segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mizoguchi Visto Daqui


Jacques Rivette
(Tradução de Cláudio Marcondes)

            Como falar de Mizoguchi sem cair em uma das duas armadilhas: o jargão do especialista ou do humanista? Seus filmes dependem da tradição ou do espírito do no ou do kabuki: é possível; mas, a seguir, quem nos dirá o significado profundo desses últimos? E não seria uma tentativa de explicar o desconhecido pelo o que não se pode conhecer? A arte de Mizoguchi está, no entanto, fundamentada no exercício de um gênio pessoal dentro dos limites de uma tradição dramática: disto não há dúvida. Mas se formos então abordá-lo em termos de civilização para, antes de tudo, nele reencontrar certos valores universais, conseguiremos avançar? Homens que são homens em todas as latitudes: isto podíamos prever. Mas a surpresa serve para nos instruir sobre nós mesmos.
            Estes filmes que, numa língua desconhecida, contam histórias totalmente estranhas a nossos costumes ou hábitos – estes filmes, na verdade, falam uma língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da encenação. Os artistas modernos não descobriram os fetiches africanos convertendo-se à religião dos ídolos, mas deixando-se comover por estes objetos insólitos enquanto escultura. Se a música é um idioma universal, a encenação também o é: esta língua, e não o japonês, é que devemos aprender para compreender “o Mizoguchi”. Língua comum, mas levada aqui a um grau de pureza que nosso cinema ocidental só excepcionalmente conheceu.
            Poderão objetar: por que, nessas incursões aleatórias, que constituem nossa observação do cinema japonês, destacar apenas Mizoguchi? Será o restante assim tão estranho? Trata-se de uma linguagem familiar, mas não a mesma que falam outros cineastas: o exotismo basta para dar conta da entonação superficial que separa Tadashi Imai (Sombras em pleno dia – Mahiru no ankoku) de um Cayatte, um Heinosuke Gosho (De onde se avistem as chaminés – Entotsu no mieru basho) de um Becker, um Mikio Naruse (Mamãe – Okasan) de um Le Chanois, um Teinosuke Kinugasa (Portal do Inferno – Jugoku-mon) de um Christian-Jaque, até mesmo um Satoru Yamamura (A barca do inferno – Kanikosen) de um Raymond Bernard; no entanto, deixando-se talvez de lado um Kaneto Shindo (Os filhos de Hiroshima – Gembaku no ko), um Keisuke Kinoshita (Ela era uma flor dos campos – Nogiku no gotoki kimi nariki), o insólito de suas inflexões se deve ao mais preciosismo do que ao ímpeto de uma melodia pessoal. Em resumo, trata-se da linguagem mais conhecida do cinema ocidental: o caso típico é Kurosawa, que vai dos clássicos europeus aos filmes contemporâneos “corajosos” com a pieguice rabugenta e solene de um Autant-Lara; de resto, que comparemos seus filmes de samurais com os filmes históricos de Mizoguchi, nos quais se procuraria em vão por um breve duelo ou pelo mais sutil grunhido (esse pitoresco que fez o sucesso fácil de Os sete samurais, do qual agora temos o direito de perguntar se não era sobretudo destinado à exportação), e onde se obtém uma presença aguda do passado por meio de uma simplicidade desconcertante, quase rosselliniana.
            Chega de comparações: a brincadeira de Kurosawa-Mizoguchi já deu o que tinha que dar. Deixemos que o último epígono de Kurosawa recolha suas bolinhas de gude; só se pode comparar o que é comparável, e com ambições igualmente elevadas. Mizoguchi, e só ele, impõe o sentimento de uma linguagem e de um universo específicos, que só devem satisfação a si próprios.
            Se Mizoguchi seduz, é, de início, porque não procura seduzir; ele jamais se inclina para o lado do espectador: trata-se, aparentemente, do único dentre todos os cineastas japoneses a cantar exclusivamente em sua árvore genealógica (Yang Kwei Fei faz parte do repertório nacional, assim como o nosso Cid), e também do único a poder almejar à verdadeira universalidade, a do indivíduo.
            Seu universo é todo irremediável; mas ali, o destino não é desde logo destino: nem fatum, nem Erínias. Não uma aceitação submissa, mas o caminho da reconciliação; que importam agora os casos narrados nos dez filmes que conhecemos? Neles, tudo acontece num tempo puro, o do eterno presente: tempo passado e tempo futuro quase sempre misturam suas águas, uma única meditação sobre a duração os percorre: todos terminam na alegria serena de quem venceu os fenômenos ilusórios das perspectivas. Como único suspense, a irreprimível linha ascendente em direção a um certo patamar de êxtase, que alcança a “correspondência” dessas notas derradeiras, desses acordes interminavelmente sustentados, que não se completam, mas expiram com o alento do músico.
            Enfim, tudo se harmoniza nessa procura do ponto central, em que as aparências, e aquilo que chamamos de “natureza” (ou vergonha, ou morte), se reconciliam com o homem – procura semelhante à do alto romantismo alemão, e de um Rilke, e de um Eliot -, e que também é a câmera: colocada sempre no ponto exato, de modo que o mais leve deslocamento modifica todas as linhas do espaço e transtorna a face secreta do mundo e de seus deuses.
            Uma arte da modulação.

(Texto publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n°81, março de 1958)

Nenhum comentário:

Postar um comentário