sábado, 24 de agosto de 2024

Um cineasta do desencanto: Michael Mann

 por Fernando Verissimo

1964. O jovem Cassius Clay treina para disputar o cinturão dos peso-pesados com Sonny Liston, a luta de sua vida. À sua volta, a cultura negra americana passa por um momento de intensa efervescência, seja nos discursos de Malcolm X ou no soul contagiante de Sam Cooke. O estímulo externo vem acompanhado da memória de eventos simbólicos: seu pai pinta numa igreja a imagem de um Jesus loiro de olhos azuis; na volta para casa, na parte de trás do ônibus reservada às "pessoas de cor" o pequeno Clay observa assustado à fotografia que estampa na primeira página do jornal o rosto em pedaços de uma vítima de linchamento. O homem observa o garoto por cima da leitura e fecha o jornal num gesto agressivo; Clay fecha os olhos, entristecido com a lembrança, e começa a socar o saco de pancadas com mais violência.

Os primeiros dez minutos de Ali (2001), filme que comprova a grande fase por que passa o cinema de Michael Mann, culminam no combate que elevaria Cassius Clay à categoria de campeão. A vitória no ringue é carregada de significado e Mann filma a batalha – magistralmente, diga-se de passagem – como um legítimo ato político. Ali é um trabalho inestimável em sua tentativa de construção imaginária de um herói positivo, firmemente comprometido com a idéia de associar (ou sacrificar) sua trajetória individual a um idealismo de base – afinal, não é à toa que evoca-se a imagem de Jesus na gênese do mito.

Muhammad Ali, assim como todos os outros heróis de Mann, é um homem imerso em profunda melancolia. Herdeiro de Sam Peckinpah, outro grande cineasta do desencanto, Mann filma suas personagens entregues a um processo de envelhecimento, de desgaste e confrontamento com seus ideais particulares. Em O Informante (1999), seu filme anterior, Al Pacino e Russel Crowe fazem os papéis, respectivamente, de um jornalista (Lowell Bergman) e um cidadão comum (Jeffrey Wygand) que, aliados para trazer à tona uma importante revelação sobre a indústria do tabaco, têm que encarar um duro golpe: a verdade, diz Lowell a Wygand, não importa; ela é construída de acordo com tais ou tais interesses para servir a tais ou tais propósitos. A constatação causa um profundo abalo em Wygand, que havia sacrificado sua carreira científica e sua família em função desta revelação; por outro lado, Lowell – um ex-aluno de Marcuse – é obrigado a rever suas próprias certezas a respeito de sua profissão sentindo na pele o fracasso de um projeto de geração, dobrado a interesses corporativos.

Este aspecto de desencanto se apresenta em toda a obra de Mann. Em Profissão Ladrão (1981), um de seus primeiros filmes, James Caan é um dedicado especialista em roubo de jóias que resolve se aposentar e constituir uma família. Para o último grande golpe, ele se alinha a uma quadrilha que termina por aprisioná-lo numa estrutura de poder que põe em risco seu código de conduta. Profissão Ladrão é uma provocante aplicação de uma visão marxista à proposta de revisão de gênero: tudo gira em torno do trabalho, que constitui o objeto de estudo privilegiado da narrativa; a câmera se deixa hipnotizar por cada gesto que constitui o último grande assalto, uma longa seqüência em que vemos apenas a aplicação prática da elaborada técnica dos ladrões. A trama, por sua vez, se desenvolve rumo a uma vingança kamikaze de Caan contra os agentes da exploração de seu trabalho.

Mann insiste, correndo o sério risco de parecer anacrônico, em revisitar pontos estratégicos da agenda da esquerda liberal (trabalho, imprensa, minorias) sob a ótica do indivíduo e das implicações morais do gesto político, o que indica a presença de um idealismo de base em seu discurso. Como suas personagens, Mann trilha um caminho muito particular com seus filmes: nascido no mesmo ano que Martin Scorsese, Mann entraria para o cinema seguindo os passos de uma geração posterior, descolada do traço de cinefilia-enquanto-religião do brat pack; estudou na London Film School tendo como companheiros de classe figuras como Adrian Lyne e os irmãos Ridley e Tony Scott, mas trilhou o caminho do documentário engajado e das séries de televisão, ao invés da publicidade, como preparação para seu trabalho como cineasta. Sua contribuição para a TV americana é imensa, tendo provocado com o sucesso colossal de Miami Vice uma revolução no formato das séries policiais (um terreno ao qual, ademais, retorna volta e meia), o que contribuiu, associado à sua abordagem essencialmente formalista do cinema, para sua desqualificação crítica como autor.

Em meados da década de noventa, Mann passa a se dedicar exclusivamente ao cinema, entusiasmado pela boa recepção de sua obra-prima Fogo contra Fogo (1995), um filme que poderíamos qualificar como a mais ambiciosa (e bem-sucedida) tentativa de revisão do cinema de gênero junto com Os Imperdoáveis de Clint Eastwood. Tudo neste filme remete à estrutura épica: a ação se desenrola num espaço mítico, uma Los Angeles de contornos abstratos transfigurada no palco de um confronto de proporções bigger-than-life. A história se articula em torno do encontro de dois ícones do policial moderno, Al Pacino e Robert DeNiro, que se reúnem para discutir, sentados à mesa de um café, seus papéis na trama. A seqüência alterna em campo/contracampo a verborragia histérica do overacting de Pacino à composição metódica da canastrice de DeNiro, num jogo de reconhecimento e identificação mútuos entre perseguidor e fugitivo, figuras complementares e irreconciliáveis. Cada enquadramento (Mann é um dos maiores estetas do cinemascope em atividade) acentua o descompasso da personagem com o ambiente que lhe cerca: Pacino, em determinado momento, expressa seu mal-estar em viver na casa decorada num estilo que chama de "post-modern bullshit"; DeNiro e sua gangue, por sua vez, subvertem o espaço público, fazendo das ruas um espaço de guerrilha urbana numa das melhores seqüências de ação do cinema americano em todos os tempos.

Fogo contra Fogo foi, sem dúvida alguma, o filme que provocou a maior repercussão crítica na obra de Michael Mann permitindo, por um lado, uma revisão necessária de seus filmes e, por outro, inaugurando uma fase notável de renovação de seu cinema. Há que estar atento a este processo, pois dele ergue-se uma voz das mais interessantes trabalhando hoje no cinema americano.

Texto publicado originalmente em http://www.contracampo.com.br/50/michaelmann.htm.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Cineclube do Atalante: Profissão: Ladrão

O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Michael Mann. Entrada franca e seguido de conversa, sempre.


PROFISSÃO: LADRÃO
Dirigido por Michael Mann

(Thief, EUA, 1981, 122 min., policial, 14 anos.)
Com James Caan, James Belushi, Tuesday Weld.

Decidido a mudar de vida, um ladrão especialista em roubar joias resolve participar de um último crime, aceitando uma proposta de uma quadrilha. Seus planos vão por água abaixo quando ele se vê envolvido em uma trama que coloca sua vida em perigo.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“Profissão: Ladrão” (1981), de Michael Mann
Sábado, 24/08
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Apoio: @fcccuritiba

PROJETO REALIZADO POR MEIO DA LEI MUNICIPAL COMPLEMENTAR 57/2005 DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, SECRETARIA DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Cineclube do Atalante: A Telenovela Errante

  O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento. Sessão com entrada franca e seguida de conversa, sempre.


A TELENOVELA ERRANTE

 

(Chile, 2017, 80 min., comédia/drama, 14 anos.)

 

Direção: Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento.

 

O filme gira em torno do conceito de novela. Sua estrutura parte do pressuposto de que a realidade chilena não existe e é, na verdade, um conjunto de telenovelas que funcionam como um filtro revelador.

 

Serviço:

 

CINECLUBE DO ATALANTE

“A Telenovela Errante” (2017), de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento

Sábado, 10/08

Às 16h

Na Cinemateca de Curitiba

(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)

(41) 3321-3552

ENTRADA FRANCA

 

Realização: Coletivo Atalante

Apoio: @fcccuritiba

 

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL



quinta-feira, 25 de julho de 2024

Cineclube do Atalante: O Espírito da Colmeia

 O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Víctor Erice. Sessão com entrada franca e seguida de conversa, sempre.

O ESPÍRITO DA COLMEIA

 

(Espanha, 1973, 99 min., drama, 14 anos.)

 

Direção: Víctor Erice.

 

Na Espanha rural, no ano de 1940, uma pequena garota é profundamente impactada pelo filme Frankenstein, adentrando seu próprio mundo de fantasias. 

 

Serviço:

 

CINECLUBE DO ATALANTE

“O Espírito da Colmeia” (1973), de Víctor Erice

Sábado, 27/07

Às 16h

Na Cinemateca de Curitiba

(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)

(41) 3321-3552

ENTRADA FRANCA

 

Realização: Coletivo Atalante

Apoio: @fcccuritiba

 

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL


sábado, 13 de julho de 2024

Nouvelle Vague (1990)

por Geraldo Veloso

Ao terminar o seu trabalho em Finnegans wake, Joyce declarou: “Levei quase duas décadas para realizar este texto. Agora espero que os leitores levem 300 anos para decifrá-lo”.

Aos 60 anos, Jean-Luc Godard (talvez o melhor tradutor da estratégia criativa de James Joyce no cinema) faz um retorno às origens de sua geração e nos dá Nouvelle Vague.

É o tempo de ouvir os quartetos da maturidade de Beethoven, Arnold Schönberg (visitado por alguns trabalhos de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet), Bela Bartok, Arthur Honegger e Paul Hindemith. E Hindemith vira trilha sonora de Nouvelle Vague. Na calma de sua Suíça de origem, onde busca uma continuidade de sua trajetória de reflexão (etnográfica?) sobre a cultura de seu tempo.

Jacques Audiberti empresta a Godard o pretexto (e o texto) para o mergulho em uma obra de referência. Escritor pouco conhecido, ele foi contemporâneo da gênese da Nouvelle Vague revisitada por Godard, chegou a colaborar nos Cahiers du cinéma como crítico e resenhista (a convite de François Truffaut) e chegou também a conviver com Cocteau e Valéry. O primeiro levou a geração dos Cahiers para o festival de cinema maldito de Biarritz. O outro frequentou a casa dos pais e o avô de Jean-Luc, na Suíça.

Vamos interpretar Nouvelle Vague? Isso é papel dos acadêmicos, que poderão criar um corpus investigativo que chegará à conclusão habitual diante de qualquer obra de Godard (ou Hans Lucas): tudo é citação, coligida pela aleatoriedade poética de um investigador incansável do seu tempo. Atento, provocador, curioso, sofisticado, moleque (como Joyce), socrático etc.

Mas Elena Torlato Favrini (personagem central do filme de Godard, representada pela linda Domiziana Giordano) “não existe”. Explico melhor: seu pai, o conde Torlato Favrini, de A condessa descalça, de Joseph L. Mankiewicz (uma obra--prima), representado pelo ator Rossano Brazzi, era estéril/mutilado de guerra e não criou descendência: flagrando sua amada Maria Vargas (Ava Gardner) nos braços do chofer do castelo, carente de cuidados sexuais e afetivos, ele os matou. Mas a condessa conta para um interlocutor, no filme de Godard, que seu pai (o conde) era amigo do embaixador americano em Roma, Joseph Mankiewicz (!). E ouve dele a seguinte resposta: “M. Mankiewicz não fazia cinema como os outros. Só fazia o seu trabalho”.

Dona de um império econômico/industrial na nova Europa (dos anos 1990), Elena está cercada de serviçais (a fábula da luta de classes; uma governanta responde para a subordinada, quando perguntada, “por que os ricos são diferentes?”: “Porque eles têm dinheiro”), negócios (compra de 3% do capital da Warner), advogados e executivos, automóveis (Maserati, Mercedes, BMW e um antigo e clássico Citroën – paixão constante de Godard) e tramas inconfessáveis (uma transação com um quadro de Goya, La maja desnuda e seus seios separados).

Um andarilho (Alain Delon) é achado quase morto à beira de uma estrada e um balé de mãos o ressuscita. Mais tarde, é deixado morrer afogado pela condessa Torlato Favrini – “Je fais pitié”, repete ele. Depois “volta”, na forma de um irmão “igual”, mas completamente oposto: é um executivo dominador, dinâmico e agressivo, como bom yuppie. E se torna amante da condessa. Depois ela também se afoga (um corte rápido revela que ele não a deixa morrer). O cinema abole o raccord dramatúrgico (a continuidade lógica da narração). A Nouvelle Vague tinha abolido o raccord de movimento e transição (e instaurado o faux raccord).

E passeiam, diante de uma objetiva administrada por William Lubtchansky (colaborador da Nouvelle Vague “madura”: Rivette, Straub, Bonitzer, Varda, Garrel), por herdades verdes, águas e horizontes (como em Pierrot le fou, 1965? – “Ah, quelles térribles cinq heures du soir”).

Imagens conectadas apenas pela sensibilidade poética.

E ouvimos Dante, Erle Stanley Gardner, Schiller, Conan Doyle e sabe-se lá mais quem.

A água nos traz O sol por testemunha ou Um lugar ao sol.

Ao mesmo tempo, Godard dá mais uma guinada em seu processo criativo em direção ao profundo umbigo confessional (JLG/JLG, 1994, Passion, 1982 e Prénom Carmen, 1982, uma autoironia sobre a idade madura mostra um “titio” Godard tentando enfiar o dedo no c... de uma enfermeira, empunhando um álbum de Buster Keaton).

Um mistificador, um estelionatário, um ilusionista?

Apenas um poeta, dedicado ao amor e à invenção.

Retirado do catálogo da mostra "Godard inteiro ou o mundo em pedaços" (Org. Eugenio Puppo e Mateus Araújo, CCBB, Heco Produções, 2015).