
Ruiz: Tenho três. Tendo visto o que aconteceu a Fassbinder, um cineasta com quem cruzava regularmente no mítico festival de Rotterdam, e que me parecia bastante infeliz, escolhi evitar as panelinhas. A gente com quem trabalho não depende portanto de mim.
Ciné: Deve-se entender que você convida tal ou tal ator lhes dizendo, sem mais, que os chama para um filme construido em torno de uma análise combinatória?
Ruiz: Isso mesmo, e ao conversar com os atores o filme toma forma. Durante a filmagem de Combate do Amor em Sonho eu me levantava por volta das quatro horas da manhã para escrever o que filmaríamos dois dias mais tarde. Dez dias antes do fim das filmagens, o roteiro estava completo. Não era preciso senão tapar os buracos. Um pouco como na nouvelle vague: Jacques Rivette trabalha ainda desta forma. No caso de A Sereia do Mississsipi, um filme no entanto bastante roteirizado, François Truffaut distribuia pela manhã as páginas que filmava ao meio-dia. Eu, sou um tanto mais prevenido... Monto o filme com minha esposa em paralelo à filmagem, o que me permite saber exatamente onde estou.
Ciné: Você tem sempre prazer em filmar?
Ruiz: Quando rodei meu filme americano, tive momentos de prazer, mas não o tempo todo. Normalmente, tenho mais prazer... No mais, para não perder a mão, filmo durante uma hora, todos os dias, com uma câmera digital. É necessário, de outra forma é como com o piano, esquece-se.
Ciné: Você vem de filmar em seu país de origem, o Chile.
Ruiz: Filmei dois documentários de uma hora e meia sobre o Chile. Uma visão um tanto subjetiva...
Ciné: Qual é sua relação com o Chile hoje em dia?
Ruiz: Tornou-se mais clara. Estive lá três vezes neste ano. Estou no momento bastante próximo do Chile, como, no mais, de Portugal e da França.
Ciné: Você apresentou também um filme em competição em Veneza, Comédia da Inocência. Estes dois filmes feitos um em seguida do outro possuem uma relação estreita?
Ruiz: Comédia da Inocência, mais inquietante, é o oposto total de Combate do Amor em Sonho. A história é contada do início ao fim contendo todos os elementos. Comédia da Inocência é um filme francês. O roteiro é tirado de um romance. No dia de seu aniversário de sete anos, uma criança declara que gostaria muito de voltar para casa. Ele dá um endereço à sua mãe, que encontra assim uma mulher que perdeu o filho num acidente. Essa criança teria a mesma idade que a sua. Imagino bem o que um americano poderia fazer com tal história. Quanto a mim, opto pelo cartesianismo francês, mas no fim das contas a explicação é mais inexplicável que se tivéssemos optado pelo fantástico e pelo expediente do sobrenatural.
Ciné: Depois de O Tempo Redescoberto, você filma, com Combate de Amor em Sonho, um filme que poderia tão bem se intitular O Tempo Compresso, na medida em que funde passado, presente e futuro, uma forma de contar que associamos naturalmente à América Latina.
Ruiz: Temos o hábito de misturar tudo... Quando se habita tais países fazemos associações que não ocorrem aos europeus. Ainda que hoje em dia, os europeus se abram a tal forma de contar, ao passo que os latino-americanos se tornam mais rígidos.
Ciné: Você vê uma transferência.
Ruiz: Entre a França e a América Latina, certamente. Mais que entre a Espanha e a América Latina. No mais, me sinto muito mais próximo da França que da Espanha, cuja cultura, entretanto, frequento desde a infância. Há qualquer coisa de desagradável, de pesado, de pés-no-chão, no mau sentido do termo, na Espanha. Há um pouco de Franco, um pouco do realismo espanhol, em todo Espanhol.
Ciné: A América Latina tem, também, seus ditadores. Há um pouco de Pinochet em todo chileno?
Ruiz: Pinochet é um caso a parte, diferente dos ditadores latino-americanos que conheceram a alegria, a embriaguez do poder, que possuiram um caráter grotesco. Pinochet está mais pra um pequeno funcionário. É um personagem de Camus. Em L'État de Siége há um personagem chamado Nada, vestido de sub-oficial... Pinochet não vivia no luxo. Ele matava de modo prático. Ele assustava. Três mil mortes no Chile, trinta mil na Argentina, isso é tudo sobre seu minimalismo. O Chile é um país infantilizado que viveu mais o regime dos maus tempos que o do terror. Quando lá retornei após dez anos de exílio, não fui contrariado, mas uma viatura me seguia e, toda noite, sistematicamente, às quatro da madrugada, batiam à porta. Sem mais.
Ciné: Em Combate de Amor em Sonho você demonstra uma fascinação evidente por certos objetos, o anel, a bússola, o espelho ,a lanterna, a esfera, a cruz de malta. Tais objetos possuem com frequência propriedades mágicas.
Ruiz: No fime há nove objetos, nove histórias, mas cada história não corresponde, necessariamente, a um objeto. Pedi a quem se encarregava do cenário e do figurino que me encontrasse objetos, se possivel nove, e assim comecei a trabalher sobre os mesmos. Nove é a cifra da cabala cristã, a renascença tardia, o barroco. Eu os escolhi por razões bastante cinematográficas.
Ciné: O mistério lhe agrada muito.
Ruiz: O trabalho no cinema consiste em filmar coisas completamente cotidianas que se tornam enigmáticas. E mais, o cinema é feito menos de histórias que de silêncios, de vazio. Como amo o mistério, em Combate do Amor em Sonho há um filme escondido. Um jovem, interpretado por Melvil Poupaud, encontra uma jovem numa boate. Eles partem juntos e sofrem um acidente. Em coma, o jovem ouve vozes a seu redor e pouco a pouco constroi qualquer coisa que o permite alcançar a morte. Ao longo de todo o filme, há indícios, sirenes, ruídos do acidente, o lamento de alguém que respira com dificuldade, vozes numa sala de operação. Eis o filme que se esconde por trás da análise combinatória de Combate de Amor em Sonho. Para descobrí-lo é preciso, evidentemente, escutar bem a banda sonora.


(Traduzido por Eduardo Savella)


Original em Francês disponível em http://lecinemaderaoulruiz.com/raoul-ruiz-cineaste/combat-damour-en-songe ou http://www.erudit.org/culture/cb1068900/cb1093117/33647ac.pdf

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Cineclube da Cinemateca: Combate de Amor em Sonho, de Raoul ruiz

Neste domingo dia 30, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Combate de amor em Sonho", finalizando o ciclo O Cinema feérico de Raúl Ruiz. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:

"Combate de amor em sonho" de Raúl Ruiz




Piratas e tesouros. O bem e o mal. Tal como em uma história para crianças: narrar os acontecimentos é o verdadeiro tesouro. O fantástico faz parte da vida e do cinema. Estranhas anomalias físicas, manuscritos indecifráveis, guardas de um olho só. Um jovem de coração puro, partidário da liberdade de pensamento, é confrontado com a pressão social para que enriqueça a qualquer preço. Um grupo de crianças cegas que tenta converter aqueles que não acreditam no poder da fé cristã. Um bordel de velhas freiras, que se prostituem para pagar o aluguel. Contradições e ironias que transformam este conto de fadas em uma espécie de fábula filosófica. Entretanto, o diretor Raoul Ruiz lembra que seu filme tem uma relação estreita com a realidade: no começo do século, Ricardo Latcham, um jovem de 20 anos, mero funcionário da Biblioteca Nacional do Chile, foi contratado por um caçador de tesouros. Juntos, chegaram até o norte do país, em Guayacam, onde se envolveram em aventuras fabulosas.
Serviço:
30 de outubro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA


Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 23 de outubro de 2016

O Tempo Redescoberto



(Le Temps Retrouvé, França, 1999)

Ruiz adaptou, sucessivamente, em 1998 e 2000, dois monumentos da literatura francesa: O Tempo Redescoberto, de Marcel Proust, e Les Âmes Fortes, de Jean Giono. Estas estão longe de serem suas primeiras adaptações; em certo sentido, Ruiz nunca fez outra coisa. Além de exemplos como A Colônia Penal (Kafka), A Vocação Suspensa (Klossowski) e A Ilha do Tesouro (Stevenson), a matéria-prima literária assombra todos os seus filmes, e o livro-objeto está sempre presente materialmente - livros devorados ou devoradores, vetores de "histórias predadoras" (como dito em Três Vidas e uma Só Morte) e de teorias proliferantes.

A adaptação, em Ruiz, é uma operação complexa de condensação e expansão, deslocamentos e substituições: em certo sentido um dream-work, por via do qual o material do começo, desfigurado, aparece somente como uma versão possível de uma série de avatares que giram em torno do mesmo átomo narrativo: em A Ilha do Tesouro, Jim Hawkins (Melvil Poupaud), que ajuda a escrever sua própria história e encontra várias cópias diferentes do romance de Stevenson numa biblioteca, também tropeça numa outra versão, criptografada numa série de TV. Mas qual é a história de verdade?

O método de Ruiz teve de confrontar-se com dois grandes desafios no projeto de adaptar Proust. O primeiro, o maior, é uma espécie de equivalência abstrata entre seu sistema de narrativas proliferantes e a teoria Proustiana da memória epifânica. A cisão narrativa no trabalho de Ruiz nunca procede sem um momento ou ponto onde tudo se encontra de modo a formar um horizonte de sentido - ou o olho de um furacão: uníssono, sincronicidade, simultaneidade são propriamente obsessões Ruizianas (ver, no nível da metáfora cômica, os dois velhos camaradas em L'éveillé du Pont d'Alma, que só podem dormir ao mesmo tempo). Suas narrativas designam, não uma origem (não há passado nem presente), mas um núcleo.

Os ecos das situações narrativas, o modo como as histórias "ressoam", não são equivalentes à extratemporalidade Proustiana mas, partindo de um recurso similar à analogia, oferecem uma espécie de contra-modelo. Em Tempo Redescoberto, os momentos mais bem-sucedidos são aqueles nos quais a condensação das memórias, a mise em scéne que cruza "fronteiras temporais", não inaugura a construção de uma subjetividade individual (como em Proust), mas sim, um esprit du temps, um Zeitgeist desse século vinte que começa com a Primeira Guerra Mundial.

E é a fotografia ou cinema que, a cada vez, abraça a ressonância entre os eventos interiores e os do mundo exterior: a cena onde, numa sala lotada de chapéus, sob o olhar de St. Loup (Pascal Greggory) de farda militar, o jovem Marcel (Georges du Fresne) descobre a terrível imagem de um asno agonizante dentro de um pequeno aparato escópico; ou quando um Marcel mais velho (Marcello Mazzarella) vê a si mesmo na rua criança, lampejos brancos caindo como bombas sobre a imagem enquadrada pela janela do trem, que é então convertida numa fotografia; ou, finalmente, quando o herói, numa dupla-encarnação (o Marcel-criança operando uma câmera de filmar) levita defronte uma tela de cinema que mostra imagens violentas do noticiário para a fina sociedade parisiense, enquanto em voz off ouvimos a leitura de uma carta de Gilberte (Emmanuelle Béart).

Esta abertura do extratemporal para o Zeitgeist resolve o segundo desafio do projeto: o desfile das personagens Proustianas e sua longa familiaridade na cultura francesa. Ruiz poderia ter trabalhado sobre a lista de figuras-fetiche de Em Busca do Tempo Perdido, mas escolhe, acertadamente, por transformá-las numa litania funeral, uma vasta multidão de fantasmas empalidecidos em lampejos, esvaziados por recordarem, derrotados pela memória, e sempre já assassinados por sua época.

Marcel circula constantemente no meio da multidão de "suas" personagens, como na caminhada entre os tableaux-vivants de A Hipótese do Quadro Roubado. Ou seja, tudo o que constituiria a totalidade de um mundo se esconde em seu centro, invisível, um horizonte ou buraco que o esvazia e o mata: uma pintura roubada, uma memória, a guerra. Um filme doente, entre os mais mórbidos de Ruiz, O Tempo Redescoberto sucede em tornar a madeleine de Proust numa espécie de epidemia fatal.

Cyril Béghin

Original em Inglês disponível em http://www.rouge.com.au/2/time.html

sábado, 22 de outubro de 2016

Cineclube da Cinemateca: O Tempo Redescoberto, de Raúl Ruiz

Neste domingo dia 23, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "O Tempo Redescoberto", dando continuidade ao ciclo O Cinema feérico de Raúl Ruiz. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:

"O Tempo Redescoberto" de Raúl Ruiz

Em 1922, Marcel Proust, em seu leito de morte, rememora sua vida. Sua vida, isto é, sua obra e os personagens da realidade se fundem com aqueles da ficção e a ficção toma pouco a pouco conta da realidade. Todos seus personagens se metem a assombrar o pequeno apartamento da rua Hamelin e os dias felizes da infância se alternam com as lembranças mais próximas de sua vida social e literária. Adaptação de Em Busca do Tempo Perdido e, em especial, do último volume, O Tempo Redescoberto.
 
Serviço:
23 de outubro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA


Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 16 de outubro de 2016

Manuel na Ilha das Maravilhas


Manuel na Ilha das Maravilhas (Seriado para a TV em três partes, França, 1985)
por Fergus Daly
Esta série infantil em três partes para a TV Francesa (existem versões alternativas como longa-metragem, Os Destinos de Manuel, e uma série em quatro partes para a TV Portuguesa, Aventura em Madeira) é a favorita para muitos dos devotados a Raúl Ruiz. Isto porque ela reúne o encantamento  e mistério de Lewis Carroll, Carlo Collodi e os irmãos Grimm aos experimentos do cineasta com o expediente narrativo e com o que ele chama de modelo pentalúdico de narração (no qual as personagens são jogadas como dados em combinações e situações governadas pelo jogo do Acaso e do Destino).
Mas este filme infantil está entre seus trabalhos mais complexos, difícil de abarcar em sua totalidade. Ele pode parecer uma coleção arbitrária de livre-associação de palavras e imagens, beirando o nonsense. Mas espectadores atentos terão a forte impressão de que há um método por trás desta semiloucura. De outro modo, ele não produziria as emoções intensas que tão claramente oferece. As obsessões de Ruiz de filme a filme reúnem as partes - e a emoção vem da bifurcação totalmente inesperada dentro do já conhecido território mapeado.
Escrever ou filmar para crianças pode por vezes levar alguém diretamente à fonte de sua arte. Ter que adaptar perceptivelmente o estilo confronta-os com o que deve ser incluído. Manuel nos deixa com o Ruiz essencial, a companhia audiovisual para seu extraordinário livro, Poética do Cinema1. Sua atordoante metodologia narrativa virada-sobre-virada cria uma estrutura temporal labiríntica.
A primeira parte nos apresenta a três mundos possíveis. Em cada um destes mundos, Manuel, aos sete anos, responde diferentemente ao chamado que o mundo lhe faz. Convenientemente, num filme onde nada coincide, as três partes da história não coincidem com a estrutura dos três episódios (a forma-trindade retorna frequentemente em Ruiz). Neste caso, passado, presente e futuro - a trindade laica ou o Tempo en soi - é o verdadeiro protagonista do filme, chamado também de "Há muito tempo" (primeira parte), "Agora", (segunda parte), e "Futuro" (terceira parte). A princípio, isto dá à história uma ordem aparente antes das digressões tomarem conta.
O menino responde ao chamado mas não é capaz de dizer se é um pedido de ajuda, um convite, uma ordem ou um aviso. Ele o é tudo isso? Imediatamente o espectador é empurrado numa posição de ambiguidade máxima, a experiência eludindo o paradigma convencional de conflito e identificação que tipifica o cinema de Hollywood. Ruiz junta forças com uma linha inteiramente alternativa de cinema, de Kenji Mizoguchi (uma antiga inspiração declarada) a Hou Hsiao-Hsien, que oferece personagens inativos, quase sonâmbulos. Tais personagens possuem um dever ou obrigação intrarrelativa para com forças ocultas, vozes carregadas pelo vento - mesmo que tal noção seja logo desmentida pela declaração de Manuel: "Não estou matando aula porque uma voz me chama, mas porque escolhi assim".
Logo ele se encontra face a face com ele mesmo seis anos mais velho. Só histórias poderiam preencher - ou melhor, produzir - o intervalo. Assim como em Samuel Beckett, só as histórias separam um do outro nossos seres dispersos. O efeito da decisão de Manuel - num universo onde apenas os eventos mais distantes afetam um ao outro - é brutal: a morte repentina de sua mãe. Vendo Manuel, as questões dominantes são menos "o que acontecerá a seguir?" ou "sobre o que é isto?" e mais: "de onde vêm estes fragmentos de imagens e relatos? Quais são as regras da gênese deste filme?".
A multiplicação de linhas narrativas prossegue através do filme. Para Ruiz, a questão jamais pode ser a de "apenas" ir para a frente e para trás pela história da vida de Manuel. Em vez disso, ele aplica as técnicas narrativas delineadas em sua Poética do Cinema: as imagens vêm primeiro, a narração vem em seguida. Imagens geram novas imagens, tornando a conexão e a desconexão dos fragmentos-de-história numa "loteria de sincronismos e diacronismos" (p.54). Os princípios organizativos da construção narrativa de Ruiz nada tem a ver com aqueles que governam a realidade. Em Ruiz, as regras generativas envolvem apenas imagens e códigos que escapam ao racionalismo empobrecido do modelo de Hollywood. Seu objetivo é produzir, segundo sua frase après Walter Benjamin, "uma nuvem de poeira de signos sem significado capaz de conspirar contra as convicções visuais" (p.32).
Manuel nº 2 entra em cena e recomeçamos num novo mundo possível. "Dentro de cada série de histórias cada uma é um jogo em si," diz Ruiz (p.85). A questão colocada é a seguinte: o que acontece quando há um novo elemento adicionado no mesmo roteiro de antes, nomeadamente Manuel sendo observado pela mãe (enquanto sai de casa). Neste caso, ele penetrará o jardim proibido, encontrará o pescador, se fará novas perguntas e provocará um novo resultado: a punição e a morte de seu pai.
No terceiro mundo possível, ele escolhe a cautela de modo a salvar ambos os pais, mas, de acordo com a exaustão de possibilidades que tal método Leibniziano demanda, agora é o próprio Manuel quem deve morrer. Hora de recomeçar! O sonho de Ruiz: "um filme feito apenas de pontos de partida" (p.112).
A segunda parte (cuja natureza é a princípio confusa, já que começa imediatamente depois das três mini-narrativas da primeira parte e antes mesmo do final do primeiro episódio) é intitulada de "O Piquenique dos Sonhos". Embora vagamente "se limite à trama", ela se desvia em muitas e diferentes direções, onde o par temático comum/especial substitui o dualismo familiar/desconhecido da primeira parte. (Cada parte é guiada por uma "dominante" temática, um par de noções que tendem a trocar de sentido entre si na medida de seu progresso).
Ruiz inventa séries de mini-narrativas, cenas seriadas, acontecimentos ou vinhetas que se seguem em sequência sobre trilhos paralelos. Seus pontos de encontro ocasionais são mais impressionistas que progressivos. Esta parte envolve muita enumeração e acumulação matemática. Nos deslocamos de uma ocupação com o Tempo, o Destino e a Narração para problemas mais científicos de experimento, aritmética e economia (uma personagem cujo nome é Sr. Dinheiro). Se Ruiz permanece um Surrealista, isto está em sua obsessão por metáforas extraídas da física a respeito de forças eletromagnéticas, ondas de interferência, curtos-circuitos de energia e tênues conexões entre "vasos comunicantes".
Numa excursão escolar para a floresta, numa tentativa de fazer um sonho coletivo se tornar real, O corpo de Manuel é roubado por um lenhador inclinado a se preocupar com o declínio na criatividade "das pessoas". Logo encontramos um bando de fantasma ex-piratas, pretexto para que Ruiz penetre um laboratório sensual de faculdades translocadas no qual lágrimas mudam de gosto e um baralho de cartas é escutado segundo lições sobre a verdade.
A Parte Três (que começa no Episódio Dois), chamada de "A Pequena Campeã de Xadrez", encarrega a narração em voz-off (até agora, desconhecida) ao próprio Manuel. Ele se compromete a contar sua própria história, e acrescenta que é "uma história que inventei em minha infância distante e que acontece no futuro". O tom é menos barroco, mais gótico, na medida em que Ruiz explora "as maravilhas da noite". A obsessão do cineasta nesta sequência concerne a percepção e o deciframento de sinais e códigos secretos. Numa festa infantil que acontece num Museu, questões são colocadas: "De onde vêm essas vozes? Para onde vão as sombras?".
O padrão geral da obra como um todo se torna, assim, clara. Se a Parte Um oferece histórias filosóficas e a Parte Dois explora a ciência (de uma variedade um tanto New Age), então a Parte Três funciona como uma poética audiovisual que delineia uma equação entre o cinema e o mundo de sombras das histórias infantis. É um chamado selvagem: "Meu amigo, a arte chama", diz uma criança antes de iniciar uma canção (em inglês). Nesta Parte muito comovente, Ruiz o cineasta se desembaraça de fato - acompanhado pela música igualmente hipnótica de Jorge Arriagada. Da Ilha do Elefante (uma espécie de cinema dentro de um elefante) chega o Capitão Pombo de Albuquerque. Ele encena um movimento de teatro-de-sombras tão ameaçador, que a impressão é a de que algo além da vida e da morte está em jogo. Como o mítico Barqueiro, o Capitão anuncia: "Atravessar a fronteira é meu negócio. Eu atravesso a gente de um mundo ao outro" - antes de morrer, esfaqueado nas costas por uma das sombras que ele mesmo conjurou. A lição: a arte nasce do mundo obscuro das brincadeiras de criança. Ela é um bombardeio de símbolos "que brotaram do nada" (p.31), que fogem à decifração articulada. Mas, devido a suas origens demoníacas, a arte está fadada a destruir seus praticantes.
A ars combinatoria de Ruiz nunca é arbitrária, e o espectador não deve meramente se satisfazer com o sabor do banquete audiovisual oferecido. É uma questão de decifrar a forma generativa singular de cada obra individual: essas digressões sem-fim que criam uma poética genética única para cada filme. Pois então qual é a blueprint de Manuel na Ilha das Maravilhas? Ele nos leva numa busca através dos mundos, primeiro, o do narrador, tecelão filosófico de palavras e de mundos; segundo, o do laboratório de cálculo e computação da ciência; e, terceiro, o das fontes genéticas da criatividade, da arte e da vida. Uma busca pelo quê? Por aquela imagem (ou, mais precisamente, por seu poder, seu "alcance"), a imagem-Ur a partir da qual a narrativa pode fluir (como em Cidadão Kane): neste caso, a luz amarela na noite da janela da casa dos pais, e a mão do ladrão que agarra o tesouro roubado no jardim defronte a janela.
Em Manuel, mais que em qualquer outro filme, o cinema de Ruiz nos leva a todos os lugares de uma só vez. E, tendo-o feito, nos pergunta, numa final virada irônica: "Você pode mesmo ver? Isto é o que desejava ver?".
1. Raúl Ruiz, Poetics of Cinema (Paris: Éditions Dis Voir,1995).
Original em inglês disponível em: http://rouge.com.au/2/manoel.html
 


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Cineclube da Cinemateca: Manuel na Ilha das Maravilhas, de Raúl Ruiz

Neste domingo dia 16, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Manuel na Ilha das Maravilhas", dando continuidade ao ciclo O Cinema feérico de Raúl Ruiz. Sempre com entrada franca!


Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Manuel na Ilha das Maravilhas" de Raúl Ruiz


Série infantil em três episódios destinada à programação de Natal da TV portuguesa. 1º episódio: Manoel, sete anos, mora numa vila litorânea na ilha de Madeira. Manoel visita um jardim proibido e se encontra consigo mesmo aos treze anos de idade, descobrindo que certas escolhas que deverá fazer ao longo do dia influirão decisivamente em seu destino e no de sua família. 2º episódio: Manoel parte com a escola num passeio à floresta. Durante a soneca coletiva numa clareira, Manoel encontra um pirata com quem troca de aparência. 3º episódio: Manoel vai viver com sua tia na cidade de Funchal. Lá ele encontra Marilina, uma pequena campeã de xadrez, e um misterioso capitão.
Versão francesa com legendas em português.

Serviço:
16 de outubro (domingo)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA


Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

domingo, 9 de outubro de 2016

A Cidade dos Piratas



por Serge Daney



Há filmes sobre os quais não estamos certos se não foram sonhados. Talvez sejam estes os mais belos. Tal qual a nova aventura do capitão Ruiz no país de nossas crenças.


Tome uma criança e se assegure de que sonha. Acorde-a e lhe conte uma história. Embale-a com sua mais bela voz-off. Faça-a insidiosa, não se esqueça da trilha sonora. É preciso que, novamente adormecida, a criança complete sonhando a história que lhe fora insuflada. É preciso que, ao despertar, ela sinta que foi a história que a escolheu, e não o inverso. Uma história imortal, título de um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem todas as de Ruiz. Disto as delícias, depois mais delícias, e aí o terror.


Mas se você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo em suspensão, nem da voz que embala, nem de talento para improvisar (isto é, a arte de sempre ter a última palavra) não insista e renuncie a imitar Raúl Ruiz. Só ele parece ter guardado o segredo e o gosto para tais coisas. Após o silêncio de Welles e a partida de Buñuel para a Via Láctea, fala-se muito de um retorno do cinema à ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção (como se fala do retorno do reprimido ou do retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são relatos, e possuem um caráter iniciático. Espiralados, trucados, intrincados ou maléficos, possuem um charme louco. Mesmo se foi preciso esperar dez anos (da queda de Allende, 1973, que exila Ruiz de seu país natal, à estreia, ano passado, de As Três Coroas do Marinheiro) para que um público de repente menos insignificante caia sob tal encanto e marche no compasso dessa loucura.


Isto malgrado a reputação dada a Ruiz de hermetismo e intelectualismo que prova tão-somente que, logo que confrontados a um verdadeiro barroco latino-americano, os franceses têm dificuldade em admitir que sua própria tradição de filmes-labirinto, jogos de quebra-cabeça ou do Ganso, à la Robbe-Grillet ou Resnais, não foi decisiva. Dito isto (e uma vez dito, não diremos mais, está prometido: na próxima, consideraremos Ruiz já conhecido, senão reconhecido) A Cidade dos Piratas, que faz quase um par com Três Coroas de um Marinheiro e que evoca esse filme mais ou menos bem sucedido que foi O Território (três filmes rodados em Portugal) possui sua tonalidade própria, seus truques íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas falhas secretas. Em suma: um filme excelente, onírico, perto do inenarrável e de todo consumado.


Por onde começar? Retomemos a metáfora do adormecido. Estamos no Sul, defronte o oceano, sujeitos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está adormecida. Sim, adormecida, pois se trata de uma mulher. Sua mãe, que mal parece mais velha, acorda-a dizendo: "Dormes, Isidore?". "Conta-me uma história", responde a vozinha de criança de Isidore. Sobre uma mesa, ao lado, algum dinheiro deixado pelo pai. Ele abusa de Isidore, vem lhe pagar. Esta cena não dá, evidentemente, alguma ideia dos incontáveis acontecimentos que povoam esta Cidade dos Piratas, mas todo o Ruiz, em certo sentido, nela se encontra. Como Buñuel, Ruiz se compraz com as mais simples permutações lógicas. Perversão de nome e de gênero, de idades e de amores, do antes e do depois. Incesto, relação social tornada jogo de palavras ou "jogo das sete famílias". Além disso, essa "cidade" não é mais que uma ilha, salvo não ter mais que um habitante, que interpreta todos os papéis. Para aqueles que dependem do conforto da identificação (quem é quem?) Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele não acredita na identidade, não acredita senão nos mapas (cartes). Arbitrários, de preferência.


Isidore beija um policial de tal forma que a forma vermelha do beijo revela ser aquela da famosa ilha dos piratas. Um homem faz saltar os miolos de tal forma que, ejetados num rio de sangue, desenham a forma da ilha. No começo, nada mais que enigma; no final, nada mais que resíduo. No meio tempo, a bela Isidore conhece um menino, mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua noiva e cúmplice. Ela o segue até a ilha. Ela retornará, sim, mas em que estado! Adivinhamos que a pequena palavra que está mal e deslocada no universo ruiziano é o verbo "ser". É claro que não se ganha nada em querer recontar A Cidade dos Piratas. Está claro que não vemos nada.


Entretanto. Quanto mais nos desencorajamos em identificar aquilo (aqueles) que vemos na tela (até o ponto em que, ao final, gritamos mentalmente "puxa" e nos roça o tédio), mais Ruiz se compraz com a aparência das coisas, o peso material, anedótico, que elas guardam apesar de tudo.


Dois macabeus putrefatos (e ainda mais orgulhosos) tomam um chá Durassiano, um bocejo é filmado do ponto de vista da glote, detalhes carregam a imagem sem razão, uma caveira vira bola de rugby; toda uma ala da pintura espanhola do século XVII, aquela das Vaidades, do Valdes Leal dos Hieróglifos de nossos fins últimos, está prestes a se animar. Sob a pulsão dos vermes (vers).


De todo modo, quanto mais renunciamos saber em que tipo de filme caímos (ao ponto em que, lá pelo meio, cansados e lassos, achamos que já é o bastante) mais Ruiz se distingue em evocar, com felicidade constante, o fantasma dos filmes B americanos, de Cocteau, ou dos filmes da inglesa Hammer. Há um pouco do John Mohune do Moonfleet de Lang no menino de A Cidade dos Piratas, como há um pouco de Tourneur (aquele de A Morta-Viva) no tom alucinado de certas vozes. Como se, para se desculpar da abracadabrância de seu próprio relato, Ruiz o vestisse da memória dos relatos com os quais tivemos tão pouca dificuldade, na infância, em nos sentirmos em casa.


Quanto mais nos convencemos de que a linguagem, também ela, está encurralada, mais Ruiz é capaz de fazer falar os atores com um tom tão doce, e este nada de desolado amuo na voz que torna perturbadoras as mais simples frases. Há poucos cineastas, dos que filmam em "francês", que melhor capturaram a música do "era uma vez..." francês, o lá musical que abre as portas de todas as histórias. Há poucos compositores que, melhor que Arriagada (o cúmplice regular de Ruiz) sabem inventar notas dignas de um Ravel hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua folia de autor, mais é preciso nos render à evidência: ele é cada vez mais segura na escolha de seus atores. Em A Cidade dos Piratas, Anne Alvaro (Isidore) e Melvil Poupaud (o menino) são particularmente bons.


Tudo isto, vocês dirão, tem um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que seduz. Resta o fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um sentido em suas histórias, que creio terrível. Um fundo de imundície e promiscuidade que nenhuma poesia poderia silenciar por completo. Os cineastas - já dizia eu no começo (por provocação) - perderam quase todos o senso do relato. Mais ainda, o único que o conservou intacto (Ruiz) realizou sua loucura pessoal. O espectador "cartesiano demais" estará menos desamparado frente um filme como A Cidade dos Piratas se se dignar a ver As Três Coroas do Marinheiro (que passa ainda, numa sala apenas, em Paris). Neste filme, Ruiz expõe em que condições uma história pode se tornar imortal. Ele precisava de carne fresca. Aquela daquele que a contará como se acreditasse que ela não existisse senão para ele. Aquela daquele a quem foi contada e que pensa (erroneamente) que ela não o alcançará jamais. Tornada imortal, a história não cessa de retornar. Em A Cidade dos piratas, numa primeira vez como filme de aventura, numa segunda como teatro Cocteausante, numa terceira como seminário teológico, numa quarta como colóquio entre mortos.


Viver, é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.


Serge Daney (Libération, 25 de fevereiro de 1984)

Traduzido por Eduardo Savella