sexta-feira, 29 de abril de 2016

Cine FAP: Spartan, de David Mamet



A investigação do sequestro da filha de um oficial de alto escalão do governo. 

Em maio, o Cine FAP, cineclube do curso de cinema e vídeo da UNESPAR/Faculdade de Artes do Paraná, realiza o ciclo BAD SHAKESPEARE - começando com o filme Spartan, de David Mamet. O ciclo contará com Viver e Morrer em Los Angeles, de William Friedkin; Election 2, de Johnnie To; O Sequestro do Metrô 123, de Tony Scott; e Soldado Universal: Regeneração, de John Hyams.

Toda segunda, às 19h, no auditório da FAP. Depois da sessão, realizamos um debate mediado pelos estudantes do cineclube.

 Sobre o ciclo -

           "Como dois profissionais infiltraram nossa segurança, mataram 41 soldados e fugiram? Com ajuda, é claro. Tudo está sob controle, com exceção de um detalhe, uma filha que quer seu pai e companhia mortos e arruinados. Shakespeare ruim. De alguma forma, os parasitas da companhia chegaram a ela. Olha, ela é sua filha e isso é trágico. Mas, do sangue ou não, ela é quem vai. Chame isso o preço de fazer negócios." - Eric Roberts em momento autorreflexivo da trama de Os Mercenários, de Sylvester Stallone. 

A tragédia para a era contemporânea, para um mercado marginalizado de cinema, seguindo o axioma stalloniano: epopeias do homem comum, com heróis terminais, valores terminais e sub-astros de filmes de ação em latente decadência, um pequeno recorte de Bad Shakespeare.
 
Sessão:
Spartan (David Mamet, 2004)
dia 02/05 (segunda)
às 19h
no Auditório Antonio Melillo, na FAP - Faculdade de Artes do Paraná
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA


Realizado por Cine FAP
Apoiado por Cazé - Centro Acadêmico Zé do Caixão
e por Coletivo Atalante

Começa terça a Oficina de crítica

Arte: Max Andreone

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Cineclube da Cinemateca: Michael Cimino

Cineasta de ascensão meteórica e muito premiado por “O Franco-Atirador”, Cimino terminou por entrar no grupo dos ‘malditos’ de Hollywood, devido a brigas com os produtores e dificuldades nas bilheterias. Seu projeto megalomaníaco com “O Portal do Paraíso” levou a United Artists à falência, impedindo-o de um futuro mais sólido dentro da indústria.

Obs: Todos os filmes têm classificação indicativa 16 anos

08/05: O franco-atirador
(The deer hunter, 1978/EUA  – 183 min.)
Os amigos Michael (Robert De Niro), Steven (John Savage) e Nick (Christopher Walken) são operários de uma fábrica na Pensilvânia que se alistam nas forças armadas para lutar na Guerra do Vietnã. Eles se despedem da família e dos amigos na festa de casamento de Steven e partem para a batalha. Um tempo depois, são capturados pelos vietcongues e passam por torturas físicas e psicológicas, sendo obrigados a jogar roleta russa entre eles. Os três amigos vão lutar para escapar dessa prisão.

15/05: O portal do paraíso
*Excepcionalmente às 15h(Heaven's gate, 1980/EUA – 217 min.)
1890, estado de Wyoming, Estados Unidos. Um xerife faz o possível para proteger fazendeiros imigrantes de ricos criadores de gado, em lutas por mais terras. Ao mesmo tempo, ele luta pelo coração de uma jovem com um pistoleiro.

22/05: O ano do dragão
(Year of the dragon, 1985/EUA – 134 min.)
Nas profundezas do coração da Chinatown nova-iorquina, cresce uma ameaça criminal milenar, a Triade, uma impiedosa rede de corrupção e poder. O novo chefão da organização, o jovem Joey Tai (John Lone), decide que é chegada a hora de enfrentar os interesses dominantes, tanto italianos quanto orientais, na disputa pelo lucrativo tráfico de drogas. As ruas ficam cobertas pelo sangue de seus inimigos. Isto até que o Capitão Stanley White assume o controle de Chinatown. Utilizando uma bela jornalista como aliada, White inicia uma batalha particular contra o caos reinante em seu território. Apenas um homem poderá sobreviver ao inevitável confronto.

29/05: Na trilha do sol
(The sunchaser, 1996/EUA – 122 min.)
Jovem criminoso que sofre de doença incurável força médico bem-sucedido a levá-lo a um lago nas montanhas, onde acredita estar a cura para o mal que lhe aflige. A jornada revela segredos sobre a personalidade de cada um e suas crenças sobre a vida e a morte.
Serviço:
Sessões aos domingos
16h (exceto dia 15)
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 26 de abril de 2016

MACHORKA-MUFF, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, 1963


por Jacques Rivette & Karlheinz Stockhausen

Este curta-metragem de 15 minutos, livremente inspirado em Heinrich Böll, realizado por um jovem francês exilado na Alemanha já há alguns anos, não seria simplesmente o primeiro (pequeno) filme de autor de toda a produção alemã do pós-guerra? A ambição do autor era filmar um “caráter” (no caso, de um ex-oficial superior nazista reencontrando o seu lugar, pouco a pouco, na sociedade adenaueriana), ou seja, mais que um retrato, a “descrição feita do exterior, do caráter de uma pessoa”; e para, junto com Jean-Marie Straub, seguir a citação (de Marmontel): “Quando se pinta uma espécie de homens, como o avarento, o ciumento, o hipócrita, o puritano, o frívolo, não se trata mais de um retrato, mas sim de um caráter; e é isto o que distingue a sátira...” Esta era a ambição de Straub, e ela se encontra aqui completamente concretizada, com uma densidade e um equilíbrio das relações internas que imediatamente solicitam metáforas musicais. É um músico, pois, que toma aqui a palavra: é, numa carta ao autor, Karlheinz Stockhausen, um dos três grandes, com Pierre Boulez e Luigi Nono, da música contemporânea. - Jacques Rivette

“Você sabe muito bem que escolheu o caminho difícil. Eis por que eu lhe escrevo: para que você saiba que realizou um bom trabalho. No domínio do espírito a abundância não conta, mas sim a verdade e a eficácia criativa.

“O assunto é tomado do nosso presente. Ele é verdadeiro, preciso, universalmente válido. Os que reclamam da extrema agudeza nada sabem da necessidade artística de aguçar uma idéia ao extremo a fim de que ela seja verdadeiramente tocante. Dê a esses resmungões alguns dramas gregos ou Shakespeare para lerem.

“O que mais me interessou no seu filme foi a composição de um tempo especificamente cinematográfico - como existe um tempo musical. Você alcançou as proporções certas para as durações entre as cenas em que os acontecimentos quase não contêm movimentos - como é espantoso, num filme de duração relativamente curta, a coragem de fazer pausas e tempos lentos! - e aquelas em que os acontecimentos são extremamente rápidos - é cintilante a escolha de trechos de jornais dispostos em todos os ângulos na verticalidade da tela. Além disso, a relativa densidade das mudanças nos tempos variados é justa... Deixar que cada elemento venha num momento insubstituível, que seria impensável suprimir; nenhum ornamento. ‘Tudo é essencial’, diria Webern nestes casos (mas com cada coisa no seu tempo, deveríamos acrescentar). Também aprecio a franqueza, a reflexão que se prolonga na cabeça do espectador, a renúncia a qualquer ato de abertura e o ato final. Eu ainda poderia afirmar muita coisa: nada de ‘pedagogia’, para-melhorar-o-mundo, iludindo, simbolizando, falsamente se-fosse-assim: você não sentiu necessidade disto e, ao invés, utilizou os fatos; não os de uma pálida reportagem, mas precisamente por essa agudeza, esse comportamento estranhamente fulgurante da câmera nas ruas, no hotel (muito bom o fato de vermos longamente as paredes vazias do quarto de hotel, de cuja nudez não podemos nos desprender), à janela... E também a condensação ‘irreal’ do tempo, sem que nunca se tenha pressa. É nesta cortante aresta entre a verdade, a concentração e a agudeza (que penetra e queima na percepção do real) que o progresso será possível. E só aqui. Nós sabemos muito bem que atualmente até mesmo a ilusão fragmentada não passa de ilusão. Você não quer ‘mudar’ o mundo, mas sim inscrever nele o traço de sua presença e através disto dizer que você viu, que você abriu uma parte desse mundo, pela forma como essa parte do mundo se apresentou a você. Isso me agradou.

“Espero com impaciência seu trabalho vindouro.”

Colônia, 2-5-63 - Karlheinz Stockhausen

(Cahiers du Cinéma n° 145, julho 1963, pp. 36. Traduzido por Antônio Rodrigues e Bruno Andrade e extraído de http://focorevistadecinema.com.br/jornalstockhausenstraub.htm

Entrevista com Fritz Lang

por Jean Domarchi e Jacques Rivette

Uma posição crítica
Começaremos lhe perguntando qual o período de sua obra que prefere.
Fritz Lang: É muito difícil. Não se trata, para mim, de uma desculpa. Não sei o que devo responder. Prefiro os filmes americanos ou os filmes alemães? Não é a mim que cabe responder, vocês sabem. Acreditamos que o filme que estamos realizando será o melhor, naturalmente. Nós somos apenas homens, não deuses. Mesmo se você não ignora que este filme será menos importante — mesmo pela sua mise en scène — do que este ou aquele filme precedente, você no entanto se empenha em fazer a sua melhor obra.
Certamente. De qualquer forma, no interior de períodos diferentes, tanto alemão como americano, há alguns filmes que o interessam mais em retrospecto?
FL: Sim, naturalmente. Escutem: quando rodo superproduções, me interesso hoje em dia pelas emoções das pessoas, pelas reações do público. É o que se passou na Alemanha com M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931). Porque num filme de aventura ou num filme criminal, como os Dr. Mabuse ou Os espiões (Spione, 1928), há apenas a pura sensação, não existe o desenvolvimento de personagens. Mas, em M, eu comecei algo que era bastante novo para mim, que mais tarde prossegui em Fúria (Fury, 1936). M e Fúria são os filmes que prefiro, creio. Há outros também, como Almas perversas (Scarlet Street, 1945), Um retrato de mulher (The Woman in the Window, 1944) e No silêncio de uma cidade (While the City Sleeps, 1956). São todos filmes baseados numa crítica social. Naturalmente prefiro isso, pois acredito que a crítica é algo fundamental para um cineasta.

Todo o meu coração
O que você entende exatamente por crítica social: aquela de um sistema ou a de uma civilização?
FL: Não se pode diferenciar. É a crítica de nosso “ambiente”, de nossas leis, de nossas convenções. Vou lhes confessar um projeto. Devo rodar um filme no qual pus todo o meu coração. É um filme que quer mostrar o homem de hoje, tal como é: ele esqueceu o sentido profundo da vida, ele só trabalha para as realidades, pelo dinheiro, não para enriquecer sua alma, mas para adquirir vantagens materiais. E, porque esqueceu o sentido da vida, ele já está morto. Ele tem medo do amor; ele quer apenas ir para a cama, fazer amor, mas não quer assumir responsabilidades. Apenas o interessa a satisfação de seu desejo. Esse filme, creio, é importante filmá-lo agora. No silêncio de uma cidade, que mostra a competitividade acirrada de quatro homens no interior de um jornal, é o começo. Meu personagem recusa a satisfação pessoal de ser um homem. Pois hoje em dia cada um procura uma posição, o poder, uma situação, dinheiro, mas jamais algo de interior. Vejam, é muito difícil dizer: “Eu amo isto, ou não amo aquilo.” Quando se começa um filme, talvez se ignore mesmo o que se está fazendo exatamente. Sempre há pessoas para me explicar o que quis fazer e eu lhes respondo: “Você sabe muito melhor do que eu mesmo.” Quando realizo uma obra tento traduzir uma emoção.
No fundo, o que você critica em seus filmes seria um tipo de alienação, no sentido em que se compreende na Alemanha “Entfremdung”?
FL: Não, trata-se do combate do indivíduo contra as circunstâncias, o eterno problema dos antigos gregos, do combate contra os deuses, o combate de Prometeus. Ainda hoje combatemos as leis, lutamos contra imperativos que não nos parecem nem justos nem bons para os nossos tempos. Talvez sejam necessários daqui a trinta ou cinquenta anos, mas não o são neste momento. Nós sempre combatemos.
Isso valeria para todos os seus filmes, para O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952), para No silêncio de uma cidade?
FL: Sim, para todos os meus filmes.
Até mesmo Os Nibelungos (Die Nibelungen, 1924)?
FL: Sim, exato, mas eu acho que o filme se pretendeu grande demais para atingir minuciosamente as almas.
Em Metrópolis, igualmente, este assunto já é nitidamente indicado.
FL: Sou bastante severo para com as minhas obras. Não se pode mais dizer que o coração é o mediador entre a mão e o cérebro, pois se trata de um problema puramente econômico. Eis por que não gosto de Metrópolis. É falso, a conclusão é falsa; eu já não a aceitava quando realizei o filme.
Ela lhe foi imposta?
FL: Não, não.
Ela nos surpreende, parece postiça, adicionada ao filme, e não integrada.
FL: Creio que vocês têm razão.
Ao passo que a conclusão de Fúria, você não a renega?
FL: Não, a conclusão de Fúria é uma conclusão individual, não uma conclusão geral. Não se pode dar receitas para se viver. É impossível.
Finalmente, a lição de seus filmes em conjunto seria a de que cada homem deve encontrar sua própria solução.
FL: É o que penso. O homem pode se revoltar contra as coisas que são ruins, que são falsas. É preciso se revoltar quando se está “emboscado”, seja pelas circunstâncias, seja pelas conven- ções. Mas eu não creio que a morte seja uma solução. O crime passional não soluciona nada. Eu amo uma mulher, ela me engana, eu a mato. Então o que me resta? Perdi o meu amor porque ela está morta. Se mato seu amante, ela me detesta e eu ainda perco seu amor. Matar não pode jamais ser uma solução.
Então para o senhor o que seria uma solução? Por exemplo, no caso dos heróis de No silêncio de uma cidade: que solução para eles, visto que a conclusão do filme nos pareceu bastante pessimista, e, mais até do que isso, repleta de amargura.
FL: Eu não creio que a vida seja muito doce. (Risos.) Mas minha conclusão não é pessimista. Nós vemos o combate de quatro homens para obter uma posição social: um pelo dinheiro, o outro pelo poder, o terceiro não lembro mais, e o quarto porque ama isso. Mas o homem que ganha de todos os outros é aquele que tem um ideal. Isso quer dizer que se você faz aquilo que deve fazer sem se detestar, se você não sente a necessidade de esmurrar o espelho no qual você se olha pela manhã, você recebe aquilo que deseja. Então, onde vocês veem pessimismo?
Tivemos a impressão de que o herói com quem simpatizamos não é no fim das contas tão simpático assim.
FL: Isso é outra coisa, é outra coisa.
Não, queremos dizer que a tonalidade do filme…
FL: A tonalidade desse filme é talvez um rascunho do filme que desejo realizar neste instante, essa crítica da nossa vida contemporânea, em que ninguém vive sua vida pessoal. Cada um é sempre submisso às obrigações de seu trabalho, que são bastante importantes para ele. Afinal de contas, o dinheiro é importante. Frequentemente os críticos me perguntam por que eu rodei tal filme. A verdade é que preciso de dinheiro. (Risos.) Somerset Maugham escreveu que até mesmo o artista tem o direito de ganhar dinheiro.

Palavra dada, palavra de honra
Não obstante, existem filmes que o senhor realizou por dinheiro e pelos quais não teria se interessado de outra forma?
FL: Não, absolutamente. Eu nunca assinei um filme unicamente pelo dinheiro, jamais. Mas com certos filmes eu confesso que poderia ter feito algo mais. A partir do momento em que concebo um filme eu me interesso, mas certos filmes de aventura me interessam menos do que M, Fúria ou Um retrato de mulher, em suma, filmes que criticam nossa sociedade.
O que o levou a realizar um western como O diabo feito mulher?
FL: Primeiramente, mostrar no que se tornaram uma mulher que foi uma rainha de casa de jogos e um homem que foi um célebre assaltante, mas que por ter envelhecido e por não empunhar o revólver com a rapidez de antes deixou de ser um herói. Chega um homem mais jovem que atira mais rápido do que o homem envelhecido. É o eterno preâmbulo. Posteriormente, um elemento técnico me interessou bastante: introduzir um canto como elemento dramático. Com seis ou oito linhas desta canção eu chegava mais rapidamente à conclusão e evitava mostrar certas coisas que teriam sido entediantes para o público e que não eram tão importantes para o filme.
Nessa época o senhor via, e hoje ainda vê, muitos westerns?
FL: Sim. Eu amo westerns. Eles possuem uma ética muito simples e muito necessária. É uma ética para a qual não se chama mais a atenção porque os críticos são muito sofisticados. Eles querem ignorar que é algo muito necessário amar realmente uma mulher e lutar por ela. Quando preparava O tigre de Bengala (Der Tiger von Eschnapur, 1959), eu discutia com meu dialoguista porque queria que o Marajá dissesse: “Se você me der sua palavra de honra, eu o deixo livre em meu palácio.” E o dialoguista me respondeu: “Mas, escute, todo mundo rirá. O que significa uma palavra de honra hoje em dia?” Reconheçamos que é muito triste. (Risos.) Não existem mais contratos hoje que eu não possa romper, ou que meu associado não possa romper. De que serve escrever cem páginas se ele se recusa a me dar dinheiro; sou obrigado a ir ao tribunal e isso durará cinco anos. O mesmo para mim. Se me recuso a executar meu contrato, ninguém pode me forçar. Então, é uma idiotice. Ao passo que, se dou minha palavra de honra, isso me implica muito mais. São ideias simples, primárias, que convém repetir à juventude, que é preciso repetir todos os anos porque a cada ano surge uma nova geração. Eu vi em Berlim um filme alemão contra a guerra. As críticas foram bastante ruins, tendo como pretexto o fato de que o filme não apresentava nada de original, que desenvolvia apenas velhos temas. Mas o que se pode dizer de novo sobre a guerra? O importante é que se repita mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez.
O senhor considera o cinema como um instrumento de pregação e de educação?
FL: Para mim, o cinema é um vício. Amo-o muito, infinitamente. Escrevi muitas vezes que é a arte de nosso século. E que ele deve ser crítico.

Vocês são muito gentis
 Em quais circunstâncias o senhor foi levado a realizar Desejo humano (Human Desire, 1954), e por quais razões modificou o desfecho e incluiu os antecedentes?
FL: Numa crítica, os vossos Cahiers me deram uma resposta. Por quê?
Mas o senhor gosta desse filme ou prefere não falar sobre ele?
FL: Eu desejo, sim, falar, mas o filme de Renoir é tão melhor…¹ Primeiramente eu tinha um contrato. Se tivesse recusado, me teriam dito: “Perfeito, mas se nós tivermos outro filme para você, por ter recebido dinheiro por este, você não receberá mais.” Isso poderia ter durado um ou dois anos. Eu me curvei. Depois o produtor me disse: “Entenda, nós gostamos muito do filme de Renoir, mas não podemos ter um pervertido sexual. Precisamos ter um americano bem-apessoado.” Na realidade ele tinha razão, porque a censura teria se oposto a um personagem como o de Gabin. Vocês não imaginam as dificuldades que tivemos para encontrar uma companhia ferroviária que autorizasse as filmagens, sob o pretexto de que mostraríamos um assassinato. Respondiam-nos: “Na nossa linha, uma morte, impossível.” E tinham razão, em absoluto. Vocês acham que os acionários da companhia Santa Fé ficariam contentes ao ver um filme sobre a Santa Fé com um assassino nele? (Risos.) E então quem pode realizar um filme sobre a besta humana se não filma o livro? Meu filme não é A besta humana. Batizaram-no em inglês de Human Desire. É algo que era inspirado por um livro, por um filme. Pergunto-me por que vocês escreveram uma boa crítica na Cahiers.
Formalmente, seu filme é muito bonito.
FL: Muito obrigado, vocês são muito gentis, mas não é A besta humana.

Fiquei muito emocionado
 Retomando algumas proposições precedentes suas sobre o western, há uma objeção que inúmeros críticos lhe fizeram, da qual por sinal não partilhamos, censurando seu gosto por aquilo que é comumente chamado de melodrama. Ora, o senhor não ama justamente esse dito melodrama, tanto em seus westerns e em seus filmes policiais como em seus filmes de triângulo amoroso, na medida em que ele lhe permite situações mais fortes, em que os seres, os homens, ficam ainda mais expostos, mais nus?
FL: Ignoro o que seja um melodrama, não sei o que é. A verdade é que frequentemente vi assassinos em minha vida, eu frequentemente fui a locais onde haviam cometido um crime. Eu não penso que o que vi era melodrama. E, depois, não cabe a mim fazer a crítica dos críticos. Eu realizo um filme, é uma criança que eu trago ao mundo. Todo mundo tem o direito de criticá-lo. É tudo. Permitam-me ter a única vaidade que me deixa contente: o acolhimento favorável do público. Eu não trabalho para os crí- ticos, mas para os espectadores, que espero que sejam jovens. Não trabalho para as pessoas de minha idade, porque elas deveriam estar mortas, incluindo eu. Eu não queria vir a Paris. Este coquetel, estas palavras diante do público da Cinemateca, eu disse à senhora Lotte Eisner que isso me parece um monumento a um homem que infelizmente ainda não morreu. É ela que tinha razão. Um público jovem foi o que verdadeiramente respondeu. Fiquei emocionado, bastante emocionado, porque é a prova que não trabalhei para nada.
Você nos disse anteriormente que o propósito de um cineasta era criticar. Será que essa não poderia ser a definição da mise en scène?
 FL: Toda arte, penso, deve criticar algo. Ela não consiste em dizer que algo é bom, que é incrível, que é maravilhoso. Em todo caso, o que podemos dizer de uma mulher que é boa? É uma boa mãe, uma boa esposa. Mas o que podemos contar sobre uma mulher bastante cruel? Pode-se falar duas horas sobre ela, ela é interessante. (Risos.) É verdade ou não é? Você diz que uma é boa, mas a outra… Porque a questão se coloca da seguinte forma: por que ela é perversa? E: ela é realmente perversa? Ela tem o direito? Quais foram as circunstâncias? Os homens não são responsáveis? Poderíamos falar por toda uma noite. E poderíamos até mesmo falar toda uma vida com ela. (Risos.) Eu vi aqui, em Paris, um filme inglês chamado Almas em leilão (Room at the Top, 1959). Há duas mulheres: uma bem franca, a outra cruel. A mais interessante era Simone Signoret, não porque era melhor atriz, mas porque seus sentimentos são muitos mais apaixonantes.

Uma obra repleta de idiotices
 Em que medida o senhor foi influenciado ou reagiu contra a corrente expressionista?
 FL: Eu fui bastante influenciado. Não se pode atravessar uma época sem dela receber alguma coisa.
Os dois Nibelungos nos parecem expressionistas no bom sentido do termo, ao passo que O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) nos parece sê-lo no pior sentido possível.
FL: Vocês se enganam. Porque Caligari era um ensaio interessante, uma primeira tentativa. Quando Wiene tentou recomeçar com Genuine (1920), isso já não funcionava mais. O cinema é uma arte viva. Deve-se tomar tudo que é novo, não sem exame, mas aquilo que é bom para você, que lhe enriquece.
O que lhe parecia bom no movimento expressionista, o que você utilizou em seus filmes?
 FL: Isto é difícil de responder. O que utilizo são minhas emoções, tento criar alguma coisa. Nestes tipos de entrevistas me perguntam ou me demonstram aquilo que quis fazer. Um dia, nos Estados Unidos, uns admiradores me ensinaram aquilo que eu estava pensando quando realizei M. Eu lhes respondi: “É bem interessante, mas é a primeira vez que me dou conta.” Não posso responder-lhes; são emoções. Quando jovens cineastas vêm até mim e me perguntam: “Dê-nos regras para fazer a mise en scène”, eu respondo: “Não há regras.” Hoje eu vejo que isso é bom, que é necessário seguir nesta via, e amanhã eu digo que isso não serve mais, que é necessário se orientar de outra forma. Utilizei a ferrovia e agora me sirvo do avião, mas é impossível pretender que agora a ferrovia é má. Não posso dizer o que encontrei no expressionismo. Eu o utilizei, tentei digeri-lo.
Alguns de seus companheiros gostam de desenvolver teorias sobre suas artes, em particular Eisenstein, que escreveu inúmeros artigos teóricos. O senhor também não se vê tentado a desenvolver considerações teóricas a partir de sua obra, no mesmo sentido em que Eisenstein realizou para a dele, e da qual pretendeu tirar uma teoria geral sobre o cinema?
FL: Penso que a partir do momento em que se tem uma teoria sobre algo é porque já se está morto. Não tenho tempo para pensar em teorias. Deve-se criar emoções, e não a partir de regras. Trabalhar com regras é trabalhar com sua experiência, é ingressar na rotina. Eu conheço um homem chamado S. Kracauer que escreveu um livro, De Caligari a Hitler. Sua teoria é absolutamente falsa. Ele procurou todos os argumentos para provar a verdade de uma teoria falsa. Por este motivo, me esforcei em dissuadir a juventude de hoje de acreditar na verdade de um livro que contém tantas idiotices. Eu cheguei a dizer isso a este senhor. Ele ficou muito irritado. (Risos.) Vocês sabem, eu tenho uma língua, basta que eu me sirva dela para poder provar o que for. Mas não é necessário à minha verdade. Uma teoria não é nada para um criador, serve apenas a pessoas que já estão mortas.

Roubem-me, ficarei orgulhoso
Você teve a oportunidade de conhecer Murnau na Alemanha?
FL: Sim, mas não muito bem. Ele partiu muito cedo para os Estados Unidos e já havia morrido quando cheguei lá. Ele realizou obras excelentes. Era uma personalidade bem interessante. Ele fez Nosferatu (1922), muito, muito bom, Tabu (1931), e até mesmo um Fausto (Faust, 1926) que continha coisas muito, muito apaixonantes.
Roubem-me, ficarei orgulhoso Você teve a oportunidade de conhecer Murnau na Alemanha?
FL: Sim, mas não muito bem. Ele partiu muito cedo para os Estados Unidos e já havia morrido quando cheguei lá. Ele realizou obras excelentes. Era uma personalidade bem interessante. Ele fez Nosferatu (1922), muito, muito bom, Tabu (1931), e até mesmo um Fausto (Faust, 1926) que continha coisas muito, muito apaixonantes.
Visto que você vai frequentemente ao cinema, existem cineastas que você admira mais do que outros, ou prefere não responder?
FL: Eu me calarei quanto aos nomes, mas, naturalmente, prefiro certos atores, certos cineastas.
Você admira Renoir?                     
FL: Eu já lhes disse, A besta humana é um filme superior a Desejo humano. Não se pode comparar os dois filmes.
E o que o senhor pensa de Orson Welles e de Nicholas Ray?
FL: Eu vi dois ou três filmes de Ray de que gosto muito. Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) é um filme muito bom.
O primeiro filme dele, Amarga esperança (They Live by Night, 1949), era bastante inspirado por seus filmes.
FL: Eu aceito. Escute, eu roubei coisas de outros cineastas, e fico bastante contente e orgulhoso se alguém me rouba algo. O que isso significa, roubar? Pega-se uma ideia que se admira e depois tenta-se torná-la sua.

Publicado originalmente sob o título de “Entretien avec Fritz Lang”. Cahiers du Cinéma n° 99, setembro de 1959, pp. 1-9. Traduzido do francês por Bruno Andrade. (N.E.) extraído do catálogo “Fritz Lang – o horror está no horizonte”.


Nota: 1 Desejo humano, de Lang, foi uma refilmagem de A besta humana (La Bête humaine, 1938), de Jean Renoir, filme por sua vez adaptado do livro homônimo de Émile Zola, publicado em 1890. (N.E.)

Du côté de chez Antoine ¹


[sobre Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut]

Jacques Rivette

Os pivetes [Les mistons, 1957] era bom; Os incompreendidos [Les 400 coups, 1959] é melhor. De um filme ao outro, nosso amigo François deu o salto decisivo: a grande distância da maturidade. Como vemos, ele não perde tempo.
Com Os incompreendidos, entramos na nossa infância como em uma casa abandonada desde a Guerra. [Na] nossa infância, mesmo que se trate, antes de tudo, da de François Truffaut: as consequências de uma mentira estúpida, a fuga abortada, a humilhação, a revelação da injustiça; não, não há infância “preservada”. Falando de si, parece que ele fala também de nós: é o sinal da verdade e a recompensa do verdadeiro classicismo, que sabe se limitar a seu objeto, mas o vê abranger bruscamente todo o campo dos possíveis.
A autobiografia não é, pelas razões que se pode deduzir, um gênero muito praticado no cinematógrafo; não é isso, porém, que deve nos surpreender, e sim a serenidade, a retenção e a igualdade de vozes com as quais um passado tão análogo ao seu é evocado. O François Truffaut que eu encontrava, junto com Jean-Luc Godard, no final de 1949, no Parnasse, na casa de Froeschel ou no Minotaure, já tinha aprendido todas as façanhas²; minha palavra: nós falávamos mais de cinema, de filmes americanos, de um Bogart que passava no “Moulin de la Chanson”³, do que de nós mesmos; ou o fazíamos por alusões, e isto bastava. Ou então, bruscamente, uma foto o desmascarava três anos antes, no tiro ao alvo no parque: arrebatado, pálido, Hossein diminuído, com Robert Lachenay apoiado em seu ombro, realizado; em outros termos, as três fileiras rituais de uma classe fossilizada.4
parecer com verdadeiras lembranças, uma verdadeira memória. Agora tenho quase certeza disso; porque, na tela, reconheci tudo, reencontrei tudo. A madeleine de Proust lhe restituía apenas a sua infância. Mas com uma casca de banana, transformada em estrela do mar no fundo do prato, François Truffaut faz muito melhor; e todos os tempos são redescobertos de uma só vez, o meu, o teu, o vosso: um só tempo, na luz que não encontro adjetivo para qualificar – [pois é] inqualificável –, da infância.
Vejamos bem: este filme é pessoal, autobiográfico, mas nunca impudico. Não há nada que seja exibicionista; Prisão [Fängelse, 1949, de Ingmar Bergman] é igualmente belo, mas trata-se de uma outra beleza: ele é belo como Bombard segurando sua Paillard com uma só mão para filmar, em meio ao Atlântico, seu rosto inchado e tomado pela barba5. A força de François Truffaut é nunca falar de si diretamente, mas se unir pacientemente a outro jovem rapaz – que se parece com ele talvez como um irmão, mas um irmão objetivo –, se submeter a ele e reconstruir humildemente, a partir de uma experiência pessoal, uma realidade igualmente objetiva, que ele filma em seguida com o mais perfeito respeito. Tal método, no cinema, carrega um belíssimo nome (e é uma pena se o próprio François Truffaut o desconhece): ele se chama Flaherty. E a prova dos nove da verdade desse método, e da verdade do filme, pura e simplesmente, é a admirável cena da psicóloga – impossível, observemos de passagem, nas condições vetustas de realização que queriam nos obrigar a manter a todo custo –, na qual a mais completa improvisação corresponde à mais rigorosa reconstrução, na qual a confissão confirma a invenção. Diálogo e mise-en-scène, ao termo de uma ascese discreta, culminam, enfim, na verdade do registro ao vivo; o cinema reinventa aí a televisão, e esta, por sua vez, o consagra cinema; não há mais lugar, doravante, a partir de então para nada além dos três admiráveis planos finais, planos de pura duração, de perfeita redenção.
O filme inteiro avança para este instante, e se desfaz desfazendo-se do tempo, pouco a pouco, para encontrar a duração: a ideia de extensão e de brevidade, que tanto inquieta François Truffaut, parece, por fim, não ter sentido algum em seu cinema; ou, ao contrário, talvez fosse necessário primeiro uma tal obsessão da extensão, do tempo morto, uma tal abundância de cortes, de choques e de rupturas, para se livrar enfim do antigo tempo dos cronômetros e encontrar o tempo verdadeiro, o da jubilação mozartiana (que Bresson tanto buscou antes de poder atingir). Pois aqui está um filme como poucos (mesmo que muitos tentem, mais ou menos habilmente – e habilmente demais): [um filme] com um ponto de partida e um ponto de chegada, e entre os dois, toda uma distância percorrida (tão vasta quanto a que separa Irène Girard, em seu jantar de recepção, de Ingrid Bergman na janela da cela de Europa 51 [1952, de Roberto Rossellini]). Um ponto de partida que pega o tempo já andando: ainda construído e minutado, mas já secretamente ferido em sua própria precipitação e em seu mecanismo. E um ponto de chegada que não é a conclusão mais ou menos arbitrária de uma intriga mais ou menos amarrada, mas um degrau onde se retoma o fôlego, a respiração humana, antes de mergulhar novamente no tempo do real, cujo sentido foi reconquistado.
Basta deste tom – me culpo por falar de forma tão pomposa de um filme tão desprovido de retórica –, pois Os Incompreendidos é também o triunfo da simplicidade.
Não da pobreza ou da ausência de invenção, muito pelo contrário; para quem se coloca de saída no centro do círculo, não há necessidade alguma de buscar desesperadamente sua quadratura. A coisa mais preciosa no cinema, e a mais frágil, é também aquilo que mais desaparece a cada dia sob o reino dos competentes: uma certa pureza do olhar e uma inocência da câmera, que se apresentam aqui como se nunca tivessem sido perdidas. Talvez baste acreditar que as coisas são o que são, para simplesmente vê-las existirem na tela do mesmo modo que em sua intimidade; e teria essa crença se perdido em outros? O estado de graça do cineasta está neste olho e neste pensamento que se abrem ao centro das coisas: estar em primeiro lugar no interior do cinema, senhor do coração de uma área cujas fronteiras poderão em seguida se estender ao infinito – e isto se chama Renoir
Poderíamos insistir ainda quanto à extraordinária ternura com a qual François Truffaut fala da crueldade, que só pode ser comparada com a extraordinária suavidade com a qual Franju fala da loucura. Tanto aqui quanto lá, uma força quase insuportável nasce do emprego perpétuo da litotes; e a recusa da eloquência, da violência e da explicação dá a cada imagem um batimento e um tremor interno que se impõem bruscamente em alguns breves lampejos, reluzentes como uma lâmina. Poderíamos falar, como se deve, de Vigo ou de Rossellini, ou de forma ainda mais justa, de Os Pivetes ou de Une Visite [1955]. Todas essas referências, por fim, não querem dizer muita coisa, e é preciso se apressar para fazê-las enquanto ainda é tempo. Queria apenas dizer, da forma mais simples possível, que há agora entre nós não mais um iniciante talentoso e promissor, mas um verdadeiro cineasta francês, equivalente aos maiores, e que se chama François Truffaut.

Notas:
1 Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, n. 95, maio de 1959, pp. 37-39. Tradução de Tatiana Monassa e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”. O título faz referência ao primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust: Du côté de chez Swann (1913). Em português: No caminho de Swann. (Em Busca do tempo perdido vol.1. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. Rio de Janeiro: Globo, 2006) Uma vez que a versão brasileira do título não dá o sentido exato da expressão, e para preservar a referência, optamos por deixar no original. [N.d.T]
2 Em francês: “avait déjà fait l’apprentissage des 400 coups”, referência ao título original de Os incompreendidos: Les 400 coups. A expressão “faire les 400 coups” significa “aprontar todas”, viver de forma rebelde. Além do jogo de palavras, o autor diz com isso que, além de já ter passado pela época mais conturbada de sua vida, Truffaut já tinha feito o aprendizado de estratégias básicas para “se sair bem”. [N.d.T.]
3 Cabaré artístico no bairro de Montmartre, em Paris, fundado no início do século XX e transformado em cinema em 1929. [N.d.E.]
 4 Robert Lachenay foi um grande amigo e parceiro de Truffaut, desde os tempos de colégio, tendo sido assistente de direção em seu primeiro filme. Já Robert Hossein, ator e cineasta, não era muito apreciado por Truffaut, que escreveu majoritariamente críticas negativas sobre seus filmes. [N.d.E]
5 Alain Bombard, biólogo, é conhecido por sua travessia solitária do Oceano Atlântico a bordo de um bote pneumático e por suas teorias de sobrevida em alto mar. Paillard é o antigo nome da fabricante de câmeras Bolex, famosa por seus modelos câmera 16mm leves, muito utilizados em documentários e produções ágeis ou de baixo orçamento. [N.d.E.]

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mizoguchi Visto Daqui


Jacques Rivette
(Tradução de Cláudio Marcondes)

            Como falar de Mizoguchi sem cair em uma das duas armadilhas: o jargão do especialista ou do humanista? Seus filmes dependem da tradição ou do espírito do no ou do kabuki: é possível; mas, a seguir, quem nos dirá o significado profundo desses últimos? E não seria uma tentativa de explicar o desconhecido pelo o que não se pode conhecer? A arte de Mizoguchi está, no entanto, fundamentada no exercício de um gênio pessoal dentro dos limites de uma tradição dramática: disto não há dúvida. Mas se formos então abordá-lo em termos de civilização para, antes de tudo, nele reencontrar certos valores universais, conseguiremos avançar? Homens que são homens em todas as latitudes: isto podíamos prever. Mas a surpresa serve para nos instruir sobre nós mesmos.
            Estes filmes que, numa língua desconhecida, contam histórias totalmente estranhas a nossos costumes ou hábitos – estes filmes, na verdade, falam uma língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da encenação. Os artistas modernos não descobriram os fetiches africanos convertendo-se à religião dos ídolos, mas deixando-se comover por estes objetos insólitos enquanto escultura. Se a música é um idioma universal, a encenação também o é: esta língua, e não o japonês, é que devemos aprender para compreender “o Mizoguchi”. Língua comum, mas levada aqui a um grau de pureza que nosso cinema ocidental só excepcionalmente conheceu.
            Poderão objetar: por que, nessas incursões aleatórias, que constituem nossa observação do cinema japonês, destacar apenas Mizoguchi? Será o restante assim tão estranho? Trata-se de uma linguagem familiar, mas não a mesma que falam outros cineastas: o exotismo basta para dar conta da entonação superficial que separa Tadashi Imai (Sombras em pleno dia – Mahiru no ankoku) de um Cayatte, um Heinosuke Gosho (De onde se avistem as chaminés – Entotsu no mieru basho) de um Becker, um Mikio Naruse (Mamãe – Okasan) de um Le Chanois, um Teinosuke Kinugasa (Portal do Inferno – Jugoku-mon) de um Christian-Jaque, até mesmo um Satoru Yamamura (A barca do inferno – Kanikosen) de um Raymond Bernard; no entanto, deixando-se talvez de lado um Kaneto Shindo (Os filhos de Hiroshima – Gembaku no ko), um Keisuke Kinoshita (Ela era uma flor dos campos – Nogiku no gotoki kimi nariki), o insólito de suas inflexões se deve ao mais preciosismo do que ao ímpeto de uma melodia pessoal. Em resumo, trata-se da linguagem mais conhecida do cinema ocidental: o caso típico é Kurosawa, que vai dos clássicos europeus aos filmes contemporâneos “corajosos” com a pieguice rabugenta e solene de um Autant-Lara; de resto, que comparemos seus filmes de samurais com os filmes históricos de Mizoguchi, nos quais se procuraria em vão por um breve duelo ou pelo mais sutil grunhido (esse pitoresco que fez o sucesso fácil de Os sete samurais, do qual agora temos o direito de perguntar se não era sobretudo destinado à exportação), e onde se obtém uma presença aguda do passado por meio de uma simplicidade desconcertante, quase rosselliniana.
            Chega de comparações: a brincadeira de Kurosawa-Mizoguchi já deu o que tinha que dar. Deixemos que o último epígono de Kurosawa recolha suas bolinhas de gude; só se pode comparar o que é comparável, e com ambições igualmente elevadas. Mizoguchi, e só ele, impõe o sentimento de uma linguagem e de um universo específicos, que só devem satisfação a si próprios.
            Se Mizoguchi seduz, é, de início, porque não procura seduzir; ele jamais se inclina para o lado do espectador: trata-se, aparentemente, do único dentre todos os cineastas japoneses a cantar exclusivamente em sua árvore genealógica (Yang Kwei Fei faz parte do repertório nacional, assim como o nosso Cid), e também do único a poder almejar à verdadeira universalidade, a do indivíduo.
            Seu universo é todo irremediável; mas ali, o destino não é desde logo destino: nem fatum, nem Erínias. Não uma aceitação submissa, mas o caminho da reconciliação; que importam agora os casos narrados nos dez filmes que conhecemos? Neles, tudo acontece num tempo puro, o do eterno presente: tempo passado e tempo futuro quase sempre misturam suas águas, uma única meditação sobre a duração os percorre: todos terminam na alegria serena de quem venceu os fenômenos ilusórios das perspectivas. Como único suspense, a irreprimível linha ascendente em direção a um certo patamar de êxtase, que alcança a “correspondência” dessas notas derradeiras, desses acordes interminavelmente sustentados, que não se completam, mas expiram com o alento do músico.
            Enfim, tudo se harmoniza nessa procura do ponto central, em que as aparências, e aquilo que chamamos de “natureza” (ou vergonha, ou morte), se reconciliam com o homem – procura semelhante à do alto romantismo alemão, e de um Rilke, e de um Eliot -, e que também é a câmera: colocada sempre no ponto exato, de modo que o mais leve deslocamento modifica todas as linhas do espaço e transtorna a face secreta do mundo e de seus deuses.
            Uma arte da modulação.

(Texto publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n°81, março de 1958)

Santa Cecília¹


[sobre Bonjour Tristesse (1958), de Otto Preminger]

Jacques Rivette

Otto Preminger, autor de filmes, se é que isto existe, viu-se há uma dúzia de anos numa situação paradoxal e provavelmente única: a de ter feito, em seus inícios, um filme tão perfeito que, de certo modo, jamais poderia esperar fazer melhor. Laura [1944] não tem nada do zigue-zague relampejante de um Cidadão Kane, desde o qual longas trovoadas não cessam de reverberar ao longe; ele parece mais uma bola de cristal, tão pura que poderíamos recear estarmos diante da mais imaterial das bolhas de sabão: mas há muito nos tranquilizamos. Não sei se Preminger é dotado da inteligência discursiva dos feirantes que recorrem a mil truques em seu palavrório para disfarçar o pífio conteúdo de sua barraca; no mínimo ele possui uma de outra espécie, e mais útil nesse ofício: uma inteligência artesanal, que faz dele o mais hábil de nossos mestres de obra, sabendo avaliar seus materiais e nem sempre recusando, segundo o célebre conselho, os medíocres, mas utilizando-os no pleno conhecimento da sua mediocridade.
Talvez seja esse um lado do segredo que lhe permitiu sobreviver ao primeiro sucesso: fugir da perfeição; porque ele precisa também, à sua maneira, perseguir uma certa “qualidade da imperfeição”. Matéria ingrata, apesar das aparências, a desse fraco romance de pensionista, ao qual faltava tudo, tanto a alma quanto o estilo, quero dizer, afora os de segunda mão; para dar um corpo a essa obra-prima do pastiche, era preciso primeiro saber reinventar tudo, com a obrigação suplementar de não romper o primeiro fio narrativo: numa palavra, devolver o tom da novidade e da descoberta, ou mesmo da juventude, àquilo que deles mais carecia. Esta é a arte de Preminger.
Sejamos francos: quase todos os seus filmes se fundem no desafio, ou mais simplesmente, na trapaça comercial, ou nos dois ao mesmo tempo; o teste e o escândalo têm, para ele, atrativos irmãos. Mas não deve ele também sistematicamente se obrigar a procurar a dificuldade, não deve se proteger de uma facilidade tão inquietante que o deixa às vezes, ainda aqui, a dois dedos de lhe sucumbir?
Não creiam que advogo contra mim: esses dois dedos de distância são ainda o bastante para deixar passar facilmente a mãozinha de nossa musa, e a décima da família, se necessário, só precisa de um décimo de segundo, ou de um vigésimo quarto, para transformar o gesto mais banal, mais comum, num milagre da graça. A arte da mise-en-scène é, em primeiro lugar, uma arte de instaurar o espaço e o tempo desejados²: proporções perfeitas do quadro, arabescos das atitudes e o papel inteiro de Jean Seberg, tudo nos conduz a retomar em tom menor a afirmação final de Bernanos: “Tudo é graça”. Essa graça é justamente daquelas que são eficazes, e ela acaba por tocar até os fantoches mais rebeldes ao seu encanto: nossos Juvenais encontrarão aqui o exemplo de uma sátira sem agressividade nem feiura, de uma crítica sem ilusões mas sem maldade, e ainda mais acirrada por deixar sempre as chances à vítima e, muito desejosa de vê-la com seus próprios olhos, ainda por cima lhe entregar o que ela chama de beleza – e que é, com efeito, sua beleza.
A censura mais engraçada é provavelmente aquela que, apesar de reconhecer a fidelidade da adaptação, acusa nosso caro Otto de mostrar diretamente demais e sem pudor aquilo que o romance encobria com suas pequenas frases de inseto roedor: é como censurar Preminger por ter substituído as mentiras da má literatura pela verdade do grande cinema, sendo este a arte da linha reta, ou da curva mais firme, a mais regular³. A invenção que explode em cada plano desse filme é primeiramente um certo gênio do atalho: a arte do desenhista (e a passagem de Angel Face [1952] a Bonjour Tristesse é a de um esboço ao afresco) é saber quais traços são essenciais, quais devem ser acentuados ou eliminados, quais devem ser às vezes inteiramente inventados para completarem um rendilhado confuso; a arte do cineasta é a de saber quais são os elementos, de um espetáculo ou de um fato, indispensáveis ao equilíbrio da figura, isto é, da cena tal como inscrita em seu lugar definitivo no filme. Se essa noção de invenção, na qual se resume toda a grande arte, lhes parece confusa, digamos que ela é precisamente o que separa um Preminger do autor, por exemplo, de Kanal4, trabalho de escola em que o cuidado é sempre discernível, e em que o assunto mais alto vira um desenrolar retórico; se é bom aplicar um método, que seja sem ostentar a aplicação.
A facilidade passa facilmente por superficial; é o que faz sua força, pois não se desconfia dela; ela toca o peito antes que ele apareça fendido. Se Preminger, que talvez jamais tenha escrito uma só linha de seus scripts, é porém plenamente digno do belo título de autor de filmes, é pelo gênio singular que lhe permite encarnar o espírito nas criaturas mais teóricas, sejam elas as medíocres marionetes de uma pequena comédia licenciosa ou de um romance policial qualquer, sejam os espectros altivos de Bernard Shaw. Carne fraternal, animada por uma mesma paixão, por um mesmo gosto do absoluto, seja o da infelicidade, o da queda ou o da revolta; heróis irmãos de seu Pigmaleão, todos seduzidos igualmente pela aposta, a mesma vontade de negar o impossível, prestes a pagar o preço do desafio: donde sua tristeza, outro nome da lucidez.
Os nomes reunidos de Ophuls, Mizoguchi, Astruc, Preminger (ophulsiana é a abertura; astruciana, a farândola – ou o inverso –; mizoguchiano, o último plano) definem uma nova noção do cinema “puro”, jogo de espelhos em que o objeto, longe de ser destruído, revela e superpõe todos os seus rostos. Levando nossa arte ao ponto a que Picasso conduziu a pintura, essa ideia do cinema moderno é também um absoluto, ao qual tudo pode ser sacrificado. Eis, aliás, o perigo: eis por que, por maiores que sejam estes cineastas, o único que permanece exemplar é Rossellini, que, possuindo também este segredo, ousa sacrificá-lo a outra coisa, para servir àquilo que redireciona5 seu poder de tudo submeter às suas metamorfoses.

Notas:

1 “Sainte Cécile”, Cahiers du Cinéma, n.82, abril de 1958, pp. 52-54. Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo e extraído do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.
2 No original, “l’art de la mise-en-scène est d’abord un art de mise en place, ou en temps, voulus”. [N.d.T.]
3 No original, “... la mieux soumise aux flancs du vase”.
[N.d.T.]
4 Kanal (1957) era o segundo longa-metragem de Andrzej Wajda.
[N.d.T.]
5 No original, “tire ailleurs”. [N.d.T.]

sábado, 23 de abril de 2016

A mão


(sobre Suplício de uma alma)

Jacques Rivette

O primeiro ponto que impressiona o espectador desprevenido, após alguns minutos de projeção, é o aspecto de diagrama, ou quase de exposição, instantaneamente assumido pelo desenrolar das imagens: como se o que assistíssemos fosse menos a mise en scène de um roteiro e mais a simples leitura deste roteiro, apresentada a nós como tal, sem ornamento. Sem, tampouco, qualquer comentário pessoal por parte do narrador. Assim, ficaríamos tentados a falar de uma mise en scène puramente objetiva, se tal mise en scène fosse possível: mais prudente, entretanto, é acreditar que se trata de algum estratagema, e aguardar o que se segue.
O segundo ponto, em princípio, parece confirmar a primeira impressão: é a proliferação de recusas que sustentam a própria concepção do filme, e que possivelmente a constituem. A recusa, flagrante, da verossimilhança, tanto na trama quanto nesta outra verossimilhança, mais artificial, da construção das situações, da preparação, da atmosfera, que usualmente permite aos roteiristas do mundo inteiro incluir, sem dificuldade alguma, peripécias dez vezes mais gratuitas do que as daqui. Nenhuma concessão é feita aqui ao cotidiano, nem ao detalhe: nenhum comentário sobre o clima, sobre o corte de um vestido, sobre a graciosidade de um gesto; se tomamos consciência de uma marca de maquiagem, é pelo propósito da trama. Estamos mergulhados num universo da necessidade, ainda mais sensível porque ela coexiste harmoniosamente com a arbitrariedade da premissa. Lang, como se sabe, sempre busca a verdade além do verossímil, e aqui ele a busca desde o início no inverossímil.1 Outra recusa, a par com a primeira: a do pitoresco; os amadores não encontrarão aqui nenhuma destas silhuetas prazerosamente desenhadas, destes diálogos penetrantes ou destes traços nos quais a surpresa toma o lugar da invenção, que atualmente fazem a reputação de diretores como Lumet ou Kubrick. Todas essas recusas, aliás, são acompanhadas por um certo desdém que alguns sentem tentados a ver como o desprezo do diretor por sua tarefa; mas por que não um desprezo por este tipo de espectador?
Depois, à medida que o filme prossegue, essas primeiras impressões encontram sua justificativa. O tom expositivo prova ser o correto, já que se trata de um problema, que nos é apresentado com todos seus elementos, e mesmo um duplo problema: o primeiro deriva do roteiro, e, estando bem claro, não precisa ser tratado no momento; o outro, mais secreto, pode ser formulado assim: sob dadas condições de temperatura e pressão (aqui, de uma ordem transcendental da experiência), o que pode subsistir de humano nesta atmosfera? Ou, mais modestamente, qual parte da vida, mesmo desumana, pode subsistir num universo quasi-abstrato que está, todavia, dentro de uma extensão de universos possíveis? Em outras palavras, um problema de ficção científica. (A qualquer um que duvide dessa suposição, sugiro uma comparação deste filme com A mulher na lua [Frau im Mond, 1929], no qual a trama era para Lang, sobretudo, o pretexto para sua primeira tentativa de um universo totalmente fechado.)
É então que a reviravolta intervém: cinco minutos antes do desenlace, os dados do problema são bruscamente invertidos, para o escândalo dos espíritos cartesianos, que dificilmente admitem a técnica da inversão dialética. Ora, se as soluções parecem igualmente modificadas, é apenas na aparência: as proporções permanecem as mesmas e, todas as condições sendo atendidas, a poesia faz sua aparição. Como queríamos demonstrar.
O termo poesia surpreende aqui; certamente não é aquele que se esperaria. Eu o deixo provisoriamente, entretanto, já que não conheço outro que exprima melhor esta brusca fusão numa única vibração de todos os elementos até então mantidos separados pela vontade abstrata e discursiva; passemos então às consequências mais imediatas.
A uma delas já fiz alusão: as reações do público. Um filme como este é evidentemente a antítese absoluta da ideia de uma “noite agradável”; e, por comparação, Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s’est echappé, 1956) e O homem errado (The Wrong Man, 1956) são divertimentos de sábado à noite. Aqui se respira, se eu ouso dizer, o ar rarefeito dos cumes, mas correndo o risco da asfixia; não se poderia esperar menos da superação última de um dos espíritos mais intransigentes de hoje, cujos filmes recentes já nos tinham preparado para este “golpe de estado” do saber absoluto.
Uma outra objeção eu levo mais a sério: este filme seria puramente negativo e tão eficaz em seus aspectos destrutivos que acabaria no fim das contas destruindo a si mesmo. Isso não é inverossímil: eu falava agora há pouco de recusa; fui muito tímido. É de destruição que é preciso falar. Destruição da cena: não sendo qualquer cena tratada em si mesma, subsiste apenas um encadeamento de momentos puros, dos quais se retém somente seu aspecto mediador; tudo o que poderia determiná-los ou atualizá-los mais concretamente não é nem abstraído, nem suprimido — Lang não é Bresson —, mas desvalorizado e reduzido à condição de pura marcação espaço-temporal, desprovida de encarnação. Destruição até mesmo dos personagens: aqui, cada um deles não é nada além do que dizem ou do que fazem: quem são Dana Andrews, Joan Fontaine, seu pai? Essas questões não têm mais sentido algum, pois os personagens perderam todas as suas qualidades individuais, não são mais do que conceitos humanos. Mas, consequentemente, eles são ainda mais humanos porque menos individuais. Aqui encontramos uma primeira resposta: o que resta do humano? Há apenas o puramente humano, ao passo que os exibicionistas fellinianos estão prontos a reduzi-lo, comprometendo-o com suas mentiras e palhaçadas (mentiras obrigatórias já que se quer reconstituir alguma situação extraordinária, palhaçadas ainda mais chocantes na medida em que se pretendem “realistas” e não simplesmente caretas). Quem não sai mais abalado deste filme do que por tais apelos à cumplicidade ignora tudo, não apenas do cinema, mas do homem.
Estranho destruidor, este que nos conduz a uma tal conclusão enquanto nos obriga a retomar a objeção pelo avesso: se este filme é negativo, ele só pode sê-lo no modelo de negativo puro, que é também a definição hegeliana de inteligência.²
É difícil encontrar uma fórmula precisa para definir a personalidade de Fritz Lang (não falemos da ideia que um Clouzot poderia ter): um cineasta expressionista, meticuloso com os cenários e com a iluminação? Muito sumário. Arquiteto supremo? Isso parece cada vez menos verdade. Brilhante diretor de atores? Claro, mas o que mais? O que proponho é isto: Lang é o cineasta do conceito, o que sugere que, para não cair em equívoco, deve-se falar a seu respeito não de abstração ou de estilização, mas de necessidade (necessidade que deve poder contradizer a si mesma sem perder sua realidade): além do mais, não é uma necessidade exterior — a do diretor, por exemplo —, mas aquela que nasce do próprio movimento do conceito. Cabe ao espectador assumir responsabilidade não só pelos pensamentos dos personagens, suas “motivações”, mas por este movimento do Interior, unicamente a partir das aparências do fenômeno; cabe a ele saber como transformar esses momentos contraditórios num conceito. O que é, afinal, este filme? Fábula, parábola, equação, esquema? Nenhuma dessas coisas, mas a simples descrição de uma experiência.
Percebo que ainda não mencionei o objeto da experiência; e ele também não é sem interesse. Inicialmente, trata-se apenas de uma nova variação, bastante sutil, aliás, do requisitório habitual contra a pena de morte: uma série de circunstâncias incriminadoras arriscam levar um homem inocente à cadeira elétrica; melhor: embora este seja de fato provado como culpado, ele o será apenas por sua própria confissão justo no momento em que sua inocência havia sido reconhecida: daí, a futilidade da justiça humana, “não julgue”, e por aí vai… Mas logo isso começa a parecer muito fácil; o desfecho resiste a essa simples redução e imediatamente leva a um segundo movimento: não pode haver um “falso culpado”; todos os homens são culpados a priori; e aquele que acaba de ser libertado erroneamente não pode evitar incriminar a si mesmo. Nós entramos, nesse mesmo movimento, num mundo impiedoso, onde tudo recusa a graça, onde pecado e penalidade estão irremediavelmente ligados, e onde a única atitude possível do criador é aquela do desprezo absoluto. Mas uma atitude como essa é difícil de sustentar; enquanto a generosidade se expõe à inevitável perda de suas ilusões, ao rancor e à amargura, o desprezo por sua vez pode en - contrar apenas surpresas agradáveis e perceber, eventualmente, não que o homem não seja desprezível (ele continua sendo), mas que ele talvez não seja tanto quanto se supôs.
Tudo isso nos obriga a ultrapassar também este segundo estágio, e a tentar alcançar enfim, para além, aquele da verdade. Mas de qual ordem ela pode ser?
Entrevejo uma solução: que talvez seja inútil querer opor este último filme de Fritz Lang a seus primeiros trabalhos, como Fúria (Fury, 1936) e Vive-se uma só vez (You Only Live Once, 1937); o que de fato enxergamos em cada um dos casos? Nos primeiros filmes, inocência com a aparência de culpa; aqui, culpa com a aparência de inocência. Pode alguém não enxergar que eles são sobre a mesma coisa, ou pelo menos sobre a mesma questão? Para além das aparências, o que são a culpa e a inocência? Alguém é, de fato, culpado ou inocente? Se há, em absoluto, uma resposta, ela só pode ser negativa; cabe a cada um, então, criar para si mesmo sua própria verdade, por mais inverossímil que seja. No último plano, o herói finalmente se concebe como inocente ou culpado. Certo ou errado, o que importa para ele?
Conhecemos as últimas falas de Les Voix du silence : 3 “Huma - nismo não significa dizer: o que foi que eu fiz etc…” Saudemos, então, no penúltimo plano, esta mão levemente enrugada, inelutavelmente em repouso perto da graça, e que não causa nem mesmo um tremor nesta forma mais secreta da força e da honra de ser um homem.

Publicado originalmente sob o título “La main” em Cahiers du Cinéma no 76, novembro de 1957. Traduzido por Bernardo Versiani. Revisado por Calac Nogueira. (N.E.) e extraído do catálogo “Fritz Lang – O horror está no horizonte”.

Notas:

1 Em francês, o filme foi intitulado L’Invraisemblable vérité, o que explica o recorrente uso da expressão verossimilhança (e suas derivações) pelo autor. (N.T.)

2 Sei qual objeção indubitavelmente será levantada: que a dita “reviravolta” é apenas de um mero recurso clássico de histórias de detetive, particularmente de segunda categoria, caracterizado por uma súbita inversão ou alteração dos dados. Mas o fato de encontrarmos esta noção de “reviravolta” [coup de théâtre] recorrentemente nos roteiros de todos os filmes recentes importantes pode significar que o que a princípio parece ser da ordem da arbitrariedade dramática é, em fato, uma necessidade, e que todos esses filmes, apesar de sua diversidade nos temas, sem dúvida assumem precisamente o mesmo processo interno que Lang torna sua matéria imediata. Assim como o pacto que liga Von Stratten a Arkadin (em Grilhões do passado [Mr. Arkadin, 1955]) só alcança sua realidade plena quando tem sua primeira forma é negada, o mesmo ocorrendo medo da chantagem de Irene (em O medo [Non credo più all’amore, 1954]), quando sabemos sê-la tramada por seu marido, então a necessidade do movimento dialético, sozinha, torna crível a ressurreição em A palavra (Ordet, 1955), a rendição em A carroça de ouro (Le carrosse d’or, 1952), a conversão em Stromboli (1950), Rossellini, Renoir, Dreyer tendo abertamente desdenhado qualquer justificativa externa para essa última reversão. Por outro lado, é a clara ausência deste movimento a deficiência mais séria no roteiro de filmes como Olho por olho (Oeil pour oeil, 1957) ou Os espiões (Les Espions, 1957); e o sentimento de insatisfação deixado por filmes em outros aspectos tão bem-sucedidos, como Um condenado à morte escapou ou O homem errado, provavelmente não tem outro motivo. Não que um movimento como esse, cujo processo abrange o elemento de contradição, seja estranho a Hitchcock ou a Bresson (basta lembrar, por exemplo, de Suspeita [Suspicion, 1941] ou de As damas do Bois de Boulogne [Les Dames du Bois de Boulogne, 1945]), nem que esteja totalmente ausente de seus filmes mais recentes, mas está lá sobretudo em estado implícito e sem jamais se desprender do rigor do conceito: há um elemento de aposta na fuga de Fontaine, mas sobretudo a consequência lógica de sua obstinação; seu sucesso não parece nada mais do que a igualdade atingida pela prova de um teorema (um erro nunca cometido pelo maior cineasta do esforço humano: cf. os finais de Scarface [1932], Uma aventura na Martinica [To Have and Have Not, 1944], Rio Vermelho [Red River, 1948] etc.). Ou então basta comparar o milagre de O homem errado com aquele de Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) para ver o embate entre duas ideias diametralmente antitéticas, não só da Graça (no primeiro filme, uma recompensa pelo zelo na oração; no último, pura luz liberadora, inserida no próprio momento de desespero, sob uma fé bruta que não percebe a si própria), mas também da liberdade; e que tal preocupação com a necessidade — ou com a lógica, para usar um dos termos preferidos de Rossellini — seja levada a pontos tão extremos por esses cineastas, é somente para afirmar a liberdade dos personagens, simplesmente tornando-a possível; uma liberdade, por outro lado, quase impossível no universo arbitrário de um Cayette ou de um Clouzot, onde somente marionetes podem existir. — O que digo sobre os cineastas recentes é também verdade, me parece, para o cinema como um todo, começando pela obra de F. W. Murnau; e Aurora (Sunrise, 1927) se mantém o perfeito exemplo de uma construção rigorosamente dialética. Por fim, não reivindico estar sendo inovador aqui (cf., entre outros, o artigo de Alexandre Astruc, “Cinema et dialectique”). (N.O.)


3 Ensaio de André Malraux publicado em 1951. (N . E.)