sexta-feira, 25 de março de 2016

Cine FAP: "Ana das Índias", de Jacques Tourneur


 A capitã Ana Providência, jovem discípula do terrível Barbanegra, se apaixona pela primeira vez na vida por um misterioso prisioneiro francês, o corsário Pierre La Rochelle.

Tourneur mesmo parece falar através de seus filmes, tão macia e remotamente quanto suas personagens. Diferentemente do autor clássico que impõe sua visão ao filme, Tourneur apaga sua visão, não através da ausência de estilo, mas por meio de um estilo que enfatiza a ausência. A abundância de tomadas longas, a discrição das performances, a unidade de atmosfera sustentada através da iluminação e do cenário, o tom mudo que transmite desconforto profundo - tais marcas da reticência de Tourneur sugerem não o desinteresse ou a timidez mas o desejo de elevar seu material ao mais alto patamar da verdade. Esta se torna, paradoxalmente, cambiante e indefinida. O cinema de Tourneur, obcecado pelo indemonstrável e pelas condições de sua própria impossibilidade, é a antítese do cinema de espetáculo. Ele respeita a audiência tanto quanto respeita a realidade, arriscando-se à incompreensão e ao olvido mas nos dando razões ainda maiores para escutá-lo com atenção.
Chris Fujiwara - adaptado da introdução de seu livro sobre Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall.

O cineclube semanal do curso de cinema e vídeo da Faculdade de Artes do Paraná exibe em março quatro filmes de pirata da hollywood clássica: O Cisne Negro, de Henry King (07/03); No Rastro da Bruxa Vermelha, de Edward Ludwig (14/03); Falcão dos Mares, de Raoul Walsh (21/03); e Ana das Índias, de Jacques Tourneur (28/03). Após a exibição de cada filme há uma discussão sobre, mediada pelos integrantes do cineclube.

Sessão:
dia 28/03 (segunda-feira)
às 19h
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

Realizado por Cine FAP
Apoiado por Cazé - Centro Acadêmico Zé do Caixão
e pelo Coletivo Atalante


Última semana de inscrições para a oficina de crítica


sábado, 19 de março de 2016

2 anos de Cineclube da Cinemateca: Mostra Rivette Crítico


No aniversário de 2 anos do Cineclube da Cinemateca prestamos esta homenagem ao crítico Jacques Rivette, com uma mostra concebida a partir de alguns de seus textos. 

Programação
19/04, terça às 16h30: Sob o signo de Capricórnio, de Alfred Hitchcock

(Under Capricorn, 1949/EUA – 117 min)
Em 1831 o irlandês Charles Adare (Michael Wilding) viaja à Austrália para começar uma nova vida. Logo ao chegar conhece o poderoso Sam Flusky (Joseph Cotten) e descobre que a esposa deste, Henrietta (Ingrid Bergman), foi sua colega de infância. Bela e instável, Henrietta é agora uma atormentada alcoólatra e sua reaproximação de Charles desperta ciúmes em Sam.
19/04, terça às 18h30: O nascimento de uma nação, de D. W. Griffith

(The birth of a nation, 1915/EUA – 193 min)
Dois irmãos da família Stoneman visitam os Cameron em Piedmont, Carolina do Sul. Esta amizade é afetada com a Guerra Civil, pois os Cameron se alistam no exército Confederado enquanto os Stoneman se unem às forças da União. São retratadas as conseqüências da guerra na vida destas duas famílias e as conexões com os principiais acontecimentos históricos, como o crescimento da Guerra da Secessão, o assassinato de Lincoln e o nascimento da Ku Klux Klan.

20/04, quarta às 16h30: O inventor da mocidade, de Howard Hawks

(Monkey Business, 1952/EUA – 97 min)
Barnaby Fulton (Cary Grant), casado com Edwina (Ginger Rogers), é um cientista obcecado em descobrir uma fórmula de rejuvenescimento. O projeto é acompanhado com atenção por Oliver Oxley (Charles Coburn), seu chefe, que prevê lucros imensos caso o produto funcione. Barnaby realiza testes com alguns macacos que mantêm em seu laboratório, sem sucesso até o momento. 

20/04, quarta às 19h30: A tortura do silêncio, de Alfred Hitchcock

(I confess, 1953/EUA – 95 min)
O empregado de uma paróquia comete um assassinato vestido de padre, e as suspeitas caem sobre o jovem padre Michael. Para complicar a situação deste, a polícia descobre que ele está emocionalmente envolvido com uma garota e que a vítima estava chantageando os dois.

21/04, quinta às 16h30: Terra dos faraós, de Howard Hawks

(Land of the pharaohs, 1955/EUA – 144 min)
No antigo Egito um faraó (Jack Hawkins), ao retornar de uma campanha vitoriosa, decide construir uma pirâmide, onde será enterrado juntamente com seu tesouro, que espera desfrutar em uma segunda vida. Para garantir que nada será roubado ele aprova a idéia de um arquiteto, que é seu prisioneiro, juntamente com seu povo. Eles fazem um acordo, que se o arquiteto construir esta magnífica pirâmide os cativos serão gradativamente libertados durante a construção. 

21/04, quinta às 19h30: Viagem à Itália, de Roberto Rossellini

(Viaggio all'Italia, 1954/Itália – 97 min)
Catherine (Ingrid Bergman) e Alexander Joyce (George Sanders) formam um rico casal de ingleses que viaja para Nápoles, na Itália, com o objetivo de vender uma propriedade que eles herdaram. O relacionamento começa a esfriar e a tensão entre os dois cresce cada vez mais. Catherine entra numa jornada nostálgica ao se lembrar de um poeta que a amava e morreu na guerra. 

22/04, sexta às 16h30: Les mauvaises rencontres, de Alexandre Astruc (*legendas em espanhol)

(Les mauvaises rencontres, 1955/França – 84 min)
Um jovem de origem humilde que fez o seu caminho entre os mais elevados círculos da sociedade francesa, é submetido a um interrogatório policial no Quai des Orfèvres. Há modo de flashback revive os diferentes momentos que antecederam a glória com a qual nunca tinha sonhado.

22/04, sexta às 19h30: Juventude transviada, de Nicholas Ray

(Rebel without a cause, 1955/EUA – 111 min)
Jim Stark (James Dean) é um encrenqueiro, que fez os pais se mudarem de uma cidade para outra até se fixarem em Los Angeles, que é preso de madrugada por embriaguez e desordem. 

23/04, sábado às 19h30: Suplício de uma alma, de Fritz Lang

(Beyond a reasonable doubt, 1956/EUA – 80 min)
Susan, que é contra a pena de morte, convence seu futuro genro Garrett a assumir a culpa por um crime, para explorar os meandros do sistema penal americano. Ela promete salvá-lo, com provas cabais de sua inocência, depois de conseguir as informações. Mas a situação se complica quando Susan é assassinada, e Garrett perde seu álibi.

24/04, domingo às 16h30: Bom dia, tristeza, de Otto Preminger

(Bonjour, tristesse, 1958/EUA – 94 min)
Paris. Cecile (Jean Seberg) tenta se divertir para esquecer a tristeza que se apossou dela. Esta tristeza teve origem no último verão, quando seu pai, Raymond (David Niven), um viúvo rico que só pensava em se divertir, viajou para a Riviera Francesa acompanhado por sua amante, Elsa Mackenbourg (Mylène Demongeot) e Cecile. 

24/04, domingo às 19h30: A Imperatriz Yang Kwei Fei, de Kenji Mizoguchi

(Yokihi, 1955/Japão – 98 min)
O filme se passa há muitos séculos e é baseado na lenda chinesa Yokihi. No século VIII T'ang da China, o Imperador viúvo Hsüan-tsung (Masayuki Mori) reina sozinho, dedica sua vida à música e vive de luto por conta da morte da última Imperatriz. 

26/04, terça às 16h30: Os incompreendidos, de François Truffaut

(Les quatre cents coups, 1959/França – 99 min)
Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) é o filho negligenciado de Gilberte Doinel (Claire Maurier), que parece ter tempo para tudo menos o bem-estar da criança. 

26/04, terça às 19h30: Machorka-Muff, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet + No silêncio de uma cidade, de Fritz Lang

(Machorka-Muff, 1963/Alemanha – 18 min + While the  city sleeps, 1956/EUA - 100 min)Nas palavras de seus diretores, “Machorka-Muff” é a história de uma violação (a violação de um país, ao qual re­impuseram um exército, no qual um antigo general nazista é convidado a tomar parte num imaginário rearmamento do governo alemão no pós-guerra, após a renúncia política do chanceler Konrad Adenauer.A morte do magnata da mídia Amos Kyne (Robert Warwick) provoca uma disputa de poder nas suas empresas. Ao mesmo tempo, Nova Iorque sofre com os ataques de um serial killer de mulheres. Edward Mobley (Dana Andrews) precisa capturar o assassino, evitar que as empresas Kyne caiam em mãos erradas e ainda tentar salvar seu relacionamento do fim.
Serviço:
De 19 a 26 de abril
(terça a terça)
Sessões às 16h30 a 19h30
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

sexta-feira, 18 de março de 2016

Cine FAP: "Falcão dos Mares", de Raoul Walsh


Durante as guerras napoleônicas, um oficial da marinha britânica se aventura pelos mares do Caribe.

O cineclube semanal do curso de cinema e vídeo da Faculdade de Artes do Paraná exibe em março quatro filmes de pirata da hollywood clássica: O Cisne Negro, de Henry King (07/03); No Rastro da Bruxa Vermelha, de Edward Ludwig (14/03); Falcão dos Mares, de Raoul Walsh (21/03); e Ana das Índias, de Jacques Tourneur (28/03). Após a exibição de cada filme há uma discussão sobre, mediada pelos integrantes do cineclube.

Sessão:
dia 21/03 (segunda-feira)
às 19h
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

Realizado por Cine FAP
Apoiado por Cazé - Centro Acadêmico Zé do Caixão
e pelo Coletivo Atalante

quarta-feira, 16 de março de 2016

Poiesis 2016

Caros, bom dia!
Divulgamos, abaixo, nossa programação de 2016.
Nesse ano, os encontros serão mais curtos: duas horas de duração e se iniciarão às 14h30, sempre aos sábados, é claro.
As inscrições poderão ser feitas a partir de 15 de março, na secretaria do DELLIN.
19/03 – Literatura e Música – Caetano Galindo
30/04 – Literatura e História – Luís Bueno
18/06 – Literatura e Antropologia – Alexandre Nodari
27/08 – Literatura e Artes Plásticas – Sandra Stroparo
24/09 – Literatura e Psicanálise – Flávia Cera
19/11 – Literatura e Filosofia – Pedro Dolabela

Nos vemos em breve!
Abraços da Equipe Poiesis

segunda-feira, 14 de março de 2016

EDWARD LUDWIG


por Michel Mourlet

Roma é esplêndida em muitos aspectos. Neste mês, além de seus habitantes ariscos de joelhos marrons sob vestidos chamativos, além de seus palácios de cores melão, seus contos de mil e uma fontes que recobrem com um murmúrio eterno de bosques os louros e os cedros, pode-se assistir a dois filmes inesperados, selvagens, que deixam como que arranhões de garras por onde passam. Trata-se de Paixão Sangrenta (The Fabulous Texan, 1947) e No Rastro da Bruxa Vermelha (Wake of the Red Witch, 1948), de Edward Ludwig. Nós já conhecíamos, e amamos, Sangari (Sangaree, 1953), Um Amor Proibido (Flame of the Islands, 1956), Pantera Negra (Caribbean, 1952) e, sobretudo, O Tesouro Perdido do Amazonas (Jivaro, 1954) onde um casal de deuses, Rhonda Fleming e Fernando Lamas, aproximam-se da felicidade com a fluência lenta dos barcos. Há nestes filmes heróicos uma respiração tranqüila, forte e de uma rara liberdade até mesmo dentro de crises e estrondos. A elipse devastadora e de longos silêncios amadurece o evento e tece a trama de uma duração narrativa ao mesmo tempo que de realidade bruta, onde um ao outro se complementam e se confundem. Deve-se ter visto John Carroll, com água até o meio das coxas[1], morrer como um javali após um último ataque inesperado, fatal também ao caçador. E também a agonia de John Wayne em seu escafandro cheio de água[2], enquanto o mar engole mais profundamente e pela segunda vez o navio carregado com ouro, extraordinário naufrágio sob o mar. Duas cenas que são um balanceamento do evento entre uma posição de ruptura e uma posição de equilíbrio, relojoaria sabiamente composta de silêncios ao fim dos quais o menor rangido repercute como um trovão.

Esses filmes de orçamento pouco elevado dão a impressão de luxúria: profusão de sentimentos, de eventos, de lugares, fermentados com uma maestria de velho contador de histórias sob a qual perfura uma inquietude revelada por lampejos, momentos agudos, laceração de um rosto ou de um corpo, que conferem uma dimensão diferente a obras em aparência comparáveis às de Walsh ou de Dwan. Gostaríamos de chamar a atenção para um cineasta quase totalmente desconhecido, cujo pequeno número de filmes que nós tivemos a chance de ver justificam, coisa pouco comum, que para nos aprisionarmos em uma sala escura, deixemos Roma e o sol por um momento.

Notas:

[1] Em Paixão Sangrenta.

[2] Em No Rastro da Bruxa Vermelha.

(La mise en scène comme langage, Éditions Henri Veyrier, 1987, pp. 227-228. Traduzido por Luan Gonsales e extraído de 
http://focorevistadecinema.com.br/jornalmourletludwig.htm 

sábado, 12 de março de 2016

COMO UM NADADOR SOLITÁRIO...


Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 391, janeiro de 1987.

A escola do super-8

Cahiers du Cinéma: Como você foi levado a fazer cinema? Qual foi sua formação?

Nanni Moretti: Durante meus últimos anos no colegial, eu era um espectador apaixonado sem, no entanto, ser alguém doente. Eu via tudo, inclusive os filmes ruins, pois é muito importante vê-los. Fazer cinema? Não se pensa isso, é algo instintivo. O cinema, para mim, era, e é sempre, um meio adequado para comunicar aos outros e a mim mesmo aquilo que tenho dentro de mim. Na época, eu não conhecia ninguém no meio do cinema e os meus pais não tinham nada a ver com ele – eles são professores. Fazer cinema era um risco. Não era “Eu vou fazer cinema e eu farei”, mas mais um ponto de interrogação. Eu tinha que escolher entre duas vias diferentes, ou entrar numa escola de cinema ou me tornar assistente. Felizmente, não fiz nem um nem outro. O Centro Experimental de Cinema em Roma era reservado unicamente àqueles que tinham obtido um diploma de mestrado. Não tendo feito universidade após o colegial – eu não tinha muita vontade de entrar numa outra escola -, era impossível, para mim, me inscrever nesta escola de cinema. Por outro lado, a Academia de Arte Dramática, que é uma escola reservada aos atores (onde se ensina um tipo de atuação um pouco fria, árida), não me convinha. Então, eu tentei me tornar assistente, mas não funcionou. Cada vez que eu pedia diretamente a um diretor, a resposta era não. Ser assistente de um diretor é um trabalho diferente de querer se tornar diretor. Não há transmissão de uma expressão artística entre o diretor e seu assistente. Há somente histeria: berra-se, grita-se, e isto é tudo o que é dito entre os dois. O diretor tem o filme todo na cabeça e nem sempre quer comunicar, mostrar a outros seu processo, do roteiro à filmagem. Ser assistente é útil, talvez, uma vez ou duas, para compreender como é a organização, o plano de filmagem, mas de maneira alguma para saber o que é o cinema num plano artístico, pela proximidade com o processo do diretor. Ser assistente permite igualmente apreender um set de filmagem do ponto de vista psicológico: as relações entre o diretor e os atores, o diretor de fotografia, os técnicos. As pessoas têm o seu caráter, suas suscetibilidades, não é fácil. Para além do trabalho de assistente, há o risco de se tornar um cineasta profissional. Na Itália – não sei como é nos outros países -, dizer que um cineasta é um expert, que é um bom profissional, é o pior elogio que se pode oferecer a ele. É um defeito, não uma qualidade. É realmente muito negativo. Na Itália, quando um cineasta não é bom, dizemos que ele é bem preparado tecnicamente, bem instruído. O que nos leva a falar de uma não-mise en scène, uma mise en scèneestandardizada, impessoal: é ele, mas poderia ser qualquer outro. 

Então, eu comecei a fazer cinema absolutamente sozinho, filmando pequenos filmes em super-8. La Sconfitta e Pâté de bourgeois (a história de um garoto que coloca secretamente sua câmera em banheiros públicos), que eu filmei em 1973, são filmes em que eu fiz tudo: a escritura do roteiro, a direção, a fotografia, a montagem, o ator. Foi assim que eu aprendi. O super-8 é uma escolha por falta de meios, mas é também um meio de expressão simples, longe de todo profissionalismo pesado. Na minha opinião, não há verdadeiro cinema sem um aporte pessoal, e com o super-8 há isso obrigatoriamente. Então, eu não poderia ter começado melhor. Amo quando a técnica é simples, não visível. O resto é a expressão, a linguagem, o estilo. 

O super-8 me pôs na via de um cinema simples. É este que eu amo, e não um cinema simplista ou banal. É muito mais difícil fazer um filme com uma câmera imóvel do que movendo-a sem razão aparente. É mais difícil fazer um cinema simples do que um videoclipe. Um cinema simples pressupõe um grande trabalho de escrita previamente. É um cinema que confia no espectador, pois, no caso de um filme cômico, ele não o obriga a rir em tal momento, com um enorme piscar de olhos ou uma careta, ou a chorar em tal outro. Fazer um filme simples não constitui um ponto de partida, somente um pouco de chegada. 

Carta de um cineasta

CC: O fato de ter filmado em super-8 (condições de trabalho, leveza do suporte) permitiu a você abrir espaço à improvisação na filmagem?

NM: Enquanto ator, sou incapaz de improvisar. Não quero tentar e não acredito de maneira alguma na improvisação. Alguém como Begnini pode improvisar – ele tem a experiência do teatro, da cena -, eu não. Como cineasta, também não improviso. Passo muito tempo escrevendo um roteiro. Durante a preparação, posso modificar certas coisas de acordo com os atores e as locações, mas eu não improviso. Alguns diretores de filmes cômicos dizem: “Ah, como nos divertimos na filmagem, improvisamos bastante.” Isso não quer dizer que o público achará isso divertido. Quando começo a filmar, tenho o roteiro mas não a decupagem em planos, com os movimentos de câmera. Faço a decupagem  durante a filmagem ou pela manhã, no carro a caminho do set, como um garoto que faz seus deveres de casa atrasado, no último momento, depois de ter passado a noite jogando futebol ou vendo televisão.

CC: No início, sua vontade de fazer cinema era ser, ao mesmo tempo, ator e diretor ou somente ator?

NM: Os dois ao mesmo tempo, desde o início. Me parecia natural para o tipo de filmes, muito pessoais, que eu queria fazer. Truffaut disse um dia, ao ser perguntado por que tinha sido ator em filmes como L’Enfant Sauvage e A noite americana: “Há cartas que escrevemos à máquina; esses dois filmes são cartas escritas à mão.” Quanto a mim, eu jamais escrevi uma carta à maquina em toda a minha existência. Eu sempre atuei em meus filmes e sempre pensei, sem me colocar muitas questões, que a minha maneira de atuar ou de não atuar era, com os seus ritmos, suas pausas, seus silêncios, aquela que convinha a meus filmes.

CC: Você não considera dirigir um filme sem atuar nele, ou ser ator de um outro cineasta?

NM: Dirigir sem atuar? Até o momento, não. Ser ator em filmes de outros, eu não digo não, mas, para isso, há muitos fatores que entram em jogo e que tornam a coisa muito difícil. Seria preciso que eu amasse o tema, que amasse o personagem, que tivesse vontade de atuar, que eu amasse o cineasta com o qual iria trabalhar e, sobretudo, que eu tivesse tempo de fazê-lo.

Autorretrato de um personagem

CC: Quando concebe o personagem que você interpretará, você parte primeiro da sua profissão (professor, padre), da função que ele exerce na vida social?

NM: Não. Para A missa acabou, me divertia vestir uma batina, me ver assim, muito antes de pensar no papel do padre, sua significação, mesmo que  seja um personagem que tem a ver com aqueles que já interpretei. Quando escrevo um roteiro, me apoio em fatos precisos. Não começo escrevendo uma história. É preciso primeiro que eu identifique a psicologia do meu personagem, seus sentimentos. O resto, a história, deriva daí.

CC: Em que seus personagens se revelam autobiográficos?

NM: Eles o são pelo caráter, por certos dados psicológicos, mas não realmente pelos episódios contados pelo filme. Se quisermos ser minuciosos, o mais autobiográfico seriaEcce Bombo, em que eu faço o papel de um cineasta que vive com sua mãe, que é um pouco colérico (ele agride todo mundo) e que faz um filme sobre um velho senhor que vive com sua mãe e se toma por Freud [a descrição, no entanto, corresponde a Sogni d’oro, e não Ecce Bombo. N.T.]. Nos meus sonhos, eu me vejo um professor apaixonado por uma de suas alunas. Em Io sono un autarchico, faço o papel de um pai que acaba de deixar sua esposa e que vive com seu filho de cinco anos. É um ator de teatro que participa de uma trupe de vanguarda, a “Escola Romana”, o que estritamente não tem nada a ver com a minha vida: eu não tenho filhos e jamais fiz teatro.  Meus personagens são autobiográficos na medida em que eles representam um estado de espírito meu em um dado momento e em que eles exprimem sentimentos. 

Os personagens dos meus dois últimos filmes (Bianca e A missa acabou) são próximos. Eles se realizam nos outros e sua felicidade se dá através daquela do outro. No fim, eles percebem que a realidade, felizmente ou infelizmente, é mais complicada do que eles esperavam. Quando personagem de Bianca percebe que a realidade não é tal como ele quer, ele a destrói: ele mata seus amigos que se traíam uns aos outros e que, por esta mesma razão, traíam a ele. Em A missa acabou, o personagem começa a aceitar a ideia de que a realidade é mais complicada do que ele imaginara. Então, ele não insiste. É ao mesmo tempo uma vitória e uma derrota. Uma derrota com relação aos outros, porque ele não conseguiu fazer algo por seus amigos. Uma vitória sobre ele mesmo, em relação ao personagem de Bianca, porque ele assume sozinho esta derrota.

Autobiografia, certo, mas autoterapia não. Não faço filmes para resolver meus problemas – eles não mudam nada, não me sinto melhor uma vez que o filme foi realizado e não creio de maneira alguma nesta função do cinema -, mas somente porque eu gosto de comunicar pelo viés do cinema. 

Atores em família

CC: De onde vêm os atores de seus filmes? Aqueles de A missa acabou são formidáveis. 

NM: Eles não são atores de cinema (risos). Os atores de cinema, na Itália, são uma farsa, por causa da dublagem. Claro, há aqueles da comédia italiana, Gassman, Sordi, mas é uma outra geração. Os atores dos meus filmes vêm de dois horizontes: os não profissionais, pessoas da minha família (em Sogni d’oro, meu pai faz um produtor, emBianca, o psiquiatra, em A missa acabou, o juiz do tribunal), amigos, críticos de cinema (Giovanni Buttafava, Tatti Sanguinetti), e os profissionais, que são pessoas do teatro. Em geral, prefiro discutir com eles uma meia-hora, tomar uma cerveja, mais do que  passar três horas vendo-os no teatro. O que eu procuro num ator são as qualidades humanas. Na filmagem, amo a mistura entre atores profissionais e não profissionais. Do ator profissional eu tento eliminar seus defeitos mais profissionais, eu o trato como um amigo. Contrariamente, com um ator que não é da profissão, eu tento criar uma relação muito profissional, eu lhe insuflo o profissionalismo. Eu escolho eu mesmo todos os atores dos meus filmes, incluindo os figurantes e aqueles que têm apenas uma única fala a dizer. Eu tenho um enorme dossiê sobre eles, com muitas fotos.

CC: Enquanto ator e cineasta, como você procede com os outros atores?

NM: Quando há um problema na filmagem entre o ator e seu personagem, eu prefiro ir do personagem em direção ao ator, mais do que obrigar o ator a entrar em seu personagem. O ideal é terminar a escrita do roteiro no momento em que escolho os atores. Eu começo a preparação, defino as locações e escolho os atores no meu escritório. A partir dos atores, eu sei que posso fazê-los dizer certos diálogos e não outros. Isto dito, durante a filmagem, é preciso saber detectar a tempo aquilo que o ator pode ou não pode dizer. Todos os diálogos são escritos previamente, nada é improvisado. Me acontece de mudá-los quando percebo que eles não se adaptam ao ator. Uma frase de um diálogo, tão bonita quanto for, se mal dita, se torna ridícula. Na decupagem das sequências há poucos planos, mas faço muitas repetições para o trabalho dos atores, o som. Nos meus filmes, durante os takes, o técnico de som, se acreditar que existe um problema em particular, pode fazer parar tudo. Ele tem esse direito, enquanto que normalmente, na Itália, ele não vale nada. Sou muito perfeccionista no que concerne ao trabalho dos atores. Em geral, filmo planos que duram muito e que não admitem pontos de corte. É preciso, então, que eles estejam bem do início ao fim. Daí as múltiplas repetições.

O som vale ouro

CC: Seus filmes são dublados ou você usa o som direto?

NM: Utilizo som direto, 100%. Na França, é algo quase normal, na Itália é totalmente incongruente. Os diretores não estão habituados, os atores muito menos, os técnicos de som, os diretores de fotografia – pois eles devem posicionar os microfones de maneira que não vejamos sua sombra na imagem -, a produção (a organização do plano de filmagem), ninguém. Eu escolho os pequenos papeis em função da captação do som direto. Não mitifico a espontaneidade, o natural, mas sei que é quase impossível recuperar na dublagem o sentimento que tinha o ator em um dado momento durante a filmagem, suas emoções, as nuances na voz, seus altos e baixos. Na Itália, a dublagem vai de mal a pior: os filmes são dublados como os folhetins americanos: há vozes, alguns passos e mais nada. Tudo é uniformizado.

CC: O fato de você ser ator e diretor lhe coloca problemas particulares na filmagem?

NM: No início, vou para trás da câmera, decido a composição do plano colocando alguém no meu lugar. É muito rápido. Em seguida, começo a atuar e faço todas as repetições com os atores. Fico mais diante da câmera do que atrás dela. Filmo muitos takes, para ter o máximo de material na montagem. Nunca sei na filmagem se a melhor é a primeira, a quinta ou a nona tomada, e consequentemente mando revelar praticamente todas as tomadas no laboratório e escolho depois. Não utilizo monitor de vídeo durante a filmagem [já em Palombella Rossa, no entanto, sabe-se que Moretti admitiu o uso de vídeo-assist. N.T.]. Detesto equipamento eletrônico. É um paradoxo, pois sei que a maioria dos diretores-atores utilizam o vídeo durante a filmagem. Ao meu ver, no lugar de me fazer ganhar tempo, ele me faz perdê-lo. Pode-se ficar obcecado, em busca de um resultado que gostaríamos que fosse perfeito, e em seguida o operador de câmera dá sua opinião, o diretor de fotografia a sua, o maquiador, o assistente também... Alguém tão obcecado como eu jamais estaria satisfeito. Arriscaria jamais terminar o filme. Eu prefiro, então, ter a surpresa dois dias depois, ao assistir ao material filmado. 

A comédia italiana

CC: Você se define como um realizador de filmes cômicos?

NM: (risos, silêncio) É um pouco ridículo querer censurar as gargalhadas, impor o riso aqui mas não ali, porém tenho a impressão, enquanto espectador de meus filmes, de que alguns espectadores riem um pouco demais. (risos) Há um lado cômico, mas também um lado doloroso, um pouco dramático e, eu espero, não muito angustiante. Um bom filme não nos angustia jamais.

Você me falava agora há pouco da profissão exercida pelos meus personagens. Em Bianca, sou um professor. Em Sogni d’oro, há uma cena em que sou professor, e emA missa acabou, eu ensino catequismo e dou cursos pré-nupciais. Só hoje me dou conta de que, nos três casos, eu fico enxotando os outros. Em A missa acabou, eu enxoto aqueles que riem demais, aquele que zomba do casal com a mulher grávida. É um pouco como o mau espectador dos meus filmes e como se eu mesmo o enxotasse da sala de cinema. Isto dito, esse quiproquó sobre o fato de que eu faço filmes cômicos me dá um enorme prazer. Na Itália, meus filmes não tiveram um sucesso enorme, mas de qualquer forma foi razoável e, graças a isso, eu pude fazer outros. O espectador está habituado. Se ele ri cinco vezes em um filme, ele vai querer rir 50 vezes no próximo. O espectador não está acostumado a um filme que mistura o cômico e o dramático e, no que me concerne, eu gosto não de sucedê-los um ao outro, mas de juntá-los em um mesmo momento, fazer de forma que a cena seja a um só tempo engraçada e dramática. Isso obriga a um cômico diferente, pois é preciso não acrescentar, mas retirar. É um cômico um pouco avarento, que me convém porque não me interessa pegar o espectador pela mão, como no maternal, e lhe dizer onde deve-se rir.

CC: Como você se situa com relação à tradição ou à herança da comédia italiana?

NM: Quando comecei, nós estávamos nos últimos filmes da comédia italiana. Ela rendeu bons filmes, ainda que tenhamos sido um pouco generosos demais com ela. Hoje, são filmes para a Páscoa e o Natal, filmes de produtores e atores, como Adriano Celentano, que são ruins. Quando comecei, eu queria fazer um cômico diferente da comédia italiana, enquanto que os outros falavam a meu respeito de uma renovação do gênero. Eu tinha mais a impressão de fazer um contrapé. Todos os cineastas da comédia italiana falaram de meios que estavam longe deles: um operário, um pequeno burguês etc. Eles zombaram de personagens de meios que lhe eram estrangeiros. Pessoalmente, eu zombo de personagens e meios que me são muito próximos, que eu conheço muito bem. É um pouco a autobiografia como crueldade para consigo mesmo. Não temos o direito de sermos perversos com os outros se não o somos conosco mesmos. A auto-ironia é obrigatória, sob pena de tornar-se ridículo. 

Entrevista realizada por Charles Tesson. Traduzido do francês por Calac Nogueira.

 Agosto de 2012
(Texto extraído de: 
http://www.contracampo.com.br/99/artentrevistamoretti.htm)

Cine FAP: "No Rastro da Bruxa Vermelha", de Edward Ludwig


O amargo e por vezes cruel Capitão Ralls navega pelos mares do sul atormentado pelo passado. Seu maior inimigo é o magnata dos mares Mayrant Sidneye, com quem disputa o amor da bela Angelique Desaix. Ralls também deseja o tesouro guardado no navio A Bruxa Vermelha.

O cineclube semanal do curso de cinema e vídeo da Faculdade de Artes do Paraná exibe em março quatro filmes de pirata da hollywood clássica: O Cisne Negro, de Henry King (07/03); No Rastro da Bruxa Vermelha, de Edward Ludwig (14/03); Capitão Horatio Hornblower R.N., de Raoul Walsh (21/03); e Ana das Índias, de Jacques Tourneur (28/03). Após a exibição de cada filme há uma discussão sobre, mediada pelos integrantes do cineclube.

Sessão:
dia 14/03 (segunda-feira)
às 19h
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

Realizado por Cine FAP
Apoiado por Cazé - Centro Acadêmico Zé do Caixão
e pelo Coletivo Atalante

quinta-feira, 10 de março de 2016

Cineclube da Cinemateca: "O quarto do filho" de Nanni Moretti


O Quarto do Filho conta a história da dor que atinge uma família de classe média italiana, constituida por os quatro membros inicialmente. O pai, Giovanni, é um psicanalista que no emprego escuta e aconselha os seus clientes sobre os medos e fobias que estes têm, e que em casa, no seu lar, encontra na família a harmonia e a normalidade que o oposto da sua profissão exige. A esposa, Paola, é uma mulher segura e confiante que trabalha como editora de livros, e que ainda divide o tempo entre dona de casa e mãe dos dois filhos do casal: o recatado Andrea e a atleta Irene. Um dia, durante um fim-de-semana, Giovanni combina com Andrea irem fazer jogging durante o dia de modo a passarem algum tempo juntos, mas um inesperado telefonema de um paciente do psicanalista altera o plano dos dois. Giovanni mete a profissão à frente da família por uma questão de horas, e desloca-se então até à casa do cliente de modo a socorrer o problema deste.

Serviço:
12 de março (sábado)
às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 8 de março de 2016

UM CINEASTA DA ETERNIDADE


por Jacques Lourcelles

Henry King é um dos cinco centenários do cinema americano, ao lado de Dwan, DeMille[1], Ford, Walsh - formando os cinco um condensado do que o cinema americano, e talvez todo o cinema, nos deu de melhor, nesta época um tanto morosa. Centenários em obras, se não em idade, suas longevidades, pontuadas de filmes apaixonantes em todas as épocas, contêm já uma indicação da sua generosidade criadora, e um antídoto à morosidade.

Destes cinco gentlemen non maudits[a], que não se preocuparam com os signos exteriores da glória cinematográfica[2], King é o mais reservado, o mais apagado. A sua carreira exprime à perfeição o apagamento típico do realizador hollywoodiano que se está nas tintas para inscrever o seu “nome acima do título”, segundo a reivindicação bastante discutível de Capra. Mas se pensarmos um instante na repercussão e importância histórica de tantos filmes de King, nos fabulosos orçamentos de que muitos se beneficiaram, na liberdade quase constante - e pouco habitual - de que King gozou durante os quarenta anos da sua carreira no meio de uma das maiores entre as grandes companhias americanas, e que lhe teria permitido, mais que tudo, destacar-se, este apagamento é uma surpresa. De qualquer modo, ele manifesta no autor uma vontade de recuo quase agarrada ao corpo, assim como uma higiene da criação mais que recomendável hoje quando o realizador tem a tendência de se tornar a estrela mais obstrutiva do circo cinematográfico. Esta reserva talvez o tenha prejudicado, como impediu também de atrair para os seus filmes, e principalmente para a sua continuidade, a atenção que mereciam. Mas como criticar o que nele, mais do que um traço de caráter, é como uma marca da alma, uma espécie de luz que cai sobre a obra e lhe dá, já, uma das suas dimensões?

Impossível, com efeito, abarcar num só golpe de vista, a extensão da obra de King, tanto este parece ter querido apagar-se também, como criador, atrás da multiplicidade dos objetos que estimularam a sua curiosidade. Um levantamento topológico sumário desta obra mostrará rapidamente, quer no plano histórico e geográfico, quer no social, a extraordinária variedade[3], surpreendente mesmo num país onde, no entanto, os cineastas nos habituaram a ela. Mas quando numerosos artistas esgotam uma parte da sua energia a fornecer ao espectador (e à crítica) signos de reconhecimento, tranqüilizantes palavras de senha, King não quis, por seu lado, senão compor uma espécie de Atlas do seu país e de certas regiões do estrangeiro que também seja um livro de história por cujas páginas circule, da mais remota época bíblica até aos nossos dias, todo um povo de homens e mulheres de tradições, costumes, atividades e sonhos infinitamente diversos.

Inaparentes à primeira vista, ou seja, não superficiais, as linhas de força que percorrem nas suas profundezas este universo não são menos claras e interessantes a relevar. No plano humano, King interessou-se profundamente por dois tipos de seres, os humildes, o pequeno povo, os anônimos que desde a origem dos tempos tecem a trama da história dos povos, e, a seu lado, por vezes no meio deles, os gênios, os inventores, os sábios, os exploradores, os santos, os grandes solitários, todos os que, de uma maneira secreta ou espetacular, abalaram, nas suas épocas, um aspecto da face das coisas. No meio da sua variedade, um movimento perpétuo anima esta obra que oscila de uma maneira significativa entre estes dois pólos: gênio e humildade. E ninguém soube, sem dúvida, mostrar tão bem como King a humildade própria do gênio e essa espécie de gênio também que é preciso para se ser humilde. É que, longe de os opor, King procurou em todo o lado o que pudesse unir estes dois rostos permanentes da humanidade. Esse ponto comum, ele parece tê-lo encontrado, muitas vezes, numa espécie de teimosa boa-vontade, saída das próprias entranhas das suas personagens e que geralmente lhes torna a vida dura. Onde essa boa-vontade acabará por levá-los: é essa a história deles, e a história comum dos filmes de King, como veremos mais longe. O que há de comum também entre estas duas categorias de seres, é aparecerem, graças a essa boa vontade visceral, justamente como “indivíduos representativos”, designação que exprime a sua dupla forma de existência. Indivíduos, ou seja, independentes, não tendo de prestar contas senão a si próprios[4] - logo, representativos de si mesmos. Mas representativos também da sua época e do lugar em que vivem: e se King soube tão bem pintar as características de certo estado da América, de tal pequena comunidade rural ou urbana, é que para ele a força de caráter das suas personagens é o melhor cimento dessa comunidade, ao mesmo tempo que ela é, na sua obra, a melhor introdução possível ao conhecimento dessa comunidade. Na maior parte das vezes na sua obra, por uma osmose ao mesmo tempo poética e realista (de que Na Velha Chicago [In Old Chicago, 1937] fornece o melhor exemplo), os conflitos íntimos das personagens refletem e dizem diretamente respeito à vida da sociedade e do meio em que nasceram. Esta obra ignora geralmente a distinção entre vida privada e vida pública e não propõe descrição social que não seja moral na sua essência: com efeito, a perenidade de todo grupo humano não pode ter para King outra justificação e origem que não seja moral, a partir do que se vai organizar a expansão documental de sua narrativa.

Também os gênios (inventores, exploradores etc.) conhecem esta dupla representatividade. Representativos de si mesmos pela originalidade da sua obra e da sua visão, eles não o são menos do seu tempo e do seu meio, porque mesmo os mais solitários deles respondem, no seu destino, a um apelo inexprimível do público e do mundo que o rodeia. Essa ligação ao mundo é, no seu caso, ainda mais forte e potente que para o comum dos mortais, porque as personagens que mais interessam a King são aquelas a quem é estranho qualquer egoísmo. Entre as conquistas que a ambição suscita, ele interessa-se, com efeito, quase exclusivamente às que atuam sobre, e transformam profundamente, a realidade social, tal como as energias individuais o apaixonam principalmente na medida em que elas são capazes de desencadear essas transformações de alcance universal (o barco a vapor sucedendo o barco à vela em Na Antiga Nova York [Little Old New York, 1940], desenvolvimento do sistema de seguros pelo mundo em Lloyd’s de Londres [Lloyd’s of London, 1936], novo estilo de música popular conquistando o coração das multidões em Epopéia do Jazz [Alexander’s Ragtime Band, 1938]). Por vezes gosta de imaginar que é uma associação particular entre os gênios e os humildes que permitiu uma dessas transformações (cf. a idéia soberba, mesmo que inteiramente romanesca, de ter tornado possível em Na Antiga Nova York a concretização dos sonhos do engenheiro Fulton graças às economias e à devoção apaixonada da dona de uma taberna).

King é também o pintor das vocações sublimes, dos apelos misteriosos vindos das profundezas da terra ou do céu. Como tal, ele dá muitas vezes aos seus filmes o ar de uma viagem de exploração. Exploração rumo a terras distantes, talvez inacessíveis, do mundo visível e do mundo invisível que para ele fazem um só; exploração também aos confins do ser, ao limite das possibilidades humanas e cuja principal razão de ser é justamente fazer passar uma interrogação sobre esses limites. Para lá das peripécias espetaculares da narrativa de aviação que, aliás, King não mostra muito, Almas em Chamas (Twelve O’Clock High, 1949) liberta através de cada uma das suas seqüências, uma reflexão sobre os limites da resistência humana[5], esta resistência fornecendo a prova concreta da força suprema que pode exercer a vontade moral ou espiritual de um indivíduo sobre os meios físicos que a natureza pôs à sua disposição. Mas esses limites existem e a sua ultrapassagem pode provocar a pulverização da personalidade, uma destruição do equilíbrio fundamental do ser, como o indica o aviso contido no anticlímax final do filme (a crise nervosa que fulmina Gregory Peck após o seu triunfo). É também o propósito do filme sobre Stanley arriscando apagar-se na sua busca por Livingstone, ou o do filme sobre Bernadette Soubirous mudando de identidade à custa de um esforço espiritual que põe a sua existência em perigo.

Uma outra ultrapassagem dos limites humanos existe nos filmes de King através de uma experiência vivida, desta vez de preferência pelos anônimos desta obra. Esta experiência é a do amor partilhado. É verdade que King não inventou o gênero “love story”, tão velho como o próprio cinema, mas, com o talento e intensidade que pôs a ilustrá-lo, ser-se-ia tentado a dizer que é como se assim fosse. O amor vitorioso sobre os anos de ausência (Sétimo Céu [Seventh Heaven, 1937]), a pobreza (O Presente dos Magos [The Gift of the Magi], episódio dePáginas da Vida [O. Henry’s Full House, 1952]), a diferença de condições sociais ou de raças (Ramona, a Aventura de Ser Mulher [Ramona, 1936], Suplício de uma Saudade [Love Is a Many-Splendored Thing, 1955]) é um dos seus temas privilegiados. Ele viu, em particular, no amor do par, aquilo a que Chardonne pôde chamar “o sobrenatural mais humilde”, uma superação de si misteriosa e cotidiana na comunhão com o outro. Por vezes esse amor, para dar os seus frutos, tem de encarar a separação definitiva do objeto amado, como no caso de Stella Dallas obrigada a sacrificar à felicidade da filha, a felicidade de viver com ela, e experimentando, por isso, um sentimento de frustração e desespero quase intolerável. Aqui, neste movimento de balança, que transforma a plenitude em insatisfação no limite do suportável, estamos no coração do universo de King. Com efeito, o seu rigor moral e o classicismo do seu estilo não escondem a sua verdadeira natureza.

Antes de tudo, é um moderno. Como historiador de costumes, ele soube ver que o destino dos estados e das sociedades não pode ser apreendido senão através da descrição das massas anônimas, mas de forma alguma indiferenciadas, que os compõem. Esta intuição da importância do homem da rua permitiu-lhe fazer reviver, com a ajuda de traços familiares, justos e profundos, todos os tipos de comunidades. Como pintor de homens ilustres e de certos destinos obscuros, mas excepcionais, ele adora retratar as vidas densas e cheias, que assim se transformaram pela ação, a criatividade, o sentimento religioso ou o amor. Mas ele mostrou que essa plenitude, alcançada de formas diversas, desembocava infalivelmente num vazio do ser que é, sem dúvida, o apanágio do homem - e a sua maldição - uma vez que se ultrapassem os limites usuais da sua experiência cotidiana. Assim como o ar rarefeito dos cumes impõe um meio experimental e condições de vida no limite do tolerável. Deste ponto de vista o único dos jovens cineastas atuais que segue os seus passos é Herzog no seu filme sobre Aguirre.

Artista completo, King terá sido o poeta dos que encontram - por vezes depois de bastantes dificuldades - o seu lugar neste mundo: almas simples cujas atividades e sonhos moldam pouco a pouco o meio ambiente (camponês na terra em David, o Caçula [Tol’able David, 1921], artista preferindo sua pequena cidade sem prestígio a uma célebre em Cavalgada de Paixões [Wait Till the Sun Shines, Nellie, 1952]; pastor pregando nas montanhas de Um Homem e sua Alma [I’d Climb the Highest Mountain, 1951]). Mas terá sido muito mais o poeta daqueles a quem o mundo nada tem para oferecer; poeta dessa parte do homem que não é deste mundo. Literalmente, há um aspecto da sua obra que se poderia situar entre estas duas frases de Bataille (“O homem é o que lhe falta”) e de Marcel Raymond (“Há uma falta de ser que nos é consubstancial”)[6]. Pintor da grandeza, da concentração, da sede de absoluto, mas também dos abismos que estas rodeiam, fascinado pelos construtores, mas sabendo sobre que tapete de poeira desliza a sucessão dos séculos, King terá sido ao longo da sua longa carreira o contrário de um cineasta triunfalista.

Fato ainda mais notável: essa abordagem do vazio, do abismo do ser para que conduzem certas experiências do homem, King recusou-se sempre a mostrá-la num estilo grandiloqüente, tonitruante ou barroco. Para ele, a calma do estilo clássico, cuja perfeição no cinema existe desde meados dos anos trinta, basta para isso. Pode-se ver na sua obra, levada a um ponto de espantosa expressividade, esse sentimento de ubiqüidade que provém de diversos recursos, sabiamente utilizados, da decupagem clássica. Em cada espécie de plano, King não esconde a sua preferência pelos que permitem instituir uma ligeira distância com as personagens, desconfiando dos closes como impudicos e contrários à emoção geral do filme, usando com um virtuosismo discreto os planos longos, mas que não o parecem ser. A sua direção de atores, precisa e penetrante na sua sobriedade, contribuiu muito para afastar do mosaico de seus filmes o cabotinismo, as suspeitas efusões e essa exaltação do herói em detrimento do que o rodeia, coisas que o horrorizam. Na dramaturgia como na montagem, ele ignora essas astúcias de ligação que dissimulam elementos da intriga, a qual, pelo contrário, deve estar, a cada ponto do seu desenvolvimento, na sua totalidade, a serviço do espectador. Este estilo franco e nu, nascido na época do mudo, acomoda-se igualmente bem aos filmes de pequeno orçamento como às gigantescas super-produções. Ele não foi surpreendido por nenhum dos avanços técnicos do cinema (som, cor, CinemaScope), absorvendo-os a todos sem nada perder da sua originalidade e da sua dignidade. É um estilo que, se pode levar tempo para se fazer reconhecer, parece envelhecer muito pouco. Comecei lamentando que o apagamento do autor possa ter prejudicado a sua obra. Por outro lado, King terá, deste modo, saltado a etapa da celebridade passageira, da moda e do inevitável purgatório. O seu nome, poupado aos estilhaços da glória, foi-no também às idéias falsas, aos preconceitos e às vulgaridades que obscurecem tantas obras mais conhecidas. Nunca tendo aparecido como um cineasta da atualidade, ele tornar-se-á facilmente o que ele nunca deixou de ser: um cineasta da eternidade, incomparável pela variedade dos seus gostos e pela sua honestidade.

Notas:

[1] Sejamos precisos: no que se refere a DeMille, para chegar à centena seria preciso acrescentar alguns dos filmes que supervisou ou produziu.

[a] Nota do tradutor: Jacques Lourcelles faz, como bom cinéfilo, um trocadilho com o título de um velho filme francês, Les cinq gentlemen maudits, de Julien Duvivier (1931).

[2] Objetar-nos-ão: e DeMille? DeMille construiu uma lenda a propósito de seus filmes e do seu gigantismo e não a propósito de si mesmo, permanecendo sempre bastante discreto, como muitos cineastas americanos, sobre as suas ambições e reais intenções.

[3] Para se restringir ao plano geográfico, a obra de King descreve com abundância os estados do Kansas, Georgia, Maine, New York, Missouri, Nova-Inglaterra, Carolina, Maryland etc. Fora dos Estados Unidos, os países seguintes tiveram lugar nas intrigas dos filmes de King: França, Espanha, Itália, Inglaterra, Rússia, Áustria, Israel, Índias, Hong-Kong, África do Sul, Jamaica, Canadá, México, Panamá etc. Quanto às épocas, elas são mais numerosas ainda, e os trabalhos ilustrados por esta obra são também inumeráveis. Apenas a obra de Michael Curtiz, outro grande desconhecido, pode rivalizar com a de King no que diz respeito à variedade. Mas enquanto Curtiz tem tendência a se perder nela, de uma forma aliás apaixonante, King serve-se para traçar algumas linhas de força que reencontraremos ao longo de toda a sua imensa carreira.

[4] O que King detestou em Fitzgerald (herói do seu penúltimo filme, O Ídolo de Cristal [Beloved Infidel, 1959]), é justamente o homem não livre de si mesmo e a sua lamentosa busca da aprovação dos outros, como se o escritor procurasse no olhar dos outros a imagem da sua própria dignidade. Enquanto que para King a dignidade de qualquer homem apenas depende de si próprio, e não tem de ser procurada senão em si mesmo.

[5] Esse tema da resistência humana é já tratado nos filmes mudos de King, e em particular no célebre Beijo Ardente (The Winning of Barbara Worth, 1926), o filme em que King revelou Gary Cooper.

[6] Esta frase figura na conclusão de uma narrativa autobiográfica (Memorial, José Corti, 1971) que relata uma experiência amorosa próxima de alguns filmes de King. Talvez não seja inútil citar o contexto imediato, espantosamente próximo de King, em particular dos seus melodramas: “A melancolia é o gosto do infinito, assemelha-se ao Eros platônico, testemunha a favor da condição humana (...) Esses buracos de ar, essas quedas no vazio não se devem apenas à instabilidade dos nervos. Há uma falta de ser que nos é consubstancial. A felicidade terrestre, por intensa que seja, é composta por uma parte impossível de apreciar do sonho de felicidade, da aspiração sem termo para o absoluto de felicidade, é a sua perfeição avassaladora que aqui não pode ser senão entrevista”.

(Écran nº 70, 15 de junho de 1978, pp. 31-38. Extraído do catálogo Henry King: A Câmara à Altura dos Sentimentos, Manuel Cintra Ferreira [org.], Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2007. Traduzido por Manuel Cintra Ferreira; transcrito por João Palhares; revisado por Bruno Andrade e André Barcellos)

Texto extraído de http://focorevistadecinema.com.br/jornalking1.htm