sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

CLOUDS TASTE METALLIC


(ELEFANTE de Gus Van Sant, EUA, 2003)

Enfim, Elefante. Quase um ano após sua passagem triunfal em Cannes, Elefante finalmente está entrando em cartaz no Brasil. Bom para nós: (re)veremos quantas vezes nos for possível, pois o filme possui uma riqueza visual e discursiva que realmente obriga a revisão. Elefante aborda um fenômeno que, apesar de inesgotável na sua variedade de peças, costuma dar margem às mais simplórias tentativas de explicação. Mas Gus Van Sant foge das teses e mergulha de cabeça no espaço que acolhe o filme, disposto a ver e ouvir o máximo possível, aguçar os sentidos e evitar idéias acabadas. Sua obra-prima é tanto um exercício vigoroso em torno das possibilidades do dispositivo quanto a construção cuidadosa de uma moral do olhar. Assim como Godard afirma a necessidade de filmar a partir de um "ponto de vista mineral", Van Sant rechaça qualquer instância predicativa em sua mise-en-scène, optando por um jogo de proximidade (leia-se imersão) e significação primária (apreensão de formas, volumes, deslocamentos). Em se tratando de um filme que culmina num massacre aos moldes do ocorrido em Columbine, isso não é coisa simples. 

Antepassados. Dois filmes influenciaram bastante Gus Van Sant. O primeiro deles é a obra homônima de Alan Clarke, média-metragem que se passa na Irlanda do Norte e foi realizado em 1989 para a BBC. Mesmo se referindo a outro contexto, o Elephant de Clarke apresenta, além da narrativa picotada de que Van Sant fez extraordinário uso em seu filme, a difícil temática da violência praticada por jovens. Em Elefante, a estrutura narrativa fragmentada, que mostra o mesmo evento sob diferentes pontos de vista e sem manter sua linearidade no tempo, corresponde à impossibilidade de uma visão global e à construção de um sentido moderno de temporalidade, a fragmentação impedindo uma ordenação causal (e simplista) dos fatos. Outro filme fundamental para a composição visual e estrutural de Elefante foi High School, de Frederick Wiseman, um dos grandes nomes do "cinema direto". O filme de Wiseman, de 1968, compõe - com imagens marcantes e de inusitada beleza - um vasto painel em que situações individuais se confrontam com a rigidez geométrica do modo de funcionamento institucional. High School efetua uma sondagem de espaço muito parecida com o trabalho de Gus Van Sant ao lado de Harris Savides (brilhante diretor de fotografia de Elefante) e Leslie Shatz (responsável pelo som): os planos fechados, o interesse por todo e qualquer som ambiente (o som de Elefante é expansivo, traz para um mesmo local ruídos e vozes de toda parte), a câmera percorrendo a escola como se fosse uma sonda introduzida num organismo vivo, a observação de situações cotidianas diversas (sala de aula, palestras, ginástica, refeitório, corredores), a atração despertada pelos adolescentes (o que leva a câmera a praticamente querer colar neles). Embora Elefante tenha cenas em outras locações (algumas delas fundamentais, como o giro de 360º no quarto de Alex), seu lugar de condensação é na escola. Lá prevalecem planos alongados - muitas vezes em tom documental - que fazem surgir toda uma tipologia relacionada ao universo estudantil norte-americano: um desfile de estereótipos que precedem o próprio filme e compõem um imaginário que Van Sant preferiu deixar intacto (no sentido de não negá-lo nem tentar decodificá-lo). 

Transparência do mal. No filme Tudo É Brasil, de Rogério Sganzerla, Orson Welles evoca a parábola do grupo de cegos em que cada um toca uma parte de um elefante e diz saber como aquele objeto é na sua totalidade. As respostas saem equivocadas, nenhum dos pedaços é suficiente para a apreensão do todo. Portanto, conclui Welles, não se pode conhecer um país visitando somente uma de suas partes - é preciso estar em muitos lugares. Essa parábola budista, segundo Gus Van Sant, também repercutiu no conceito de seu filme. A câmera de Elefantepenetra com pouca profundidade de campo nos corredores de uma típica high school, somente focando o que está próximo dela, precisando quase tocar os objetos que quer mostrar, como se estes precisassem ganhar relevo para virar imagem. A fluidez da sua movimentação realça um princípio de ambiência, de captação do ritmo daquele espaço, com sua dinâmica de cores, formas, texturas, signos. Nos corredores da escola se acha uma intensa circulação de corpos cuja relação entre si - de aparência, nada de interioridade esquemática - não fomenta psicologismos (o filme flagra a dificuldade de qualquer certeza através dos signos exteriores - basta pensar na discussão sobre "olhar para alguém na rua e tentar descobrir sua opção sexual"). Da mesma forma, a não fixação do ponto de vista (entendido aqui tanto como posição de onde se vê quanto como local de produção do discurso) exprime não só a recusa a uma perspectiva (o que implicaria distanciamento), mas também a afirmação da inviabilidade de uma reconstituição definitiva do episódio (o que alguns "erros" de continuidade insistem em nos lembrar quando da repetição de uma cena a partir de um novo ponto de vista). 

Kids. Desde seus primeiros filmes que Gus Van Sant se aproxima do jovem munido muito menos de julgamentos do que de carinho e compreensão (sem ignorar uma dose de fetichismo). Gênio Indomável e Encontrando Forrester, duas investidas no enredo romântico de auto-superação e transformação, são belíssimos filmes sobre jovens ultratalentosos recebendo a orientação de um adulto (diálogo entre gerações absolutamente ausente no filme aqui em questão). Em Elefante não entra em cena um rito de passagem, como nos clássicos filmes de high school, mas simplesmente uma passagem - de corpos, de forças, de fumaça, de nuvens. Jean Epstein, que nos anos 20 fez um cinema "impressionista", já dizia que "os belos filmes são feitos de fotografias e céu". É com um céu em que passam nuvens velozmente (refrão visual de toda a carreira de Gus Van Sant) que Elefante começa e termina. O céu, nuvens, impressões, uma fumaça negra que se mistura às nuvens e depois passa. Tudo passa, principalmente enquanto se é adolescente. E Van Sant não esqueceu disso quando virou adulto.

Luiz Carlos Oliveira Jr
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/58/elefantecineclube.htm)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Cineclube Sesi: "Sombra" e "Elefante"

O Cineclube Sesi  apresenta nesta quinta-feira, dia 19 de dezembro, sessão dupla com os filmes "Sombra", de Philippe Grandrieux (reposição às 16h00) e "Elefante", de Gus Van Sant (às 19h30), encerrando a programação de 2013 do cineclube. Retornamos em janeiro com o ciclo Cinema Americano. Entrada franca sempre.


"Sombra", de Philippe Grandrieux (reposição, às 16h00)

Jean é um homem bruto que viaja pela França no seu automóvel, levando marionetes e uma fantasia de lobo como única bagagem. Jean é perseguido por suas lembranças da infância. Mal consegue se comunicar e é um tipo de "bloco de pedra". Num dia de chuva forte, ele encontra Claire, que havia acabado de sofrer um acidente de carro. Ele a coloca no seu carro e se forma um vínculo entre eles. Ela talvez reconheça nele, na sua falta de jeito e grosseria, a mesma coisa que também a força, sombriamente, às fronteiras do coração. Grandrieux conscientemente enreda os espectadores nessa história de serial killer, através da plateia de crianças de Jean: olhos impossivelmente abertos em terror extático.


"Elefante", de Gus Van Sant (19h30)

Um dia aparentemente comum na vida de um grupo de adolescentes, todos estudantes de uma escola secundária de Portland, no estado de Oregon, costa oeste dos Estados Unidos. Enquanto a maior parte está engajada em atividades cotidianas, dois alunos esperam, em casa, a chegada de uma metralhadora semi-automática, com altíssima precisão e poder de fogo. Munidos de um arsenal de outras armas que vinham colecionando, os dois partem para a escola, onde serão protagonistas de uma grande tragédia. Inspirado no Massacre de Columbine.

Serviço:

dia 19/12 (quinta)
às 16h00 e 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)


ENTRADA FRANCA
 


Realização: Sesi 
 
  (
 http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Um menino sobre o muro


O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (Brasil, 2012)


Há um personagem misterioso em O Som ao Redor, sempre às margens da trama, um garoto negro visto em posições que sugerem que ele está pronto para transpassar a propriedade privada alheia, até o momento em que a equipe de segurança finalmente intercede. Como muitos outros elementos do filme, o garoto surgiu direto da história local, um jovem chamado Tiago João da Silva, que se notabilizou na virada dos anos 2000 por assaltar apartamentos do Recife e ganhou o apelido de Menino Aranha. Muito do que O Som ao Redorfaz pode ser traçado de volta a esta figura a principio marginal, a começar pelo fato de ele tanto existir na história como ao mesmo tempo ser inserido dentro do filme como uma criatura de mito, um vulto que surge de relance num plano numa casa vazia, como uma espécie de bicho papão em miniatura de um filme de horror à brasileira.
Desde que O Som ao Redor começou a circular pelos festivais brasileiros, no segundo semestre do ano passado, já se falou muito do seu caráter ressonante e, se é verdade que possivelmente não vemos este tipo de evento crítico desde que Cronicamente InviávelLavoura Arcaica e O Invasor foram lançados em sequência no começo da década passada (desde então, nossos eventos cinematográficos me parecem ou muito mais massificados ou restritos a um gueto bem específico), não se falou muito de como o filme alcançou tal ressonância. Sim, é um filme sobre o nosso contrato social, uma espécie de Casa Grande & Senzala vai a Boa Viagem nos Anos Lula, mas não é como se fosse o único filme a tratar de tal universo com um olhar incisivo. Do contrário, onde estariam os artigos laudatórios sobre um filme como Os Inquilinos, do mesmo Sergio Bianchi, cujo cinismo servira como grande válvula de escape do sentimento de fracasso nacional durante o segundo governo Fernando Henrique, e cujo Cronicamente Inviável foi varias vezes comparado a este O Som ao Redor em textos um tanto desastrados? Há algo que O Som ao Redor faz que lhe é muito particular, e a figura do Menino Aranha diz muito sobre este processo.
A pergunta inicial que orienta o filme é: como representar um estado de relações violentas em que o modo dominante é o do não-dito? – principalmente, num momento em que a ideia de ascensão social do governo Lula criou em setores consideráveis da nossa classe média um sentimento de encastelamento. Diante de tal problema, Kleber Mendonça Filho encontra imagens que surpreendem justamente porque se revelam carregadas ao mesmo tempo de uma força simbólica muito forte e de uma casualidade que desarma. O Som ao Redor procede em normatizar o gosto do cinema brasileiro pela alegoria, daí uma figura como o Menino Aranha ao mesmo tempo trazer com ela o caráter de personagem mitológico, o grande invasor, e poder ser mostrada de forma tão natural como um moleque a levar palmadas de um par de seguranças. É um equilíbrio que se aproxima muito de como este mesmo não-dito domina as relações: tudo em O Som ao Redorsignifica muito e ao mesmo tempo é esvaziado deste mesmo significado. Uma das imagens mais felizes do filme é aquela em que acompanhamos uma empregada domestica ir até seu quarto para trocar seu uniforme pelas suas roupas cotidianas e, naquele momento, toda uma história de relações de poder contida naquele uniforme se descortina sem que o filme jamais pareça sobrecarregar o momento de sentido.
Não existem no cinema brasileiro muitos outros casos de filmes que apresentam esta ideia de repressão social numa chave que sugere que ela é essencialmente um dado com o qual todos convivem e há muito internalizaram. Pode se questionar se O Som ao Redor não padece do mal de boa parte do cinema brasileiro contemporâneo de emoldurar as relações num excesso de bons modos derivados do “bom cinema de festivais”, e se isso acontece em alguns momentos (por exemplo, a sequência em que Gustavo Jahn guia Irma Brown pela antiga cidade dissipa sua força numa estetização um tanto forçada), desta vez a ausência de agressão chega naturalmente como recorrência do que o filme vê e não como um escape de boa arte que o filmes buscam apesar de si mesmos.

É útil comparar a personagem de Irandhir Santos, aqui, com o matador profissional que Paulo Miklos interpretou em O Invasor (outro filme construído sobre o medo da classe média). Ambos se apresentam a nós como seguranças que estão ali para garantir a proteção dos demais personagens centrais. Mas se tudo na atuação agressiva de Miklos é transparente – não restam dúvidas que a proteção que ele vende é contra ele mesmo, assim como nada esconde que seu desejo é justamente tomar para si o que os dois outros protagonistas possuem –, a presença de Santos sugere pura dissimulação. Se Miklos é um profissional do medo, Santos chega até nós como um comerciante desse mesmo medo. Parte da sabedoria de O Som ao Redor se localiza justamente em reconhecer que o que há de concreto no temor hoje não é o corpo de outro como Miklos, mas toda a parafernália que supostamente nos oferece segurança. Quando o filme finalmente abre sua mão e deixa todas suas motivações claras, e o segurança de Santos se revela menos o invasor agressivo do que o coro histórico que completa o contexto de toda a violência de relações apaziguadas que vimos até ali, ele até vem acompanhado de uma carga política-histórica extra com um pai assassinado dois dias depois da votação das Diretas Já. O verdadeiro outro permanecia uma abstração, um vulto como o Menino Aranha ou um pesadelo infantil, peça de ficção presente no nosso noticiário policial.
Existem dois elementos que Kleber Mendonça Filho lança mão que muito ajudam todo este processo. O primeiro é arquitetura. “Má arquitetura é eminentemente cinematográfica”, o realizador afirmou numa entrevista recente, e podemos estender a noção para “má arquitetura é essencialmente histórica”. Por vezes,O Som ao Redor sugere uma expansão daquele momento do curta-metragem anterior de Kleber Mendonça Filho, Recife Frio, no qual o filme revela que, com a radical mudança de clima, um homem trocou de quartos com a doméstica porque o quarto de empregada, acanhado e construído sem qualquer preocupação com a circulação de ar, é o único quarto quente que restou na casa. A má arquitetura sobre a qual O Som ao Redorse desdobra é justamente a representação concreta do não-dito que o filme mostra.

Se todos os personagens de O Som ao Redor procuram sempre se desviar da sua violência diária, cada um dos três apartamentos que lhes servem de locações principais carrega neles esta mesma violência o tempo todo. A já mencionada sequência em que a empregada troca de uniforme, por exemplo, é muito reforçada por acompanharmos o longo e estreito trajeto que ela tem que fazer até seu quarto, e a forma como ele explicita que, mesmo num apartamento enorme em que sobra espaço, a última das preocupações é o espaço privado da doméstica. Cada cômodo em O Som ao Redor, das salas de estar aos quartos, das cozinhas às áreas de serviço, é igualmente escrutinado pela câmera do cineasta; a cada espaço, sua função, e desta constatação surge menos algo natural e mais a extensão da violência da mesma plantação de açúcar que ajudou a financiar estes mesmos imóveis (as tentativas de os personagens em parecerem cosmopolitas e fugirem da sua história só revelam mais do seu próprio desespero). A violência arquitetônica é a única violência honesta do filme. A feiúra do processo de urbanização, seu elemento de cena mais agressivo.
O outro elemento recorrente é o do filme de horror. Laura Canepa, num belo artigo publicado em Interlúdio, já atentara para a forma como o filme se juntava a Os Inquilinos e Trabalhar Cansa, da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, numa nova onda de filmes aparentados ao horror que usavam recursos de gênero para tentar melhor representar um mal-estar social. Poderíamos ainda acrescentar à lista de Canepa a forte influência de Polanski no Meu Nome é Dindi, do Bruno Safadi (cujo mais recente Éden também apresenta um trabalho de câmera que às vezes sugere uma filiação de gênero), e de forma ainda mais radical na maneira como O Fim da Picada, de Christian Saghaard, reimagina São Paulo como um parque de diversões de horror. O próprio Kleber Mendonça Filho faz sempre questão de mencionar O Som ao Redor e Trabalhar Cansa como se fossem espécie de obras irmãs, e o filme de Rojas e Dutra é justamente o único entre todos estes títulos que faz questão de explicitar sua filiação de gênero. É uma ideia que diz bastante sobre a preferência de uma parte dos nossos jovens cineastas pelo cinema marginal, cuja vertente mais agressiva por vezes sugeria uma chanchada relida pelo cinema de horror, e algo que já se revelava em vários dos curtas que a produtora paulista Paraísos Artificiais realizou ao longo da década de 1990, cujo flerte com o gênero como forma de amplificar uma agressividade política era sempre muito aparente.
O Som ao Redor retrabalha o horror numa chave de menos confronto do que, por exemplo, os curtas de Paulo Sacramento, em um tom que melhor condiz com este não-dito que domina suas relações. Sua influência é menos os filmes de horror social de George Romero ou os terrores rurais de Tobe Hooper e Wes Craven, em que o reprimido frequentemente retornava com violência, mas os à primeira vista muito mais discretos filmes de John Carpenter, uma das referencias mais fortes do filme, rebatido diretamente na limpidez dos enquadramentos e também na cuidadosa banda sonora, sempre pronta para ecoar essa ameaça constante. De Carpenter, surge a ideia de que a ameaça, este outro, só pode dar as caras no terreno do não-dito pelas vias do fora do quadro (lição que o cineasta americano absorveu dos filmes de terror da dupla Tourneur/Lewton), ou de um corpo estranho mitológico que não existe sob a mesma lógica da dos demais atores. Há, no filme, a impressão constante de um desastre prestes a acontecer, a certeza de que os bons tons que regem as relações entre seus personagens vão ser rompidos a qualquer momento quando alguém pesar demais a mão. O Som ao Redor é um quase thriller regido por uma frustração constante sobre seu desejo de assumir ou não a abrasividade típica do filme de horror político. Vendo seus prédios uniformes, é fácil pensar no arranha-céu de luxo de Terra dos Mortos, de George Romero, ou de forma ainda mais incisiva no condomínio do Calafrios, de David Cronenberg. A diferença é que, ao contrario destes filmes, na Recife de O Som ao Redor a trama de contágio que rege todos estes filmes é mantida em suspenso, enquanto todos fingem não ver a tensão que se acumula.
Assim como, antes, Trabalhar Cansa já revisara as relações trabalhistas por via de um supermercado assombrado, O Som ao Redor termina por se impor ele próprio como uma história de fantasma. Só que, se o filme de Rojas e Dutra tinha um foco bem mais fechado e ao mesmo tempo muito mais alegórico, o filme de Kleber Mendonça Filho tenta dar conta de um processo histórico muito mais amplo e incontornável. É um sentimento de horror que dá as caras, por exemplo, na figura do Menino Aranha que a principio é tudo menos assustadora, mas que nossa convenção social nos manda olhar como uma ameaça. Estamos no território do filme de fantasma, e o que há de mais potente em O Som ao Redor é justamente a facilidade com que ele volta da paranóia de segurança da nossas classes mais favorecidas para um processo de violência histórica. É um ponto obvio, mas ao qual raramente se permite insurgir de forma tão direta. O vulto do Menino Aranha é um corpo mitológico que traz nele muitas violências passadas e cuja existência – constantemente fora do quadro; uma ideia muito mais do que uma presença – ajuda a justificar uma série de outras violências presentes e futuras (muitas das quais cometidas contra nós mesmos).

O horror se revela, principalmente, nas duas únicas sequências em que o filme rompe radicalmente com seu olhar de observação, em que o tom menor das idas e vindas do cotidiano da rua é infectado pela ficção e Kleber Mendonça Filho se permite abraçar por completo uma linguagem mais agressiva: no primeiro, a viagem de volta ao engenho termina num banho de cachoeira em que a água é substituída por um rio de sangue; e depois, naquela que é a sequencia mais memorável de todo o filme, uma pré-adolescente imagina sua casa aos poucos invadida por uma série de vultos negros, não um ou dois assaltantes, mais uma verdadeira insurreição que rompe a ordem social. São duas imagens que poderiam tranquilamente estar numa ficção passada no século XIX, o que ajuda a reforçar a ideia que este filme tão contemporâneo se encontra também suspenso no tempo. Em ambos estes momentos, o que O Som ao Redor consegue, com uma clareza que a ficção brasileira como um todo sempre teve grandes dificuldades de afirmar, é encontrar imagens que tornam este não-dito que rege a nossa opressão social de todos os dias um dado concreto físico, muito cruel e inescapável (não é por coincidência ou acidente que elas pertencem a pesadelos de duas das personagens mais simpáticas do filme, e não a tipos que o filme facilita o espectador de se afastar). É só pelo sobrenatural que este não-dito finalmente pode retomar até nós sem filtros, que a nossa história de violência pode finalmente se afirmar. A arquitetura nova-rica grosseira e os sustos de filmes B podem parecer, à primeira vista, objetos muito vulgares para carregarem um filme como este, mas é neles que O Som ao Redor encontra sua mais direta expressão.



HEY JOE

(Artigo sobre o cinema de Apichatpong Weerasethakul)

A história começa em 27 de setembro de 2002, na sala 1 do Estação Botafogo. Ao meio-dia. Eternamente Sua, o objeto misterioso daquele e de todos os festivais por que passou, nos convidava a uma sessão de hipnose. Um convite que aceitamos não se sabe exatamente como – o filme simplesmente acontecia, e nós simplesmente íamos aonde ele indicava. Era confirmada, de uma vez por todas, a sobrevivência do cinema para além de qualquer constrição que a cultura visual favorecesse. A "polícia dos signos", treinada durante décadas para que nada escapasse a seu arsenal analítico, nada tinha a fazer diante daquela experiência que, à parcela legível das imagens, antepunha a beleza crua e direta dos seus significantes primários. Ao final de Eternamente Sua(Blissfully Yours, prêmio Un Certain Regard em Cannes 2002), todos como que saídos de um sonho bom, não podíamos mais exigir muita coisa dos filmes seguintes do festival (arrebatamento que se repetiria dois anos mais tarde, com Mal dos Trópicos). 

Apichatpong Weerasethakul: soubemos de pronto que aquele nome esquisito deveria ser "aprendido" (logo, logo alguém teria o ímpeto de lhe emprestar um apelido internacionalmente pronunciável: Joe). Ao descobrir qual filme ele havia feito antes de Eternamente Sua, a conexão com o que, para nós, fora a "cena originária" não poderia ter sido maior: o primeiro longa-metragem de Apichatpong Weerasethakul se chama Objeto Misterioso ao Meio-dia. E é um filme que, apesar da câmera volta e meia assumir uma postura de reportagem, revela-se muito mais comobricolage do espaço e do imaginário nele incrustado (há mesmo algo de um "pensamento selvagem" no cinema de Apichatpong). Como todo filme dele, inclassificável; tanto documentário como ficção-científica – e nenhuma das duas coisas. A despeito de qualquer generalização que se possa tentar, a constatação fundamental é a de que Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo. Não há narrativa possível senão através do presente bruto, antinarrativo por excelência. 

É curioso que a história do que a obra desse cineasta desperta venha a ser uma história de intimidade. Ver Mal dos Trópicos cria o mais feliz dos paradoxos: de uma hora para outra, somos íntimos de um mistério. Conhecemos bem esse mistério: tão de dentro que se torna impossível transpor suas bordas. Como pode se dar isso, intimidade sem entendimento? Escrever-lhe uma carta não adiantaria, pois a experiência com Mal dos Trópicos é daquelas que não se pode partilhar nem com o autor. É muito mais uma experiência que se funda no contato direto com o sorriso do ator durante os créditos iniciais. Ele sorri olhando para nós; um sorriso tímido, mas infinitamente simpático.

A primeira parte de Mal dos Trópicos, que pode iludir o olhar com imagens relativamente conhecidas do cinema contemporâneo, não é em nada realista, não é uma abordagem objetiva a se contrapor à fábula mitopoética da segunda metade. Já está em jogo, mesmo nas passagens mais prosaicas daquela primeira parte, uma apreensão mágica do mundo (com a mesma carga naïf depois corroborada). Basta recapitular as cenas e perceber que tipo de relação o cineasta estabelece com esse espaço "não pré-estilizado": a visita à gruta, o cachorro encontrado na estrada, a cena musical com a cantora, a ida ao cinema, a sucessão de blocos narrativos mais ou menos soltos (desde um grupo de soldados achando um cadáver no meio do mato até o romance entre dois rapazes): tudo conflui para um sentimento oceânico de contigüidade total entre os seres, o tempo e o espaço.

Mal dos Trópicos foi prêmio da crítica na Mostra de São Paulo e, em maior ou menor intensidade, agradou também ao público em geral. Surpresa? Nenhuma: o contrário seria algo como não preferir vivenciar a imagem a apenas conhecê-la de vista. Seria tapar os ouvidos para aquela "canção de felicidade" que é cantada por "cada gota da alma". Seria deixar escapar por entre os olhos a chance rara de ver o mundo ser filmado enquanto está nu. E seria negar uma das maiores provas recentes da vitalidade do cinema. Dessa obra que vem se construindo de forma grandiosa, fica desde já a certeza de que dormir não é mais tão importante, pois Joe nos mostrou a possibilidade de sonhar ao meio-dia.


 Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/66/heyjoejunior.htm)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Cineclube Sesi: "O Som ao Redor" e "Eternamente Sua"

"O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho (às 16h00)

A presença de uma milícia em uma rua de classe média na zona sul do Recife muda a vida dos moradores do local. Ao mesmo tempo em que alguns comemoram a tranquilidade trazida pela segurança privada, outros passam por momentos de extrema tensão. Ao mesmo tempo, casada e mãe de duas crianças, Bia (Maeve Jinkings) tenta encontrar um modo de lidar com o barulhento cachorro de seu vizinho.

"Eternamente Sua", de Apichatpong Weerasethakul (às 19h30)

Roong espera ansiosamente pelo dia em que poderá voltar definitivamente aos braços de Min, seu amante, um birmanês que vive ilegalmente na Tailândia. Ela paga à senhora Orn para que cuide do amado, enquanto procura um lugar onde os dois poderão viver em paz e felizes. Numa tarde, Min leva Roong para um piquenique na floresta, um momento ideal para expressarem o amor que sentem um pelo outro. Na floresta, os caminhos de Min e da senhora Orn vão se cruzar novamente, dessa vez pondo em risco a permanência do imigrante no país.

Serviço:
dia 12/12 (quinta)
às 16h00 e 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
 
  (
 http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Poiésis 2014

A programação de 2014 do Poiésis - Caminhadas Literárias já está pronta e confirmada. Lembrando que estaremos em nosso segundo módulo, onde discutiremos o gênero romance antes sob o viés das rupturas realizadas por grandes obras do que de suas mal fadadas (apesar de supostamente necessárias) generalizações, uma de nossas intenções é mostrar a plasticidade deste gênero. Quem tiver interesse em se manter informado de todos os futuros detalhes envie seu e-mail para mucoelho@fcc.curitiba.pr.gov.br Sabemos que falta, no mínimo, Crime e Castigo na lista abaixo, mas foi o que conseguimos:

22/02 - Ulysses, de James Joyce, com Caetano Galindo.
15/03 - O Processo, de Franz Kafka, com Paulo Soethe.
05/04 - A Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector, com Lucia Cherem.
26/04 - As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, com Ernani Fritoli.
17/05 - Madame Bovary, de Gustave Flaubert, com Sandra Stopparo.
07/06 - O Som e a Fúria, de William Faulkner, com Luci Collin.
16/08 - Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, com Rodrigo.
30/08 - O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, com Marcelo Sandmann.
13/09 - Memórias Póstumas, de Machado de Assis, com Marilene Weinhardt.
04/10 - Satyricon, de Petrônio, com Rodrigo Gonçalvez.
25/10 - Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, com Isabel.
22/11 - Grande Sertão: Veredas, de Rosa (o mestre dos magos), com Paulo Soethe.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cineclube Sesi: "Sombra", de Philippe Grandrieux


Jean é um homem bruto que viaja pela França no seu automóvel, levando marionetes e uma fantasia de lobo como única bagagem. Jean é perseguido por suas lembranças da infância. Mal consegue se comunicar e é um tipo de "bloco de pedra". Num dia de chuva forte, ele encontra Claire, que havia acabado de sofrer um acidente de carro. Ele a coloca no seu carro e se forma um vínculo entre eles. Ela talvez reconheça nele, na sua falta de jeito e grosseria, a mesma coisa que também a força, sombriamente, às fronteiras do coração. Grandrieux conscientemente enreda os espectadores nessa história de serial killer, através da plateia de crianças de Jean: olhos impossivelmente abertos em terror extático.

Serviço:
dia 05/12 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
 
   (
 http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Cineclube Sesi: Cinema de Fluxo

Programação: 12/12 - REPOSIÇÃO - "O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho (às 16h00) + "Eternamente Sua", de Apichatpong Weerasethakul (às 19h30)
19/12 - REPOSIÇÃO - "Sombra", de Philippe Grandrieux (às 16h00) + "Elefante", de Gus Van Sant (às 19h30)

Serviço:
Sessões às quintas-feiras 
19h30*
*(exceto dia 12 com sessão dupla a partir das 16 horas)
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi 
Produção: Atalante

domingo, 1 de dezembro de 2013

Poiesis - Bíblia

Palestra do dia 14 de Dezembro: Bíblia, Vários Autores, com o professor Bernardo Brandão*

O "Poiesis - Caminhadas Literárias" é um evento de extensão, organizado e idealizado por alunos da UFPR (membros e parceiros do Coletivo Atalante) e coordenado pelo professor Benito Rodrigues. Tal evento consiste em um conjunto de palestras ministradas por professores da mesma instituição. O objetivo principal deste evento é oferecer palestras sobre obras literárias clássicas tanto à comunidade acadêmica quanto à comunidade não acadêmica. Nosso intuito é abrir as portas da universidade a todos os públicos, para assim tornar o saber acadêmico, constituído em torno do universo literário, acessível a quem de direito: o leitor! Dividido em três módulos - Grandes Narrativas, O Romance e A Poesia - este evento terá três anos de duração (2013-2015), sendo que em cada módulo (que terá um ano de duração) os organizadores optaram por dispor as palestras em uma ordem que não obedecesse à cronologia de publicação das obras (como geralmente é feito), mas sim ordená-las ao acaso (a ordem das palestras foi determinada em lances de dados, em homenagem ao poema "Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso", do poeta Mallarmé). Isso é para nos aproximarmos mais da experiência real de qualquer leitor, que lê antes movido por desejos e impulsos do que seguindo cronologias rígidas, dai o nome "Caminhadas Literárias", que nos sugere uma mobilidade intermitente e não vetorizada. Outro objetivo importante está atrelado à estrutura das palestras, que serão divididas em dois momentos: um destinado a uma consideração teórica e crítica sobre a obra em questão e o outro voltado à leitura de um trecho (ou trechos) da obra, ou seja, um momento de fruição, sendo que a ordem destes "momentos" será determinada por cada palestrante. O evento é gratuito e a cada término de módulo sortearemos as obras que serão analisadas em cada palestra, mas só concorrerá ao sorteio aqueles que tiverem ao menos 80% de frequência.

- Local: Anfiteatro 1100 do Ed. Dom Pedro I (UFPR Reitoria), Rua General Carneiro 460.
- Horário: 14h às 18h. Todas as palestras ocorrerão aos sábados.

Programação:

- 22/06: Os Lusíadas, com Marcelo Sandmann.
- 13/07: Fausto, com Paulo Soethe.
- 27/07: Odisseia, com Roosevelt da Rocha.
- 31/08: Metamorfoses, com Rodrigo Gonçalves.
- 14/09: Ilíada, com Bernardo Brandão.
- 21/09: Canção de Rolando, com João Arthur.
- 28/09: A Divina Comédia, com Ernani Fritoli.
- 19/10: As Tragédias de Shakespeare, com Liana Leão.
- 09/11: Teogonia, com Roosevelt da Rocha.

- 14/12: Bíblia, com Bernardo Brandão.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Pagamento Final, de Brian De Palma


Carlito's Way, 1993

Uma linha. Uma linha reta, que precisa ser percorrida até o fim. Simetrias, geometrias, contrastes de espaços, construções e paisagens que o tempo inteiro nos lembram o caminho a ser traçado. O caminho de Carlito é o nosso, mas sua maneira é a de Eddie Taylor, a de Michel Poiccard, a do soldado Eriksson, a de Butch Haynes e também Tom Garrett, Ethan Hunt, John 'Scottie' Ferguson, Gregory Arkadin e William Munny. Brian De Palma, o jovem que queria ser Jean-Luc Godard, transforma-se em um dos principais realizadores do cinema de gênero norte-americano com este O Pagamento Final. Se Um Tiro na Noite, Scarface e Os Intocáveis já prenunciavam uma maestria do diretor nas maneiras em que trabalhava o filme policial, o filme de gangster e o thriller de suspense, em O Pagamento Final temos muito mais que a simples conjugação de gêneros, muito mais que uma exibição de maestria estéril (algo que muitos gostam de pensar sobre o cinema de De Palma). O Pagamento Final é um momento de maturidade na obra do seu diretor, um filme onde torna-se necessário rever o que já se fez e partindo disso preparar, gradualmente e com muito trabalho, novos caminhos, novas possibilidades para seu cinema. A sua linha, o seu caminho.
O enredo de O Pagamento Final, como sempre com De Palma, é um já bastante difundido e conhecido pelo público médio: após sair da prisão, ex-gangster quer se manter "limpo" para fugir com sua amada para as Bahamas. Até aqui nada de mais, ou melhor, apenas mais do mesmo. O que De Palma pode tirar desta historieta, de um tema tão completamente batido? Um mundo. E não o mundo que se imagina no cinema de De Palma, um mundo que só pode ser construído com movimentos ensandecidos da steadycam e um trabalho fabuloso com a câmera: é antes de tudo o mundo que existe entre um plano e seu contraplano, o mundo que existe quando Carlito espia do alto de um edifício, com apenas uma tampa de lixo protegendo sua cabeça da chuva, Gail dançando balé durante uma aula que ocorre em outro edifício; é o mundo que existe na cena em que Carlito visita Gail de madrugada e os dois ficam conversando, trocando sorrisos e seduções pela brechinha aberta de uma porta, brechinha que permite De Palma filmar apenas em extremos close-ups e extremos close-ups que permitem De Palma filmar esta cena íntima com um máximo de encantamento e beleza; é o mundo que existe no momento em que Carlito, hesitante em perseguir ou não Gail no meio de uma chuva torrencial, se joga numa porta e respira nervosamente por alguns instantes para instantes depois sair correndo atrás de sua amada no meio da chuva; e é o mundo que existe quando Carlito, após aceitar o favor pedido pelo seu amigo advogado Dave Kleinfeld, é abraçado por Dave numa das mais tocantes exibições de humanidade em todo o cinema de De Palma. O interesse de De Palma por essas pessoas, por aquilo que elas fazem e aquilo que elas são (nesta ordem), alcança neste filme uma intensidade poucas vezes vista no seu cinema.
Mas Brian De Palma, bem sabemos, não costuma fazer filmes pequenos sobre coisas pequenas. Ele se interessa por elas, gosta de observá-las até, mas é necessário manter a ilusão, o ilusório. O cinema é o espetáculo, e seu Carlito Brigante é um personagem espetacular. Portanto, são nos momentos onde o espetáculo alcança seu apogeu que De Palma melhor nos deixa conhecer esse Carlito Brigante (não à toa, este nos é introduzido como se estivesse recebendo um Oscar). Os caminhos que Carlito escolhe são sempre aqueles que levam aos momentos de cinema mais prodigiosos: a seqüência onde acompanha seu primo para uma "entrega", por exemplo, não é apenas um primor de realização e encenação, mas é também o primeiro momento onde fica claro que o sonho de Carlito de se manter limpo é uma impossibilidade, algo que seu passado, sua história, não permitirá. E depois temos o favor prestado a Dave (a quem havia dito em outro momento, "Um favor lhe matará mais rápido do que uma bala"), as atribulações com o jovem traficante Benny Blanco ("from the Bronx") e o tour de force final, uma perseguição em estações de metrôs que talvez seja a melhor coisa que já vimos em um filme de Brian De Palma em termos de concepção e realização cinematográfica.
Mas entre tudo isso, o que temos? A vida, o cinema e o mundo. Os caminhos que as pessoas escolhem para si mesmas e os caminhos que elas descrevem. Carlito, Gale e Dave. Minnelli (o senso musical da câmera e a coreografia na perseguição de Carlito pelos mafiosos no metrô, as danças de Gail, a leveza na câmera e o El Paraiso), Welles (a estrutura que De Palma escolhe para o filme, semelhante à de Grilhões do Passado) e Eastwood (lançado seis meses depois, seu Um Mundo Perfeito guarda semelhanças bastante reveladoras com o filme de De Palma). Um inventário do cinema de gênero norte-americano? Também, e além. Existem instantes de intimidade que De Palma insiste em capturar – como a conversa entre Carlito e Gail após ele descobrir que ela trabalha num strip club (e, via de regra, todos os momentos que ambos partilham durante o filme), as primeiras cenas de Carlito e Dave, dançantes e falantes após o sucesso no tribunal, ou todos as cenas em que Carlito precisa entrar em choque com o seu passado e lidar com o fato de que um passado de crimes irá uma hora alcançá-lo – que parecem simplesmente não fazer parte do registro a que De Palma se propõe, ou aquilo que costuma se imaginar que seria um filme destes. Não um contraste, muito menos algo de errado: é como se De Palma e seu roteirista David Koepp nos oferecessem o outro lado da moeda, mostrando que um gangster do cinema norte-americano possui uma namorada de quem gosta, amigos, metas que não o crime e assassinatos; enfim, que um personagem como este (e todos aqueles que estão à sua volta) possui uma vida como qualquer outra pessoa.
A memória pede pelo John Cassavetes de The Killing of a Chinese Bookie, mas seria um exagero, mesmo que um plenamente aceitável (afinal, não foi Cassavetes quem De Palma explodiu na conclusão de A Fúria?). Não, o paralelo mais adequado é mesmo o de Samuel Fuller, pela maneira que sempre adorou as figuras marginais e os fracassados e por sua adoração pelos tipos cinematográficos: seu universo é repleto de pequenos ladrões, jornalistas moribundos, soldados ignorantes, soldados letrados, mulheres da vida, mendigos e todo o tipo de minoria. Fuller nos mostra toda essa variedade de tipos como invariáveis grosseiros e boçais, mas é justamente na necessidade de se manterem vivos a qualquer custo e buscar nas limitações de suas vidas aquilo que de melhor podem obter que reside o encanto de Fuller por eles. De Palma também trabalha com tipos aqui, mas um pouco mais sofisticados. Carlito Brigante é um ex-gangster mas é também dono de um clube bastante badalado, enquanto Dave Kleinfeld é um jovem advogado muito bem situado. Talvez a personagem realmente mais próxima de um personagem de Fuller seja a namorada de Carlito, Gail, mas ainda assim durante o filme ela revela uma inocência que poucos personagens de Fuller apresentam.
E se já situamos Fuller, Cassavetes, Eastwood, Minnelli e Welles como possíveis referências, temos outras duas que também saltam aos olhos: Alfred Hitchcock (como não podia deixar de ser) e principalmente Fritz Lang. De Hitchcock obviamente os mesmos interesses de sempre: o jogo de simulações e manipulações do olhar (no jogo de sinuca ao início do filme ou na saída de Carlito doEl Paraiso que antecede a perseguição na estação de metrô) e Um Corpo Que Cai (as seqüências em que um Carlito meio perdido persegue Gail, referência clara ao clássico de Hitchcock e uma das imagens prediletas de De Palma). A parte de Lang, porém, é a que mais se faz notar durante o filme: como nos principais filmes do cineasta alemão, temos em O Pagamento Final um personagem que, com todas as suas forças, entrará em confronto com aquele que se delineia como seu destino certo. O que Carlito talvez possui de mais nobre é justamente essa luta, essa capacidade de tornar possível qualquer coisa que lhe aproxime de seu sonho, Gail e as Bahamas. Nada do pessimismo da maioria dos heróis depalmianos: Carlito é alguém que sempre olha o que está por vir e tenta tirar o melhor disto. Na sua luta contra o destino, Carlito mostra esse humanismo tão maravilhoso que existe em De Palma, um humanismo absurdo (e fantástico) por ser a morte inevitável para Carlito (o filme já começa com ele, na Grand Central Station, deitado numa maca, acompanhado por Gail). Talvez por isso o jogo de simetrias, seja no El Paraiso (a trilha de metrô situada ao lado do clube, o caminho para o "paraíso"), na mansão de Dave (o pequeno cais que leva ao barco onde os destinos de Carlito e Dave serão definidos) ou no seu apartamento (a ponte de Manhattan), na escada rolante do Grand Central Station, onde De Palma cria uma das mais brilhantes seqüências da história do cinema, ou mesmo quando já na garagem dos metrôs Carlito corre em direção a sua Gail, a única corrida realizada por ele no filme aliás. A irrepreensibilidade patente nessas tão simples linhas retas, é o tema de O Pagamento Finalcomo o é de toda a obra de Lang.
"Mas e quanto à crença na imagem de Blow Out, de Dublê de Corpoou de Olhos de Serpente? Onde ela está em O Pagamento Final?", pergunta o leitor. Bom, ela está na necessidade que De Palma tem de transformar o tema do filme (o caminho de Carlito) em imagens das mais marcantes o tempo todo, sendo que aqui essa crença adquire um contorno que poucas vezes – em Um Tiro na Noite eTrágica Obsessão talvez, como também em Pecados de Guerra eOlhos de Serpente – o diretor se preocupou em apresentar com tamanho impacto: um catolicismo resoluto, que se apresenta na própria presença de Carlito, e que se manifesta principalmente ao final do filme, nos últimos instantes mesmo, quando Carlito é levado baleado numa maca para fora da Grand Central Station. Policiais o cercam, médicos o atendem, Gail o acompanha, trabalhadores e outras pessoas observam o seu caminho. Um outdoor surge, na parede da estação. Nele, em letras brancas, lemos a frase "Escape to Paradise", com ao fundo a imagem de uma praia. Preenchem o quadro o mar, a folha de uma palmeira, o sol intenso e o perfil de uma mulher que dança ao som executado por um grupinho de bahamenses. Campo, contracampo: no plano fixo, o zoom nos aproxima ao olhar de Carlito; no corte, ao outdoor. A lógica da cena é a lógica da criação cinematográfica: a imagem imóvel no outdoorsó poderá ganhar vida a partir da morte de Carlito. No vivo olhar de Carlito, apenas o desejo de dar movimento a esse cenário. Pouco a pouco, quadro a quadro, as imagens vão ganhando movimento: o sol começa a se pôr, as folhas da palmeira ganham um balanço e sua mulher dança ao som do grupinho. É Gail quem está no outdoor, já depois da viagem para as Bahamas. Carlito esboça um sorriso, fala "Tired, baby. Tired", e fecha os olhos. Neste momento, a imagem que antes estava limitada ao outdoor já ocupa todo o quadro do Panavision de De Palma, contendo aquilo que antes víamos apenas no olhar de Carlito: o movimento. A ascese de Carlito só pode ocorrer através do cinema – em outras palavras, com o cinema ecomo cinema. É esse momento, esse momento de celebração da vida através do ato de morte, que encerra tudo aquilo que é a crença de Brian De Palma na imagem, no cinema – ou melhor, uma crença de vida que é uma crença na imagem e no cinema.

Bruno Andrade
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/47/pagamentofinal.htm)